Humanos modernos parecem ter absorvido os Neandertais, aponta estudo
Figura 1. Reconstrução artística de Neandertais. |
Pela maior parte da história dos humanos modernos (Homo sapiens), estes conviveram com múltiplas outras espécies humanas (Homo sp.), incluindo Neandertais (Homo neanderthalensis) e Denisovanos (!). Mais do que isso, é bem estabelecido que houve fluxo genético entre essas espécies através de hibridizações com geração de descendentes férteis. Estima-se que, atualmente, ~2% do genoma de humanos modernos fora da África é oriundo de DNA Neandertal. Em povos nativos da Melanésia e Austrália (aborígenes), estima-se que 2 a 5% do genoma possui origem de DNA Denisovano, com os maiores níveis encontrados em certos grupos nativos nas Filipinas. Porém, é ainda incerto o quanto de DNA de humanos modernos essas espécies de humanos arcaicos herdaram durante os eventos de hibridização.
Um estudo publicado esta semana na Science (Ref.1) explorando introgressão de DNA entre humanos modernos e Neandertais, encontrou pelo menos dois eventos de fluxo genético no sentido H. sapiens → H. neanderthalensis: o primeiro durante ~200-250 mil anos atrás e o segundo durante ~100-120 mil anos atrás. A introgressão de DNA de humanos modernos foi significativa nesses dois eventos, apontando também que estimativas prévias estavam superestimando a população total de Neandertais. Nesse último ponto, o estudo encontrou que a população de Neandertais estava em contínuo declínio desde ~200 mil anos até 40 mil anos atrás, com provável absorção dessa espécie pelos humanos modernos e consequente extinção.
"Eles [Neandertais] foram sobrepujados pelas ondas de humanos modernos migrando para fora da África," disse em entrevista à Science Magazine o geneticista Joshua Akey, da Universidade de Princeton, EUA, e autor principal do novo estudo (Ref.2). "A população de humanos modernos eventualmente absorveu os Neandertais."
Através de uma avançada ferramenta genética baseada em IA e chamada IBDmix, os autores do estudo analisaram os genomas de três Neandertais da Croácia (caverna de Vindija) e da Sibéria (Montanhas de Altai), comparando-os com os genomas sequenciados de 2 mil humanos modernos geograficamente diversos, incluindo 1 mil indivíduos Africanos. A ampla análise genômica comparativa revelou que os genomas dos Neandertais em Vindija e em Altai tinham, respectivamente, 53,9 Mb (2,5%) e 80,0 Mb (3,7%) de sequências de DNA com origem [introgressão] da nossa espécie (H. sapiens).
Vários dos genes herdados pelos Neandertais estão envolvidos no desenvolvimento cerebral e parece que Neandertais (H. neanderthalensis) e H. sapiens começaram a produzir bebês juntos há mais de 200 mil anos, ou seja, não muito tempo depois da nossa espécie emergir (~300 mil anos atrás). Durante 250 a 200 mil anos atrás, ocorreu de 5% até 10% de introgressão do DNA de humanos modernos em Neandertais. Isso sugere que pequenos grupos de antigos humanos modernos migraram para fora da África, onde eventualmente encontraram e interagiram com Neandertais no Oriente Médio. Evidência fóssil limitada na Grécia e em Israel também suporta esse cenário, somado com evidências arqueológicas de trocas culturais e de ferramentas entre as duas espécies.
Um segundo e significativo evento de hibridização e introgressão de DNA humano no genoma Neandertal ocorreu na faixa de 120-105 mil anos atrás (provavelmente Oriente Médio), com um fluxo genético H. sapiens → Neandertais de 0,5% nesse período. Nesse sentido, a magnitude do fluxo genético H. sapiens → Neandertais foi sendo reduzida ao longo do tempo, alcançando ~0% para populações de Neandertais vivendo entre 47 mil e 39 mil anos atrás. Paralelamente, à medida que esse sentido do fluxo genético cessava, exemplos de fluxo Neandertal → H. sapiens começaram a aparecer. A maior e mais significativa introgressão de DNA Neandertal → humanos modernos ocorreu na faixa de ~60-50 mil anos atrás na Europa e/ou Oriente Médio, respondendo pela maior parte dos ~2% de DNA Neandertal em atuais populações humanas. Nesse período, introgressão inicial de DNA Neandertal em populações de H. sapiens foi tão alta quanto 10%.
Com base na heterogeneidade genética fornecida pelas sequências de DNA H. sapiens no pool genético Neandertal, os pesquisadores estimaram que as populações de Neandertais eram muito pequenas na Eurásia (~20% menor do que antes estimado).
O padrão assimétrico de mistura genética entre as duas espécies humanas, onde fluxo genético é primariamente detectado em uma direção, inicialmente H. sapiens → Neandertais e então Neandertais → H. sapiens, sugere que a população de Neandertais estava diminuindo em tamanho ao longo do tempo, eventualmente alcançando um ponto onde não era grande o suficiente para absorver humanos modernos no pool genético Neandertal. Nesse ponto, fluxo genético reverteu a direção, e a contínua e persistente introgressão de DNA Neandertal → H. sapiens a partir de ~60 mil anos atrás pode ter contribuído de forma crítica para a extinção dos Neandertais - uma das principais hipóteses [Modelo de Assimilação] historicamente levantadas para o rápido sumiço do H. neanderthalensis na Eurásia (1).
Especificamente, a assimilação de Neandertais pela população de humanos modernos à medida que esses últimos se espalhavam pela Eurásia teria efetivamente aumentado o tamanho das populações H. sapiens enquanto simultaneamente diminuía - e de forma acelerada - a já pequena população total de Neandertais. A substituição do cromossomo Y (2) e do DNA mitocondrial dos últimos grupos de Neandertais pelo material genético dos humanos modernos pode ter marcado um irreversível caminho para a extinção. Desde pelo menos 30 mil anos atrás, a assinatura genética de indivíduos Neandertais é inexistente no registro paleogenético.
Leitura recomendada:
- (1) Neandertais eram capazes de produzir arte e expressar linguagem?
- (2) Nosso cromossomo Y substituiu o cromossomo Y dos Neandertais durante as hibridizações
Segundo o estudo, a população de Neandertais caiu progressivamente e significativamente entre 250 mil e 40 mil anos, com um total de indivíduos com capacidade reprodutiva alcançando eventualmente ~2,4 mil, comparado com pelo menos 10 mil humanos modernos. Essa tendência de colapso populacional pode ter relação com a maior vulnerabilidade de humanos às mudanças climáticas e glaciações em maiores latitudes, cujas regiões eram habitadas pela maioria dos Neandertais.
Nesse cenário, é plausível que os Neandertais remanescentes foram eventualmente absorvidos pelas ondas demográficas cada vez mais massivas de humanos modernos ocupando a Eurásia, resultando em híbridos com cada vez mais DNA H. sapiens e finalmente na extinção do H. neanderthalensis. Teria algo similar ocorrido com os Denisovanos?
(!) DENISOVANOS E NEANDERTAIS
No último Encontro Anual da Sociedade de Biologia Molecular e Evolução (SMBE 2024), pesquisadores reportaram o mais antigo genoma humano já sequenciado, pertencente a um macho de Denisovano que viveu há ~200 mil anos (Ref.4-5). O DNA sequenciado foi extraído de um dente molar escavado na Caverna de Denisova, Sibéria (3). O espécime em questão pertencia a uma distinta população de Denisovanos que hibridizou múltiplas vezes com um grupo de Neandertais cuja população nunca havia sido antes geneticamente detectada. O macho Denisovano herdou 5% do seu genoma desses Neandertais. Aparentemente os Denisovanos foram substituídos nessas cavernas por Neandertais por um período, e retornaram ao local há cerca de 60 mil anos. E aparentemente as hibridizações com Neandertais continuaram: fragmento ósseo nessa caverna, descrito em 2023 (4) e datado em >50 mil anos atrás, pertencia a um híbrido cuja mãe era Neandertal e o pai era um Denisovano.
Leitura complementar:
- (2) Denisovanos e a suruba interespécies na Ásia
- (4) Descoberto humano metade Neandertal metade Denisovano
Neandertais e Denisovanos divergiram há pelo menos 400 mil anos. Os ancestrais pós-divergência dos Neandertais foram ocupar a Eurásia e o Oriente Médio, enquanto os ancestrais pós-divergência dos Denisovanos foram ocupar regiões mais ao Leste Asiático, onde evoluíram de forma independente e adquiriram cerca de 300 mil mudanças genéticas diferenciando-os dos Neandertais.
REFERÊNCIAS
- Akey et al. (2024). Recurrent gene flow between Neanderthals and modern humans over the past 200,000 years. Science, Vol. 385, No. 6705. https://doi.org/10.1126/science.adi1768
- https://www.science.org/content/article/neanderthals-and-modern-humans-mingled-early-and-often
- https://www.eurekalert.org/news-releases/1051103
- https://smbe2024.org/
- https://www.science.org/content/article/most-ancient-human-genome-yet-has-been-sequenced-and-it-s-denisovan