Dança e canção de ninar não são comportamentos humanos universais, aponta estudo
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Figura 1. Criança Aché junto com a mãe. O termo "aché" significa "pessoa real". |
Cantar socialmente e dança são comportamentos frequentemente assumidos de serem inerentes à nossa espécie (Homo sapiens) e manifestados naturalmente em todas as culturas. No caso do canto social, é tradicionalmente pensado ser um instinto parental cantar para o bebê se acalmar ou dormir ("canção de ninar"). Porém, um estudo conduzido por antropólogos da Universidade da Califórnia (UC Davis), EUA, desafiou a ideia de que dança e canção de ninar são universais entre humanos. O estudo, publicado no periódico Current Biology (Ref.1), é baseado em particular na análise compreensiva de longo prazo do povo Aché do Norte, uma população nativa no Paraguai. O achado sugere que esses dois traços comportamentais são aprendidos, ou seja, não emergem espontaneamente em humanos modernos: indivíduos precisam inventá-los e transmiti-los culturalmente. Sem contínua exposição e transmissão cultural, esses comportamentos podem ser extintos.
"Com exceção do canto em igreja introduzido por missionários, adultos Aché do Norte cantam sozinhos e em um número limitado de contextos," disse em entrevista Manvir Singh, professor de antropologia na UC Davis e um dos autores do novo estudo (Ref.2). "Até onde nós podemos dizer, antropólogos nunca observaram dança ou canto bebê-direcionado nos Aché do Norte."
Música parece ser universal entre humanos modernos, ou seja, um comportamento presente em todas as populações humanas. Comportamento universal contrasta com "comportamento quase-universal", o qual ocorre na maioria mas não em todas as populações humanas, e com "comportamento estatisticamente universal", o qual emerge acima de um limite pré-definido. Universalidade é de interesse na antropologia por causa das suas implicações no nosso entendimento da psicologia e da evolução humana: um comportamento que existe em todas as populações humanas provavelmente emerge a partir de capacidades cognitivas que são compartilhadas entre humanos em todos os lugares e enraizadas em um substrato biológico comum (ex.: genética).
Estudos etológicos e etnográficos têm fornecido evidência para a universalidade absoluta de vários comportamentos musicais, e, entre eles, podemos destacar a dança orientada por música e a canção de ninar. Em vários domínios funcionais (incluindo melodias amorosas e cantos de cura), músicas dançadas e cantos de ninar são os mais reconhecíveis para ouvintes inexperientes e exibem as formas mais estereotipadas ao longo de diferentes culturas. Essas observações têm, em parte, inspirado teorias de que musicalidade é uma adaptação que evoluiu a nível genético no Homo sapiens e não uma simples invenção cultural.
Teorias mais aceitas nesse sentido postulam que a música evoluiu no sentido de permitir ligação social (ex.: danças em grupos e fortalecimento do laço entre mãe e bebê com canções afetivas) ou no sentido de servir como um sinal crível para o grupo em contextos de sinalização visando coalizão (dança) e cuidado infantil (canção de ninar). Por exemplo, cantar para bebês parece emergir de forma instintiva nos pais em múltiplas culturas e existe evidência experimental recente de que canção de ninar melhora de forma significativa o bem-estar dos bebês (Ref.3). Através do canto, pais podem estar talvez sinalizando aos bebês mensagens confortantes como "Eu estou perto, eu ouço você, eu estou cuidando de você".
Porém, algumas evidências etnográficas têm questionado a alegação de universalidade para certos comportamentos humanos considerados inatos, e isso inclui produção musical em grupo e canção de ninar. Por exemplo, registros etnográficos sugerem que os Innu - um povo indígena do Canadá - não engajam em canções de ninar e não produzem fábulas e histórias de moral visando inculcar bom comportamento. Além disso é incerto o porquê de certos comportamentos terem sido alegadamente perdidos e quais os fatores demográficos ou sociais contribuintes para essas alegadas extinções comportamentais.
Os Aché - também conhecidos como guaiaquis - são um povo indígena Tupi, falante de uma língua da família guarani, que vive na região oriental do Paraguai. Atualmente, somam ~2 mil indivíduos e, além do próprio idioma, empregam no dia-a-dia o guarani-paraguaio, o espanhol e mesmo o português, dada a proximidade que os brasiguaios vivem de seus territórios (Ref.4). Tradicionalmente, eram um povo praticante da caça e da coleta, que vivia na floresta, em pequenos acampamentos com até 30 pessoas. O estilo caçador-coletor, em período integral, persistiu até a década de 1970.
Carne é a base da dieta Aché (1) e os homens responsáveis por obtê-la (caçadores) são respeitados pelas suas habilidades de caça (Fig.2). O arco e flecha dos Aché é muito forte e possui mais de 2 metros de comprimento, sendo produzido por madeira de palma. As mulheres extraem fibra de palmas (Fig.3) e coletam frutas e larvas de inseto. Elas também são responsáveis por cuidar dos filhos e por mover o acampamento, algo que ocorre quase diariamente. Alimento é preparado e compartilhado igualmente entre os membros do grupo. Poligamia é aceita por ambos os sexos e aborto é permitido, mas incesto é proibido (2).
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Figura 2. Um Aché chamado WaChugi caçando um macaco no alto de uma árvore. |
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Figura 3. Banda elipsoidal (42 x 68 cm) para carregar bebês, feita de pindó (fibras de palma), samu’ũ e urtiga. A peça é de 1997, feita na comunidade Aché de Yñarõ, e hoje preservada no Museo del Barro. |
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> Nos atuais assentamentos, os Aché ainda retêm a linguagem aché, que inclui um vasto vocabulário de palavras associadas à selva que não possuem nenhum equivalente em qualquer outro idioma.
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Ao longo de todo o século XX, os Aché sofreram pressões dos diversos ciclos econômicos que se desdobraram na região leste do Paraguai, como a extração de erva-mate, a emergência de intensa atividade madeireira, o plantio de soja e a criação de gado. As relações violentas e assimétricas entre os Aché e a sociedade paraguaia se acentuaram especialmente a partir dos anos 1950, quando o país estava sob o comando do ditador Alfredo Stroessner (!). Nesse período ditatorial, e ainda vivendo na floresta, diversos grupos Aché foram perseguidos, capturados, vendidos, escravizados e mortos visando abrir caminho em áreas indígenas para penetração comercial.
No novo estudo, os pesquisadores analisaram dados etnomusicológicos de uma subpopulação de Aché ao norte da área de ocupação desses indígenas. Em específico, um dos autores do estudo, Kim Hill, antropólogo e pesquisador no Instituto de Origens Humanas da Universidade do Estado do Arizona, EUA, acompanhou diretamente o dia-a-dia das comunidades Aché dessa subpopulação entre 1977 e 2020, e literalmente viveu um total de 122 meses (~10,2 anos) nessas comunidades.
Hill geralmente residia em cabanas Aché com uma família ou em um acampamento próximo, coletando milhares de horas de observação direta dos afazeres e tradições Aché, incluindo relação comportamental entre mulheres e bebês. Os Aché não possuem cerimônias secretas e nem normas sociais demandando modéstia ou separação entre os sexos. Homens e mulheres podem interagir abertamente e casualmente. Bebês passam quase 100% do tempo com as mães.
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Figura 4. Hill na floresta com os Aché comendo mel silvestre, um alimento comum para caçadores-coletores. |
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Figura 5. ChChugi, amigo de Hill, um famoso guerreiro Aché se preparando para defender a sua terra. Ele está usando um "boné" tradicional adornado com penas de urubu. |
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Figura 6. Hill conduzindo entrevistas com membros de uma comunidade Aché do Norte, ao redor de 2010. |
Junto com outros pesquisadores, Hill também conduziu extensiva pesquisa sobre socioecologia Aché e, fluente na linguagem Aché, registrou e traduziu canções diversas produzidas pelos indígenas.
Habitando florestas neotropicais no leste do Paraguai, a população dos Aché do Norte em 1930 totalizava ~240 indivíduos em 1930. Até 1970, cresceu para 547. Porém, conflitos com Paraguaios e epidemias reduziram o número para ~338 indivíduos entre 1970 e 1976, com subsequente migração de indivíduos - frequentemente remoção forçada de crianças e adolescentes Aché por paraguaios - reduzindo a população em mais 11%. Nas décadas subsequentes, a população voltou a crescer. Em 2010, eram aproximadamente 800 indivíduos.
Segundo os dados coletados e analisados no estudo, canto entre os Aché do Norte era limitado a fontes solitárias, realizado por um indivíduo ao invés de um grupo de indivíduos. Homens cantavam mais do que as mulheres e ambos intercalavam entre passagens cantadas com palavras e sonorizações sem palavras. Os homens cantavam primariamente sobre caça, mas às vezes cantavam sobre eventos atuais e conflitos sociais. Mulheres cantavam quase sempre sobre familiares mortos, incluindo um estilo marcado por frequentes choros ritualísticos (vídeo abaixo). Crianças às vezes cantavam imitando os estilos de canto dos adultos.
Indivíduos Aché do Norte também criavam melodias curtas em flautas de bambu, mas combinação de música vocal com música instrumental era rara ou inexistente na produção musical dessa população.
Além disso, os pesquisadores não observaram nenhum evento de canto bebê-direcionado (ex.: canção de ninar) e de dança (movimento intencionalmente sincronizado com música) entre os Aché do Norte. Mas as mães Aché usavam outros métodos para acalmar os bebês, incluindo discursos animados, caretas, sorrisos e cócegas (Fig.7A).
É incerto se ausência de canto bebê-direcionado se aplica também para os indígenas vivendo nas comunidades ao sul da ocupação Aché. Segundo registros do missionário Americano Bjarne Fostervold, que passou quase 50 anos vivendo com um dos três grupos dialéticos dos Aché do Sul, nenhum canto bebê-direcionado foi observado. Porém, ao contrário dos Aché do Norte, algumas populações ao sul foram observadas dançando - e cantando em sincronia - nos anos seguindo contato com estrangeiros e assentamento (Fig.8).
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Figura 8. Indivíduos Aché do Sul tocando flautas e dançando coletivamente. |
Os autores do novo estudo apontaram também que agora é possível que esses comportamentos (dança e canção de ninar) tenham sido introduzidos nos Aché do Norte por missionários paraguaios, particularmente a partir de 2020, ponto em que crescente aculturação por estrangeiros passou a ser testemunhada. Missionários católicos e evangélicos começaram a administrar comunidades Aché pouco tempo após contato e eventualmente introduziram cantos eclesiásticos, os quais envolvem típicos louvores - às vezes traduzidos para a linguagem Aché.
Mas como os Aché do Norte perderam a dança e a prática do canto de ninar?
Linhas convergentes de evidência - incluindo análises filogenéticas - sugerem que esses comportamentos foram perdidos durante grandes declínios culturais seguindo efeito de gargalo (3), quando poucos indivíduos de uma população original se estabelecem em uma nova área e formam uma nova população. Assim como os povos Awá, Sirionó e Yuqui, os Aché eram caçadores-caçadores que falavam a linguagem Tupi e viviam em bandos móveis (nômades). Essas populações provavelmente não foram sempre caçadores-coletores, mas derivadas de sociedades ancestrais que eram sedentárias, praticavam horticultura e possuíam traços culturais e tecnológicos mais complexos (2), incluindo canoas, xamanismo e estrutura grupal corporativa (ex.: um sistema de clãs). Além disso, os Aché do Norte exibem menor complexidade cultural do que os Aché do Sul e, em relação a esses últimos:
- perderam a habilidade de fazer fogo (Fig.7B);
- possuem crenças religiosas menos complexas;
- não produzem instrumentos musicais com cordas;
- e exibem um menor número de estilos musicais, incluindo canto em grupo.
Alguns indivíduos Aché do Norte têm reportado que seus ancestrais sabiam como fazer fogo, levantando a possibilidade de que esse conhecimento foi perdido de forma relativamente recente, potencialmente no século XIX.
Essas evidências culturais parecem refletir um efeito fundador serial - apontando mais uma vez para o efeito de gargalo (bottleneck). E evidência genética corrobora esses padrões. Os Aché do Norte possuem relação genética mais próxima de outras populações falantes de Tupi, mas exibem níveis muito menores de heterozigosidade (menor diversidade genética) do que a maioria das outras populações nativas de Ameríndios, consistente com a ocorrência de um ou mais gargalos genéticos.
Essas observações sugerem que uma população falante de tupi, ancestral de todas as comunidades modernas de Aché, experienciou um efeito de gargalo durante o qual os comportamentos de canção de ninar e outros aspectos culturais complexos, incluindo horticultura e xamanismo. De fato, canção de ninar e dança têm sido observados entre falantes de outras linguagens tupi, como os Araweté e Guarani, consistente com a presença desses traços entre os proto-Tupi. Mais tarde, coincidente com ou seguindo divergência em relação aos Aché do Sul, os ancestrais dos Aché do Norte parecem ter experienciado um ou mais efeitos de gargalo adicionais, resultando em mais perda de diversidade genética e de complexidade cultural, incluindo desaparecimento da dança.
Os achados do estudo desafiam, portanto, a ideia de que dança e canção de ninar são comportamentos humanos universais e sugerem que ambos precisam ser aprendidos, assim como a produção de fogo.
(!) Genocídio dos Aché (Ref.4)
O relatório de Mark Münzel, The Aché Indians: genocide in Paraguay (1973), versa sobre o extermínio de indígenas Aché no Paraguai na década de 1950 e 1960 promovido por escravagistas, militares, madeireiros e fazendeiros, com anuência e financiamento do Estado paraguaio na figura do ditador militar Alfredo Stroessner. Em determinados trechos acerca dos caminhões repletos de indígenas Aché levados para Curuguaty, lotados após a realização de caças promovidas contra os mesmos indígenas, seguidas de estupro de mulheres jovens e crianças antes de serem presas nos ônibus e caminhões. Os veículos utilizados, devido ao abarrotamento, o movimento cambaleante e o medo, causavam vômitos que atingiam aos corpos vizinhos de cada Aché aprisionado. O relatório, ainda, traz depoimentos do antropólogo Chase Sardi: "Os Achés da Reserva são verdadeiros prisioneiros de um campo de concentração." Ao que Meliá confirma: "A Reserva Aché é um cemitério Aché".
REFERÊNCIAS
- Singh & Hill (2025). Loss of dance and infant-directed song among the Northern Aché. Current Biology, Volume 35, Issue 10, P2444-2447.E1. https://doi.org/10.1016/j.cub.2025.04.018
- https://www.ucdavis.edu/news/study-suggests-dance-and-lullabies-arent-universal-human-behaviors
- Cho et al. (2025). Ecological Momentary Assessment Reveals Causal Effects of Music Enrichment on Infant Mood. Child Development. https://doi.org/10.1111/cdev.14246
- https://jornal.usp.br/artigos/quando-nosso-povo-foi-cacado-como-animais-memoria-do-genocidio-ache-no-paraguai/
- Johnson & Becker (2023). "Quando cada caso não é um caso”: análise discursivaetnográfica das violências estruturais estatais disparadas pela criminalização das existências e resistências Kaiowá e Guarani no sul de Mato Grosso do Sul. Revista Direito e Praxis. https://doi.org/10.1590/2179-8966/2023/75198
- https://museoverde.org/en/the-great-chaco/le-popolazioni-originarie/ache/
