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Vacina Brasileira contra a dependência de cocaína venceu o Prêmio Euro, aproximando testes clínicos em humanos

Figura 1. À esquerda, pesquisadora exibe frasco da vacina Calixcoca: uso deve ser avaliado por meio de critérios clínicos. À direita, pino de cocaína comumente vendido nas ruas. (Foto: Centro de Comunicação Social / Faculdade de Medicina da UFMG)

 
A pesquisa da vacina terapêutica Calixcoca, conduzida na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e um promissor tratamento para processos biológicos associados à dependência química, foi a iniciativa destaque da segunda edição do Prêmio Euro Inovação na Saúde. A cerimônia de entrega foi realizada na última quarta-feira (18 de outubro), em São Paulo. A equipe da UFMG conquistou a premiação de 500 mil euros (cerca de R$ 2,6 milhões). O prêmio é organizado pela multinacional farmacêutica Eurofarma, que atua em mais de 20 países.


"Desenvolver ciência na América Latina não é fácil. A UFMG é, hoje, uma universidade que está fazendo a diferença," disse em entrevista o coordenador da pesquisa, professor Frederico Garcia, do Departamento de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da UFMG (Ref.1).


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Mais votada por médicos de 17 países, a Calixcoca superou outras 11 iniciativas inovadoras no campo da saúde desenvolvidas na América Latina, entre as quais, a SpiN-Tec, vacina contra a covid-19 que foi agraciada com 50 mil euros por ter sido uma das vencedoras na categoria Inovação em terapias. A cerimônia de premiação foi transmitida no canal da Eurofarma Brasil [YouTube].


Até o momento, a Calixcoca é financiada pelos governos federal e de Minas Gerais e com verbas de emendas parlamentares, e sua continuidade depende de novos aportes de recursos. A nova premiação pode ser crucial nesse sentido.


CALIXCOCA


Uma promissora estratégia para o tratamento de vício em cocaína são as assim chamadas "vacinas antidrogas". Essas vacinas induzem o sistema imune a produzir anticorpos que se ligam às moléculas de cocaína na corrente sanguínea (Fig.2). Essa ligação transforma a droga em uma molécula grande, que não passa pela barreira hematoencefálica (sangue-cérebro).


Figura 2. Molécula da cocaína.


No geral, drogas de abuso apresentam baixo peso molecular, e, portanto, geralmente não são imunogênicas (não induzem a produção de anticorpos), e isso inclui a cocaína. Modificações químicas nas moléculas de cocaína e a ligação dessas com proteínas antigênicas podem produzir moléculas altamente imunogênicas. A estrutura química da cocaína, exibindo terminações com aminas ou carboxilas, permite seu acoplamento com proteínas carregadoras na circulação sanguínea (ex.: albumina). Se esse complexo proteína-cocaína é adsorvido em um adjuvante (ex.: sais de alumínio) e injetado em um humano, temos grande potencial para a ativação de células-B e alto nível de anticorpos antidrogas como resposta imune. Esses anticorpos "anticocaína" podem se ligar às moléculas de cocaína em fluidos corporais (ex.: sangue), formando um completo anticorpo-cocaína. Esse complexo exibirá considerável tamanho molecular que diminui ou dificulta a passagem de cocaína através da barreira sangue-cérebro. Como resultado, temos uma significativa redução da atividade da cocaína no cérebro.


A vacina antidroga desenvolvida na UFMG, chamada de UFMG-V4N2 e apelidada de Calixcoca, usa uma inovadora proteína carregadora baseada em calixarenos. Nesse sentido, a molécula UFMG-V4N2 é um macrocíclico apresentando um alto peso molecular e composto de unidades fenólicas ligadas por duas pontes de metila nas posições orto à hidroxila. Estudos pré-clínicos com a Calixcoca demonstraram grande produção de anticorpos IgG anticocaínas com alta afinidade à molécula de cocaína. Em modelos de animais não-humanos, os anticorpos produzidos pela Calixcoca reduziram substancialmente a passagem de cocaína através da barreira sangue-cérebro e reduziram os efeitos da cocaína sobre o comportamento dos animais (Fig.3). E, mais recentemente, os pesquisadores demonstraram que a vacina é segura e eficaz em primatas não-humanos (saguis), um pré-requisito importante para testes clínicos em humanos (Ref.2). 


Figura 3. Exames de cintilografia comparam moléculas de cocaína marcadas radiotivamente que chegam ao cérebro de ratos vacinados (à direita) e de grupo controle (à esquerda). Ref.3

Talvez mais importante, os pesquisadores demonstraram que a vacina Calixcoca é capaz de prevenir a exposição de cocaína nas ratas gestantes e seus filhotes - algo inédito até o momento na medicina (Ref.3). Prevenir fetos e bebês da exposição à cocaína é um dos principais desafios hoje relativos à síndrome do uso de cocaína. Cocaína atravessa a barreira sangue-cérebro da mãe e do feto assim como a placenta (via difusão). Essa exposição produz sérias complicações obstétricas, no desenvolvimento e no neurodesenvolvimento fetais, e problemas comportamentais de longo prazo. Por exemplo, cocaína causa vasoconstrição generalizada materna e fetal que leva a insuficiência uteroplacentária, acidose e hipoxia fetal. Além disso, durante o aleitamento materno, cocaína pode causar vários danos ao bebê, como irritabilidade infantil, diarreia e convulsões.


Para evitar esses graves problemas de exposição durante a gestação e a lactação, o ideal é abandonar o uso de cocaína. Porém, apenas 25% dos usuários de cocaína conseguem parar o uso durante a gravidez (Ref.4). E, atualmente, nenhum tratamento é disponível para prevenir ou reduzir essa exposição.


Nos estudos clínicos com ratos, os animais que receberam cocaína e a Calixcoca ganharam 50% de peso e tiveram redução de 30% do número de abortos em decorrência do uso da vacina quando comparado ao controle (Ref.5). Além disso, os filhotes ficaram protegidos dos efeitos da droga, por meio dos anticorpos, que se prolongaram no leite materno por até um ano. Esse efeito beneficia a mãe que não consegue parar de usar droga durante a gestação e protege o bebê da exposição a ela durante esse período.


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No geral, a vacina Calixcoca representa uma promissora ferramenta terapêutica contra a dependência de cocaína e de crack (cocaína solidificada em cristais*) e prevenção de consequências obstétricas e fetais da exposição a essas drogas durante a gravidez. Em específico, a vacina pode complementar os tratamentos usuais para a dependência química desenvolvidos por equipes multidisciplinares, compostas de médicos, enfermeiros, psicólogos, assistentes sociais e terapeutas ocupacionais.


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*O crack geralmente é produzido via aquecimento do cloridrato de cocaína com bicarbonato de sódio (NaHCO3) e água. Sob a forma de cloridrato de cocaína, a cocaína forma um pó branco cristalino

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COCAÍNA E SAÚDE PÚBLICA


Segundo dados apresentados no Relatório Mundial sobre Drogas 2023, do Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crimes (UNODC), a cocaína foi a droga estimulante mais consumida no período. Em 2021, a estimativa foi a de que cerca de 22 milhões de pessoas ao redor do mundo tenham consumido a droga, o que representa 0,4% da população mundial adulta (Ref.6). Do total de usuários de cocaína, 1 em cada 4 se tornam dependentes. 


O Brasil é segundo o país onde mais se consome cocaína e crack, atrás apenas dos Estados Unidos. A cocaína é uma droga cada vez mais consumida no país, e dados de 2012 já revelavam a existência de 1,8 milhão de usuários de cocaína e crack. O percentual da prevalência do uso de cocaína uma vez na vida entre a população adulta é de 3,8%, o que representa cerca de 5 milhões de brasileiros com 18 anos ou mais. Nos últimos 12 meses, a utilização da cocaína observada na população adulta foi de 1,7%, o que abrange mais de 2 milhões de brasileiros. No caso dos adolescentes, 2,3% já declararam ter usado cocaína ao menos uma vez na vida e 1,6% deles, ou 225 mil adolescentes, confessaram ter usado a droga nos últimos 12 meses (Ref.6).


Em seu mecanismo de ação, a cocaína produz estimulação adrenérgica central e periférica, bloqueando a recaptação pré-sináptica de noradrenalina e dopamina, aumentando, assim, suas concentrações pós-sinápticas. Diferente de outras drogas, a cocaína age de forma direta no circuito de recompensa e inibe a recaptação de dopamina do dependente. É como se a cocaína agisse no ponto central de todo esse sistema, gerando grande dificuldade de abandonar seu consumo. E existe evidência recente que a dependência nessa droga causa disrupção específica nos neurônios de dopamina que governam como nós percebemos e aprendemos a partir de recompensas (Ref.7). A forma de usar também influencia, assim como fatores genéticos também influenciam e podem aumentar o risco da dependência. 


Além de extensos danos cerebrais, a cocaína pode causar sérios danos cardiovasculares, incluindo infarto do miocárdio (Ref.8).


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> A cocaína e o crack são praticamente a mesma substância, mas ativam o circuito de recompensa de formas distintas. Como a cocaína é cheirada, a velocidade de absorção é menor do que a absorção do crack, que é tipicamente fumado e, por isso, causa mais dependência. 

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Atualmente, os tratamentos tradicionais para a dependência de cocaína possuem eficácia muito limitada. Para se ter uma ideia, apenas um em cada cinco dependentes em programas de tratamento consegue deixar ou passa a lidar com a droga de maneira a não comprometer seu funcionamento social, profissional ou familiar. Isso acontece porque a cocaína, cada vez que é consumida, reativa o circuito de recompensa, e essa reativação leva o usuário novamente à compulsão e à perda de controle. 


A vacina Calixcoca pode melhorar esse prognóstico ao bloquear a passagem da droga na corrente sanguínea nos pacientes em abstinência. 


REFERÊNCIAS

  1. https://ufmg.br/comunicacao/noticias/calixcoca-e-a-vencedora-do-premio-euro 
  2. Garcia et al. (2023). Safety and immunogenicity of the anti-cocaine vaccine UFMG-VAC-V4N2 in a non-human primate model. Vaccine, Volume 41, Issue 13, Pages 2127-2136. https://doi.org/10.1016/j.vaccine.2023.02.031 
  3. https://ufmg.br/comunicacao/noticias/calixcoca-traz-esperanca-mas-nao-e-panaceia-alerta-frederico-garcia
  4. Garcia et al. (2021). The GNE-KLH anti-cocaine vaccine protects dams and offspring from cocaine-induced effects during the prenatal and lactating periods. Molecular Psychiatry. https://doi.org/10.1038/s41380-021-01210-1
  5. https://repositorio.ufmg.br/handle/1843/56124
  6. https://crid.fmrp.usp.br/noticias/pesquisadores-da-ufmg-desenvolvem-a-calixcoca-vacina-terapeutica-para-o-tratamento-da-dependencia-em-cocaina/
  7. Konova et al. (2023). Reduced neural encoding of utility prediction errors in cocaine addiction. Neuron. https://doi.org/10.1016/j.neuron.2023.09.015
  8. Jornal Brasileiro de Patologia e Medicina Laboratorial, 45(5). https://doi.org/10.1590/S1676-24442009000500007

Vacina Brasileira contra a dependência de cocaína venceu o Prêmio Euro, aproximando testes clínicos em humanos Vacina Brasileira contra a dependência de cocaína venceu o Prêmio Euro, aproximando testes clínicos em humanos Reviewed by Saber Atualizado on outubro 21, 2023 Rating: 5

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