Cacatua de Goffin é a terceira espécie conhecida capaz de usar kit de ferramentas
Figura 1. (a) Ilustração de uma cacatua de Goffin carregando um kit de ferramentas. (b) Foto de uma real cacatua de Goffin usando uma ferramenta para furar uma membrana. |
O uso de 'kits de ferramentas' (conjunto de diferentes ferramentas para um fim específico) constitui um dos mais elaborados exemplos de tecnologia animal, e, além de humanos, só foi reportado na natureza em chimpanzés (gênero Pan) e em uma espécie de cacatua (Cacatua goffniana, popularmente conhecida como "Cacatua de Goffin") (1). Porém, enquanto que chimpanzés conseguem transportar de forma flexível o kit de ferramentas necessário para uma tarefa específica, tal comportamento não havia ainda sido demonstrado para as cacatuas de Griffin. O transporte flexível de um kit de ferramentas fornece forte suporte para a identificação de um genuíno uso planejado de múltiplas ferramentas para um único propósito, porque implica o reconhecimento de que diferentes ferramentas são necessárias para o trabalho, e não a consequência de um simples resultado de "falha" (limitação) de uma ferramenta durante o trabalho.
(1) Para mais informações: Cacatuas são capazes de inventar ferramentas e usá-las de forma coordenada!
Agora, em um estudo publicado no periódico Current Biology (Ref.1), pesquisadores demonstraram em uma série de experimentos que as cacatuas de Griffin podem também usar e transportar de forma flexível um conjunto de diferentes ferramentas, planejando um trabalho futuro que necessita de um kit de ferramentas. Os resultados do estudo sugerem uma evolução convergente relativa ao uso associativo de ferramentas entre aves e primatas.
Inovações no uso de ferramentas são a forma primária de evolução tecnológica entre as espécies. No entanto, apesar de raras nos geral, inovações de ferramentas podem ainda ocorrer em um considerável espectro de animal em diferentes escalas de complexidade, com a vasta maioria dos exemplos representados por interações simples, primárias ou mesmo auto-direcionadas de objetos. Os mais sofisticados tipos de inovações de ferramentas registrados até o momento são aqueles que envolvem mais de uma ferramenta para alcançar um único objetivo (uso associativo de ferramenta). Dentre o uso associativo de ferramentas, complexidade emerge por uma variedade de razões, como o fato de diferentes ferramentas terem funções complementares; cada ferramenta requerer diferentes padrões de movimento; um número total maior de relações espaciais a serem consideradas; ou mesmo a necessidade para um planejamento sofisticado de ação.
Uma forma particularmente notável de uso associativo de ferramentas é o uso de duas ou mais ferramentas de diferentes tipos e funções para o mesmo objetivo, tradicionalmente referida como "kit de ferramenta". Apenas duas espécies não-humanas têm sido cientificamente descritas usando kit de ferramentas no meio selvagem: chimpanzés e, mais recentemente, as cacatuas de Goffin. Chimpanzés se destacam no uso de ferramentas em termos de variedade, diversidade e dependência cognitiva-cultural. Esses primatas têm demonstrado uma grande capacidade de inovar soluções para problemas físicos através do uso de ferramentas, estas as quais diferem entre regiões geográficos devido a uma rica e diversa cultura produzida por diferentes populações.
Um exemplo clássico são chimpanzés na floresta de N'doki, no norte do Congo, os quais usam um kit de ferramentas para "pescar" cupins - uma inovação cultural que facilita acesso a ninhos desses insetos, incluindo acesso subterrâneo. As ferramentas usadas por esses chimpanzés possuem pelo menos duas características complementares: um graveto perfurante (curto e rígido) usado para fazer um buraco no monte de terra dos cupins, e um graveto de "pesca" (longo e flexível) para acessar regiões mais profundas do monte e extrair cupins soldados agressivos. Além de transportar ambas as ferramentas para o local do ninho - planejando previamente realizar as duas ações durante o trabalho -, esse transporte é feito de forma flexível para poupar esforços desnecessários: dependendo das características do ninho de cupins, os primatas carregam somente o graveto de pesca ou ambos (gravetos perfurante e de pesca).
Papagaios (ordem Psittaciformes) estão entre as poucas espécies que possuem traços compartilhados com os primatas em termos de capacidade cognitiva, apesar de estarem muito longe relacionadas em termos filogenéticos (2). Essas aves possuem um relativo grande cérebro, complexas interações sociais e prolongado cuidado parental. Porém, devido a adaptações físicas - como um bico altamente especializado e eficiente -, essas aves tipicamente não estão associadas com o uso de ferramentas. Uma exceção notável são as cacatuas de Goffin (C. goffiniana).
(2) Para mais informações:
- Alta inteligência parece ter evoluído de forma convergente entre humanos e papagaios
- Neurocientistas descobrem porque os papagaios são tão inteligentes
Cacatuas de Goffin são papagaios de porte médio endêmicos das Ilhas de Tanimbar, na Indonésia. Como todos os papagaios, essas cacatuas não possuem ancestralidade em termos de esconder/armazenar alimento ou de construção de ninhos. Todavia, possuem uma inteligência já comparada com humanos de 3 anos de idade, uma forte urgência de combinar objetos (recreativamente e funcionalmente) e são coletores extrativistas e oportunistas de alimentos, características essas associadas com inovações no uso de ferramentas. Em ambiente laboratorial e selvagem, essas aves já demonstraram capacidade de inventar e usar múltiplas ferramentas para a resolução de problemas físicos, especialmente visando acesso a sementes.
Porém, até o momento, era incerto se as cacatuas de Goffin são capazes de planejar o uso de múltiplas ferramentas visando um trabalho futuro específico (uso consciente de um kit de ferramentas).
Para investigar a questão, pesquisadores da Universidade de Viena de Medicina Veterinária conduziram uma série de experimentos envolvendo cacatuas de Goffin e um dos seus alimentos favoritos: sementes de caju. Dentro de uma caixa transparente de acrílico, eles colocaram uma única semente sobre uma plataforma, então bloquearam o acesso das aves com o uso de uma pequena membrana. Uma de cada vez, 10 cacatuas criadas em cativeiro foram expostas à caixa e oferecidas duas ferramentas: um graveto curto, rígido e pontiagudo, e um canudo longo e flexível (Fig.2).
Figura 2. Ferramentas disponibilizadas para as cacatuas completarem a tarefa: canudo longo e flexível (à esquerda) e graveto rígido e pontiagudo (à direita). Osuna-Mascaró et al., 2023 |
A maioria das aves usaram as ferramentas ao longo das 15 sessões de teste. Primeiro, a caixa com a semente foi colocada bem próxima das duas ferramentas, permitindo fácil acesso das aves tanto às ferramentas quanto à caixa, como mostrado no vídeo abaixo. Para alcançar a semente, a ave pegava o graveto curto com o bico, o atravessava pela abertura da caixa e perfurava a membrana. Como o graveto era muito curto para alcançar a semente dentro da caixa, a ave deixava a ferramenta perfurante de lado e pegava o canudo flexível e mais longo, alcançando finalmente a semente, derrubando-a da plataforma e, finalmente, capturando o lanche com o bico. Sete das 10 cacatuas conseguiram aprender por conta própria a extrair as sementes com as ferramentas, e 2 delas (Figaro e Fini) completaram a tarefa dentro de 35 segundos na primeira tentativa.
Em seguida, os pesquisadores testaram a habilidade das cacatuas de mudar o uso de ferramenta de forma flexível dependendo da situação. Para fazer isso, eles apresentaram cada cacatua a dois tipos diferentes de caixa: uma com uma membrana e outra sem a membrana. As cacatuas foram apresentadas às mesmas duas ferramentas, mas só precisavam do graveto curto quando a membrana estava presente. Todas as cacatuas passaram no teste de flexibilidade em um curto período de tempo e foram capazes de prontamente reconhecer quando uma única ferramenta era suficiente.
Finalmente, os pesquisadores conduziram um experimento para testar a habilidade das cacatuas de transportar o kit de ferramentas dependendo das necessidades. Eles colocaram as cacatuas através de uma série de desafios cada vez mais difíceis para alcançar as caixas: primeiro elas tinhas que escalar uma pequena escada carregando as ferramentas; então elas tinham que voar horizontalmente com as ferramentas; e, então, no último teste, as aves tinham que carregar as ferramentas enquanto voavam verticalmente. Como no experimento prévio, as aves às vezes eram apresentadas a caixas com as membranas e às vezes sem a membrana, e, portanto, tinham que decidir se o problema requeria uma ou ambas as ferramentas.
A maioria das cacatuas exibiram alta flexibilidade no uso do kit de ferramentas, carregando uma ou duas quando necessário. Uma delas (Figaro), porém, decidiu sempre levar as duas ferramentas em todas as tarefas para não gastar tempo. Outro comportamento interessante foi notado: 4 cacatuas aprenderam a levar ambas as ferramentas juntas - quando a caixa tinha membrana - colocando o graveto dentro do canudo, uma estratégia que facilitava o transporte e resumia duas viagens em uma.
E o mais notável no final desses experimentos é que o contexto para o uso do kit de ferramentas representava algo totalmente novo para as cacatuas, e não algum tipo de comportamento inato, já que não existe um cenário equivalente no meio selvagem. Em outras palavras, foi um uso inovador de ferramentas, e desenvolvido de forma rápida e individual. Nesse último ponto, aliás, cada cacatua durante os experimentos usou uma técnica levemente diferente das outras cacatuas para manipular as ferramentas.
O estudo é o primeiro a demonstrar uso efetivo, planejado e consciente de kit de ferramentas fora do grupo dos primatas. Especificamente, a cacatua de Goffin é a terceira espécie conhecida que possui a habilidade de reconhecer a necessidade para o uso de um kit de ferramentas, antes só descrita em chimpanzés-comuns (Pan troglodytes) e na nossa espécie (Homo sapiens).
REFERÊNCIAS
- Osuna-Mascaró et al. (2023). Flexible tool set transport in Goffin’s cockatoos. https://doi.org/10.1016/j.cub.2023.01.023
- https://www.eurekalert.org/news-releases/978441 (Cell Press)
- https://www.science.org/content/article/watch-genius-bird-plan-its-handyman-job