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Neandertais caçavam e provavelmente reverenciavam leões-das-cavernas, revela estudo

Figura 1. Reconstrução artística de caçadores Neandertais removendo a carne de um leão-das-cavernas abatido com uma lança.

 
Durante o Paleolítico Superior, leões se tornaram um importante tema na arte Paleolítica feita por humanos (gênero Homo), e passaram a ser frequentes em registros arqueológicos - porém, quase sempre associado a humanos modernos (Homo sapiens). Em um recente estudo publicado no periódico Scientific Reports (Ref.1), pesquisadores reportaram a primeira evidência direta da caça de um leão-das-cavernas - extinto felino de grande porte do gênero Panthera - por Neandertais (Homo neanderthalensis). O evento de caça ocorreu na região central da atual Alemanha, há cerca de 48 mil anos, e o leão-das-cavernas caçado tinha mais de 300 kg de massa corporal e provavelmente era velho e estava faminto. O feroz felino foi derrubado após ser atingido por uma lança de madeira na caixa torácica. E, no mesmo estudo, os pesquisadores também descreveram ossos pertencentes a outro leão-das-cavernas datados em ~190 mil anos atrás e associados a um troféu de caça - somando mais uma evidência de simbolismo expresso por Neandertais.


"Essas evidências definitivamente mostram um comportamento que vai além de simples sobrevivência," disse em entrevista à Science Magazine Davorka Radovčić, um arqueólogo no Museu de História Nacional da Croácia (Ref.2). "Nós não somos os únicos capazes de complexo comportamento."


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A relação entre carnívoros e hominídeos tem moldado o nosso caminho evolucionário e comportamento desde o começo, tanto por pressão predatória de ambos os lados quanto por competição direta (1). Além disso, grandes carnívoros têm influenciado expressões culturais de humanos do Paleolítico, através de uso de partes corporais como ornamentos e também via registros na arte (ex.: pinturas nas paredes de cavernas). Entre os grandes predadores que compartilharam história evolutiva com humanos, temos notavelmente os leões (Panthera sp.) (2).


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(1) Sugestão de leitura: Humanos foram hipercarnívoros durante a maior parte da nossa linhagem evolutiva 


(2) Existem vários felinos de grande porte extintos e ainda vivos incluídos no gênero Panthera além de leões, como leopardos e tigres. Inclusive, diferentes espécies nesse clado são capazes de efetiva hibridização entre si. Para mais informações: Qual é o maior felino do mundo?

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Ainda marcantes na atual cultura humana, a história de dispersão dos leões compartilham muitos paralelos com aquela associada à nossa espécie (H. sapiens). A linhagem desses felinos teve origem no leste da África, com os fósseis mais antigos conhecidos de antigos ancestrais dos leões datados entre 3,8 e 3,6 milhões de anos atrás em Laetoloi, Tanzânia. Uma dramática e rápida dispersão dos leões ocorreu durante o Pleistoceno Médio, com registro fóssil desse período encontrado na Europa Ocidental. No Pleistoceno Tardio, os leões-das-cavernas (P. spelaea) ocupavam um crítico papel ecológico como superpredadores até sua extinção no final do Pleistoceno, no intervalo de 14-12,5 mil anos atrás ao longo da Eurásia e do Alasca/Yukon (Ref.3). O leão-das-cavernas teve distribuição geográfica que incluía a Europa, norte da Ásia, Alasca e Yukon (no Canadá), e evidência mais recente aponta presença da espécie no nordeste da China (Ref.4-5). Além da crise climática que ocorreu há cerca de 14,7 mil anos, é incerto o papel de humanos na extinção dessa espécie.


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Leitura recomendada:

> Hoje os leões (espécie P. leo) possuem distribuição geográfica primariamente restrita à África Subsaariana, com crescente e histórico declínio populacional causado por humanos.

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Figura 2. Crânio pertencente à espécie extinta Panthera spelaea, no Museu de Berlim für Naturkunde, Alemanha. O leão-das-cavernas era o leão mais comum na Europa durante o Paleolítico Médio. Existiram três subespécies de leões-das-cavernas distribuídos ao longo da Eurásia e América do Norte marcadas por significativas diferenças de porte corporal: P. s. fossilisP. s. intermedia e P. s. spelaea. O P. s. fossilis é o maior e mais antigo das três subespécies, com fósseis documentados em pelo menos 62 locais na Eurásia e datados entre 1,2 milhão e 300 mil anos atrás. Existe evidência recente suportando a existência de uma quarta subespécie (P. s. vereshchagini). Durante a história evolutiva dos leões-das-cavernas, houve uma progressiva redução de tamanho desses animais até a extinção. Ref.6-7 


Figura 3. Comparação de tamanho entre leões-das-cavernas (Panthera spelaea) que habitaram a Ucrânia e leões modernos (Panthera leo) na África. (a) P. s. spelaea fêmea associado a fósseis na Caverna de Kryshtaleva. (b) P. s. fossilis macho de Sambir. (c) P. l. persica macho de Mayaki, Nigéria. (d) P. s. spelaea macho de Chernihiv. (e) P. l. melanochaita fêmea e (f) macho do Parque Nacional de Kruger, África do Sul. Todas as ilustrações estão na mesma escala de tamanho. O P. s. fossilis macho potencialmente ultrapassava 500 kg de massa corporal. Arte: W. Gorning. Ref.6

Humanos modernos (H. sapiens) têm interagido com leões desde a chegada na Europa (!), e esses felinos possuíam grande significância para a nossa espécie no Paleolítico Superior - em especial o leão-das-cavernas, o mais perigoso predador no território Europeu durante a última Era do Gelo. Isso é bem ilustrado no período Aurignaciano por registros de leões-da-caverna em pinturas nas cavernas do sudeste da França, esculturas de marfim incluindo o famoso  Löwenmensch (Homem-Leão) (Fig.4) e caninos perfurados de leões-das-cavernas usados como ornamento pessoal (ex.: colares). Durante os períodos subsequentes (Gravetiano, Magdaleniano e final da última glaciação) exploração de leões-das-cavernas na caça e nas artes continuaram, incluindo processamento de pele desses animais.


Figura 4. Estatueta do Homem-Leão (Löwenmensch), datada em 35-40 mil anos atrás e feita a partir de marfim de mamute. A estatueta foi descoberta na caverna de Hohlenstein-Stadel, Alemanha. Está em exibição no Museu Ulm. É a mais antiga escultura simbólica conhecida retratando uma criatura mítica - uma mistura de características físicas entre leões-da-caverna e humanos. Ref.8

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(!) Existe evidência de que humanos modernos primeiro chegaram à Europa há aproximadamente 60 mil anos atrás. Porém, devido a uma grande crise climática há ~40 mil anos e uma super erupção vulcânica próximo de Nápoles, início de efetivo estabelecimento de grupos da nossa espécie na Europa só parece ter ocorrido a partir de 37-36 mil anos atrás. Ref.9

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Porém, apesar de abundante registro arqueológico demonstrando a importância dos leões-das-cavernas para os humanos modernos, é ainda incerto se outras espécies humanas interagiam com esses felinos além de simples competição inter-espécies. Evidência arqueológica nesse sentido é muito limitada e escassa. 


Neandertais (H. neanderthalensis) - espécie humana que se estabeleceu na Europa há 400 mil anos até a extinção em torno de 30-40 mil anos - eram efetivos caçadores no topo da cadeia alimentar e competiam com leões-das-cavernas por presas. Além de grandes presas herbívoras, como mamutes, essa espécie humana caçava ursídeos e outros carnívoros, e explorava recursos animais não apenas para subsistência mas também para propósitos não-utilitários (ex.:  fins estéticos e simbólicos). De qualquer forma, durante o Paleolítico Médio, evidência de interação entre leões e Neandertais é escassa, mas inclui sinais de processamento de carne e de pele de leões-das-cavernas em múltiplos locais na Europa Ocidental.


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No novo estudo, pesquisadores conduziram um detalhada análise arqueológica, tafonômica e forense de um esqueleto de leão-das-cavernas escavado na década de 1980 na região de Siegsdorf, nos Alpes Bávaros do sul de Munique, Alemanha, e datado em ~48 mil anos atrás (Fig.5). Cinquenta e quatro dos 62 elementos previamente descritos do esqueleto parcial foram reavaliados, e mostraram exibir três distintos tipos de modificação superficial: dano por pisoteamento, mastigação por carnívoro e manipulação antropogênica. As modificações antropogênicas foram classificadas em duas categorias: lesões de caça e marcas de processamento de carne. 

 

Figura 5. Esqueleto parcial do leão-das-cavernas de Siegsdorf junto com uma réplica da lança potencialmente usada por Neandertais para caçá-lo. Os ossos do esqueleto possuem várias marcas de corte feitas por afiadas lâminas de pedra. Ref.1


Investigação balística, com base nas evidências associadas às marcas nos ossos, suportou um cenário onde o leão-das-cavernas foi atingido pela lança enquanto estava deitado - e via golpe direto, sem arremesso da lança (Fig.6). A lança teria entrado a partir do abdômen esquerdo através da cartilagem costal do animal. Uma vez atravessado a pele e os tecidos musculares, a lança continuou sendo introduzida através da cavidade torácica, danificando órgãos vitais, incluindo os pulmões. A lança teria sido então parada pelo impacto com a terceira costela. O forte golpe e as lesões resultantes teriam sido letais para o leão-da-caverna.


Figura 6. Reconstrução balística mostrando onde a lança do Neandertal entrou no leão-das-cavernas. É provável que o felino estava deitado (dormindo ou descansando). Ref.1


O esqueleto analisado indicou que o leão-das-cavernas era um espécime macho e com idade avançada, e, nesse sentido, provavelmente era solitário, nômade e forçado a se alimentar e se proteger por conta própria. Pode ser que o espécime estava com fome e cansado, e sendo perseguido por um grupo de Neandertais que jogavam dardos de madeira no animal. Sem forças para reagir, o animal pode ter se deitado para descansar - ou fraco demais para continuar de pé -, virando alvo fácil de um Neandertal e sua lança. Alternativamente, um grupo de caçadores Neandertais - ou um único Neandertal - pode ter encontrado o velho leão-das-cavernas descansando: o caçador com a lança se aproximou com segurança por trás e desferiu finalmente o golpe letal. 


Na segunda parte do estudo, os pesquisadores analisaram ossos da pata de um leão-das-cavernas encontrados em 2019 na Caverna do Unicórnio (Einhornhöhle), nas montanhas de Harz, Alemanha. Os vestígios ósseos estavam associados com vários artefatos e pedra de Neandertais. Datação com isótopos de urânio () indicou uma idade de ~190 mil anos atrás para os ossos. Em particular, uma falange distal exibia marcas de corte por ferramentas de pedra próximo da anexação do tendão (Fig.7). Essas marcas mostraram ser consistentes com aquelas geradas durante remoção de pele de animais de porte médio e grande, e características morfológicas, dimensionais e microestruturais eram sugestivas de uso de ferramentas especializadas. Os achados indicam que a pele foi cuidadosamente removida de modo a deixá-la intacta e preservar as garras.


Figura 7. Falange de um leão-das-cavernas, com ampliação de 30x e de 500x das marcas de cortes feitas por ferramentas de pedra. Ref.1

Isso fortemente sugere que a pele removida foi usada como um troféu ou um tapete, ao invés de um simples subproduto do processamento do leão-da-caverna para a obtenção de alimento. Caso não houvesse objetivo simbólico ou estético, teria sido muito mais fácil cortar a pele a partir do pulso. Assim como observado para humanos modernos, o leão-das-cavernas provavelmente possuía um significado especial na sociedade ou cultura Neandertal. O achado se soma às múltiplas evidências acumuladas de que os Neandertais exibiam complexo comportamento e capacidade para pensamento simbólico: Neandertais eram capazes de produzir arte e expressar linguagem?


REFERÊNCIAS

  1. Russo et al. First direct evidence of lion hunting and the early use of a lion pelt by Neanderthals. Sci Rep 13, 16405 (2023). https://doi.org/10.1038/s41598-023-42764-0
  2. https://www.science.org/content/article/neanderthals-hunted-and-revered-cave-lions
  3. Stuart & Lister (2011). Extinction chronology of the cave lion Panthera spelaea. Quaternary Science Reviews, Volume 30, Issues 17–18, Pages 2329-2340. https://doi.org/10.1016/j.quascirev.2010.04.023
  4. Persico, D. (2021). First fossil record of cave lion (Panthera (Leo) spelaea intermedia) from alluvial deposits of the Po River in northern Italy. Quaternary International, Volume 586, Pages 14-23. https://doi.org/10.1016/j.quaint.2021.02.029
  5. Sherani et al. (2022). Evidence of cave lion (Panthera spelaea) from Pleistocene Northeast China. Historical Biology, An International Journal of Paleobiology. Volume 35, Issue 6. https://doi.org/10.1080/08912963.2022.2071711
  6. Marciszak et al. (2023). The Quaternary lions of Ukraine and a trend of decreasing size in Panthera spelaea. Journal of Mammalian Evolution 30, 109-135. https://doi.org/10.1007/s10914-022-09635-3
  7. Puzachenko & Baryshnikov (2023). Geographical, temporal variability and sexual size dimorphism of mandible in cave lion (Panthera spelaea) across Northern Eurasia. Historical Biology. https://doi.org/10.1080/08912963.2023.2214578 
  8. https://museumulm.de/en/collections/archaeology/
  9. Bennett et al. (2023). Genome sequences of 36,000- to 37,000-year-old modern humans at Buran-Kaya III in Crimea. Nature Ecology & Evolution. https://doi.org/10.1038/s41559-023-02211-9
  10. https://www.nhm.ac.uk/discover/who-were-the-neanderthals.html

Neandertais caçavam e provavelmente reverenciavam leões-das-cavernas, revela estudo Neandertais caçavam e provavelmente reverenciavam leões-das-cavernas, revela estudo Reviewed by Saber Atualizado on outubro 24, 2023 Rating: 5

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