Humanos foram hipercarnívoros durante a maior parte da nossa linhagem evolutiva, conclui estudo
- Atualizado no dia 1 de novembro de 2024 -
Em um robusto estudo publicado em 2021 no periódico American Journal of Physical Anthropology (Ref.1), pesquisadores da Universidade de Tel Aviv, Israel, reconstruíram a dieta associada à linhagem evolutiva do gênero Homo que provavelmente levou à emergência da nossa espécie (Homo sapiens), com o objetivo principal de determinar o nível trófico humano durante o período Pleistoceno. Os resultados da reconstrução mostraram que os humanos se tornaram superpredadores por cerca de 2 milhões de anos, com a natureza carnívora apenas declinando com a extinção de grandes animais da megafauna (ex.: mamutes) em várias partes do mundo, e com a redução de fontes animais na dieta no final da Idade da Pedra, levando os humanos modernos (H. sapiens) a gradualmente aumentarem fontes vegetais na nutrição, até finalmente não terem mais escolha a não ser domesticar tanto animais quanto plantas (agricultura) - mas ainda carregando uma biologia em grande parte carnívora.
É geralmente alegado que os humanos (gênero Homo), em termos de nível trófico, são exemplos perfeitos de animais onívoros generalistas e flexíveis, capazes de alterar dramaticamente a composição da dieta a curto prazo para se adaptarem a condições ecológicas locais e a rápidas mudanças ambientais. Alguns inclusive consideram essa característica como central para a evolução humana, incluindo tamanho cerebral. Essa percepção de ‘flexibilidade dietética’ nos humanos quanto às fontes alimentares baseadas em plantas e em animais durante o Pleistoceno (2,58 milhões a 11,7 mil anos atrás) tem recebido principal suporte de observações relativas às populações modernas de caçadores-coletores (século XX), estes os quais seguem uma dieta equilibrada contendo carne, sementes frutas e outros derivados vegetais.
Porém, a dieta dos caçadores-coletores modernos pode ser resultado de adaptações ecológicas e tecnológicas pós-Paleolíticas às condições ecológicas do Antropoceno (1) que não são análogas às condições que humanos experienciaram durante a maior parte do Pleistoceno. De fato, com uma drástica menor abundância de megafauna e com características tecnológicas como o uso de cães, arcos e flechas, ferro e contato com agricultores e criadores de animais vizinhos, é naturalmente esperado que os caçadores-coletores modernos sejam mais análogos em termos de padrões de dieta aos seus prováveis ancestrais humanos do pós-Paleolítico ou Paleolítico Terminal do que aos humanos do Paleolítico Inferior, Médio e mesmo Superior.
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Humanos, sem sombra de dúvidas, sempre foram onívoros, se alimentando em mais de um nível trófico. No entanto, o termo ‘onívoro’ nos mamíferos não é homogêneo em termos de variabilidade da dieta (razão animal-planta). Onívoros existem em um amplo espectro de níveis tróficos e possuem variáveis graus de especialização. Por exemplo, tanto chimpanzés quanto lobos são tecnicamente onívoros, mas muito pouco adaptados a uma alta flexibilidade nas suas fontes de alimentação. Com base em grandes bancos de dados de níveis tróficos do clado Mammalia, é encontrado que cerca de 80% dos mamíferos são onívoros, mas com a maioria desses onívoros (75%) consumindo mais de 70% de alimentos oriundos ou de plantas ou de animais, deixando apenas os 20% restantes no grupo de onívoros generalistas. Entre os primatas, grande parte são onívoros especializados.
Nesse sentido, existem evidências bem óbvias apontando para uma relação bem mais próxima dos humanos modernos com uma dieta carnívora do que com uma dieta vegetariana. Por exemplo, podemos citar a similaridade do intestino humano com aquele de animais carnívoros, a absorção preferencial de ferro-heme do que de ferro planta-originário (2), ocorrência comum de resistência à insulina, alta acidez estomacal, e o uso exclusivo de humanos como hospedeiro pelo verme platelminto Taenia saginata, uma espécie da família Taeniidea, cujos membros são parasitas de carnívoros (3). Colocamos medo em outros animais no ambiente terrestre (4) e frequentemente somos referenciados como "super predadores" devido ao enorme excesso de caça que promovemos mesmo durante a história humana mais recente, empurrando inclusive várias espécies para a extinção.
Para mais informações:
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No estudo conduzido por pesquisadores de Israel, foi realizada uma compreensiva revisão da literatura acadêmica, englobando quase 400 estudos de diferentes disciplinas científicas (zoologia, arqueologia, paleontologia, genética, fisiologia, morfologia, metabolismo, patologia, etnografia) e resultando em 25 linhas de evidência, para explorar a evolução do nível trófico que marcou a linhagem humana diretamente associada com os humanos modernos.
A revisão trouxe forte evidência de que o nível trófico da linhagem Homo que mais provavelmente levou aos humanos modernos evoluiu de uma fraca até uma alta posição carnívora durante o Pleistoceno, começando com o Homo habilis e atingindo o ápice no Homo erectus, com os humanos modernos (Homo sapiens) sendo caracterizados como hipercarnívoros (>70% da dieta oriunda de predação) e se especializando na caça de grandes animais até o Paleolítico Superior. No final do Paleolítico (~85 mil anos atrás), uma tendência de reversão da dieta altamente carnívoro foi iniciada, sendo reforçada no Mesolítico/Epipaleolítico e Neolítico, há cerca de 40 mil anos, culminando no advento da agricultura.
Em termos de biologia, uma das proeminentes evidências realçadas pelo estudo suportando que nossos ancestrais humanos eram hipercarnívoros é a acidez do nosso estômago, a qual é alta quando comparada a onívoros e mesmo a outros predadores. A produção e manutenção de uma forte acidez estomacal requer grande quantidade de energia, e sua existência é evidência para o consumo de alimentos de origem animal. A forte acidez fornece proteção contra perigosas bactérias encontradas na carne, e humanos pré-históricos, caçando grandes animais cuja carne fornecia suporte alimentar por dias até semanas, frequentemente consumiam carne já velha contendo grandes quantidades de bactérias, e portanto a necessidade de se manter um alto nível de acidez na cavidade estomacal. E análises genômicas de ecoespécies da bactéria Helicobacter pylori - adaptada ao estômago de humanos (5) - apontam que dieta rica em carnes e escassa em plantas acompanhou a expansão da nossa espécie pelo mundo desde nossa emergência na África, há mais de 200 mil anos (Ref.8).
Em algumas das outras evidências biológicas listadas pelos autores:
- Nossa morfologia intestinal é radicalmente diferente daquela observada nos chimpanzés, estes os quais, apesar de onívoros, possuem uma dieta especializada em plantas. Nosso intestino delgado é maior e o intestino grosso é mais curto, típico de carnívoros e limitando a habilidade dos humanos de extraírem energia das fibras de plantas.
- Em onívoros, a gordura é armazenada em um relativo pequeno número de grandes células adiposas, enquanto que em predadores, incluindo humanos, é o contrário: nós temos um número muito maior de células adiposas de menor dimensão. Além disso, temos reservas adiposas em quantidade muito maior do que outros primatas não-humanos, indicando adaptação a períodos de mais longo jejum. Essa adaptação pode ter ajudado a superar a errática oferta de grandes presas.
- Considerando que os humanos possuem um alto requerimento energético – especialmente devido à grande massa cerebral –, e hábitos diurnos, a caça de animais é conveniente para maximizar o aproveitamento do dia, ao fornecer 10 vezes mais energia por hora de atividade comparado com a busca e consumo de plantas.
- Adaptações para corridas de resistência são encontradas já no H. erectus, uma habilidade muito útil para a caça. Ombros nessa espécie são adaptadas para o lançamento de lanças.
- Humanos, como carnívoros, possuem uma baixa sensibilidade fisiológica (não-patológica) à insulina.
- Em termos de genética, os autores citam, por exemplo, que áreas do genoma humano são desligadas para permitir uma dieta rica em gordura, enquanto que nos chimpanzés – nossos parentes evolutivos mais próximos ainda vivos – áreas do genoma estão ligadas para permitir uma dieta rica em carboidratos, ou seja, tipicamente vegetariana.
Complementando com evidências arqueológicas, os pesquisadores destacaram que ferramentas de pedra específicas à utilização de alimentos planta-baseados só começaram a aparecer há cerca de 85 mil anos na África e há apenas 40 mil anos na Europa e na Ásia, e a prevalência dessas só aumentou pouco antes da emergência da agricultura, sinalizando aumento do consumo de plantas de forma bem tardia no Paleolítico.
Em termos de paleontologia, análises de isótopos de nitrogênio em colágenos fossilizados têm mostrado que os humanos eram altamente carnívoros até muito tarde, antes da emergência da agricultura. Cáries dentárias, evidência de consumo substancial de carboidratos, aparecem apenas há cerca de 15 mil anos na população humana, evidenciando um alto consumo de plantas. Aliás, além do H. sapiens, análises isotópicas nos dentes de Neandertais (Homo neanderthalensis) também apontam fortemente que essa espécie era carnívora, vivendo essencialmente como caçadores (6). Análise de isótopos estáveis confirmam que na Europa central, há ~45 mil anos, a dieta de humanos modernos era homogênea e baseada em grandes mamíferos terrestres, similar àquela de Neandertais, e com foco no consumo de cervídeos (incluindo renas), rinocerontes e cavalos (Ref.4).
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Seguindo a analogia zoológica com grandes carnívoros sociais que caçam grandes presas, os pesquisadores concluíram que os humanos foram hipercarnívoros, com cerca de 70% da dieta derivada de animais. Mesmo com o robusto declínio dessa natureza carnívora desde o final do Paleolítico, e emergência de novas adaptações* para uma dieta mais vegetariana e rica em carboidratos (incluindo inovações tecnológicas), características biológicas de carnívoros ainda hoje marcam de forma significativa nossa espécie. Humanos no Paleolítico não eram ‘caçadores-coletores’, eram essencialmente caçadores e provavelmente um dos mais temidos predadores do período.
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*Um exemplo notável é a α-amilase. No genoma dos humano modernos houve expansão do número de cópias dos genes codificantes de amilase (enzima que quebra amido em açúcares simples) de uma média de 8 para 11 nos últimos 12 mil anos, acompanhando a forte expansão da agricultura na Eurásia e maior presença de grãos ricos em carboidratos na dieta (Ref.6). Maior cópia de genes geralmente se traduz em maiores níveis das proteínas codificadas por esses genes. Amilase é produzida na saliva e no pâncreas, e é codificada pelos genes AMY1, AMY2A e AMY2B localizados no cromossomo 1, em uma região genômica chamada de "locus da amilase". Enquanto humanos possuíam uma média de 4 cópias do gene AMY1 [amilase salivar] na Europa há ~12 mil anos, esse número aumentou para uma média de 7 na atual população Europeia através de múltiplos eventos de duplicação/deleção [mutações] sob potencial seleção positiva.
> Evidência mais recente aponta que o primeiro evento de duplicação do gene AMY1 (gene da amilase salivar) ocorreu há mais de 800 mil anos, talvez antes da divergência do ancestral comum entre humanos modernos e Neandertais. Nesse último ponto, duplicação desse gene é também observada em Neandertais e Denisovanos. Indivíduos da nossa espécie já possuíam de quatro a oito cópias de AMY1 bem antes da agricultura e domesticação de plantas, sugerindo alto consumo de carboidratos significativamente mais cedo do que comumente pensado. Ref.7
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Aliás, o nível trófico carnívoro pode explicar a expansão do H. erectus para a Eurásia há cerca de 1,8 milhão de anos como resultado da presença de presas de grande porte nos novos territórios, e não como algo permitido pela grande flexibilidade da dieta. E Neandertais, como descendentes evolutivos diretos do H. erectus, continuaram a tradição de caça de grandes presas na Eurásia, assim como os humanos modernos. E a evolução de uma dieta carnívora parece possuir uma raiz muito antiga na linhagem hominini. Evidências paleobiológicas sugerem que carne se tornou uma importante parte da dieta hominini há cerca de 2,6-2 milhões de anos, com evidência objetiva de acesso primário às presas há pelo menos 1,84 milhão de anos (Ref.2) e evidência de processamento de grandes presas para a extração de carnes com ferramentas de pedra (tecnologias de corte) há ~2,9 milhões de anos (Ref.3).
Charles Darwin propôs que a adaptação de espécies para a obtenção e digestão de alimentos é a principal fonte de mudanças evolucionárias, algo também evidenciado pelos estudos evolutivos modernos. Portanto, a conclusão de que humanos eram superpredadores ao longo de grande parte do seu percurso evolutivo pode fornecer maior esclarecimento da evolução biológica e cultural da nossa espécie.
> Importante realçar que dietas veganas e vegetarianas podem ser também saudáveis para humanos, e estão associadas com risco reduzido de cânceres, doenças cardiovasculares e morte se bem planejadas. Ref.5
REFERÊNCIAS
- Ben-Dor et al. (2021). The evolution of the human trophic level during the Pleistocene. American Journal of Biological Anthropology, Volume 175, IssueS 72, Pages 27-56. https://doi.org/10.1002/ajpa.24247
- Domínguez-Rodrigo et al. (2022). Computer vision supports primary access to meat by early Homo 1.84 million years ago. PeerJ, 10:e14148. https://doi.org/10.7717/peerj.14148
- Plummer et al. (2023). Expanded geographic distribution and dietary strategies of the earliest Oldowan hominins and Paranthropus. Science, Vol 379, Issue 6632, pp. 561-566. http://dx.doi.org/10.1126/science.abo7452
- Smith et al. (2024). The ecology, subsistence and diet of ~45,000-year-old Homo sapiens at Ilsenhöhle in Ranis, Germany. Nature Ecology & Evolution. https://doi.org/10.1038/s41559-023-02303-6
- Gori et al. (2024). Cardiovascular health and cancer risk associated with plant based diets: An umbrella review. PLOS One, 19(5): e0300711. https://doi.org/10.1371/journal.pone.0300711
- Bolognini et al. (2024). Recurrent evolution and selection shape structural diversity at the amylase locus. Nature. https://doi.org/10.1038/s41586-024-07911-1
- Yilmaz et al. (2024). Reconstruction of the human amylase locus reveals ancient duplications seeding modern-day variation. Science. https://doi.org/10.1126/science.adn0609
- Tourrette et al. (2024). An ancient ecospecies of Helicobacter pylori. Nature. https://doi.org/10.1038/s41586-024-07991-z
- Ashton et al. (2024). Human exploitation of a straight-tusked elephant (Palaeoloxodon) in Middle Pleistocene deposits at Pampore, Kashmir, India. Quaternary Science Reviews, Volume 342, 108894. https://doi.org/10.1016/j.quascirev.2024.108894
