Cacatuas são capazes de inventar ferramentas e usá-las de forma coordenada!
O uso de diferentes ferramentas para alcançar um único objetivo é considerado um traço cognitivo exclusivo da tecnologia de humanos e de outros primatas. Agora, em um estudo publicado no periódico Current Biology (1), pesquisadores reportaram a descoberta de dois distintos métodos de manufatura de ferramentas e o uso de um conjunto de ferramentas em cacatuas de Goffin (Cacatua goffniana) selvagens. Até três tipos de ferramenta de madeira, diferindo em suas propriedades físicas e cada uma servindo para uma diferente função, foram manufaturadas e empregadas a extrair material embebido com sementes da fruta pertencente à espécie Cerbera manghas. E esse uso avançado de ferramentas foi observado apenas em dois indivíduos em cativeiro e em alguns livres no meio selvagem, e mostrou-se flexível e variável, indicando claramente que o achado não é algo fruto de determinismo genético, e, sim, de uma real invenção e subsequente propagação do invento via aprendizado social.
Uso de ferramenta é definido como um sistema corpo+objeto que cria uma interface biomecânica entre um objeto segurado e o alvo. Porém, nem todo uso de ferramenta requer inteligência e está envolvido em um processo de evolução cognitiva. Nesse sentido é crucial distinguir entre uso de ferramenta inovador (espontaneamente adquirido, aprendido individualmente, ou socialmente espalhado) e especializado (inflexível, e de amplo uso na espécie).
Papagaios (ordem Psittaciformes) estão entre as poucas espécies que possuem traços compartilhados com os primatas em termos de capacidade cognitiva, apesar de estarem muito longe relacionados em termos filogenéticos (2). Essas aves possuem um relativo grande cérebro, complexas interações sociais e prolongado cuidado parental. No entanto, nunca se considerou uso de ferramenta por papagaios devido à presença de adaptações muito sofisticadas para a busca e processamento de alimentos, incluindo garras e bicos afiados muito versáteis.
(2) Para mais informações:
- Alta inteligência parece ter evoluído de forma convergente entre humanos e papagaios
- Neurocientistas descobrem porque os papagaios são tão inteligentes
Cacatuas de Goffin (C. goffiniana), são papagaios de porte médio endêmicos das Ilhas de Tanimbar, na Indonésia. Como todos os papagaios, essas cacatuas não possuem ancestralidade em termos de esconder/armazenar alimento ou de construção de ninhos. Todavia, elas possuem uma inteligência já comparada com humanos de 3 anos de idade, uma forte urgência de combinar objetos (recreativamente e funcionalmente) e são coletores extrativistas e oportunistas de alimentos, características essas associadas com inovações no uso de ferramenta. Em ambientes laboratoriais, uso inovador de ferramentas já foi observado em cacatuas de Goffin, mas evidência em ambiente selvagem não existia. Mesmo entre primatas não-humanos, evidência de uso inovador de ferramentas no meio natural existe apenas para os chimpanzés e orangotangos.
No ambiente natural, essas cacatuas já foram observadas de coletar várias fontes de alimento, incluindo algumas que requerem a extração (como cocos e mamões prematuros). No entanto, Goffins selvagens não têm sido observados usando ferramentas no ambiente nativo apesar de extensivos esforços de pesquisa e de monitoramento.
No novo estudo, pesquisadores mostraram tanto no ambiente natural quanto em cativeiro que as cacatuas de Goffin são capazes de manufaturar ferramentas equivalentes a uma alavanca (ferramenta robusta), um picador de gelo (ferramenta média) e uma colher (ferramenta fina) para abrir e alcançar as sementes de uma das frutas preferidas dessas aves, e em uma ordem específica, como esquematizado na imagem abaixo. Esse nível de habilidade cognitiva só havia sido antes observado em humanos, chimpanzés e macacos-capuchinos.
Para a descoberta, os cientistas capturaram 15 indivíduos (cacatuas de Goffin) para observá-los por vários meses em um aviário, e depois libertá-los. Inicialmente, com um número de frutas oferecidas como alimento (ex: mamão e coco), nenhum comportamento de uso de ferramenta foi observado no sentido de auxiliar a alimentação. As aves usavam objetos diversos, como gravetos, mas apenas com finalidade recreativa. Então, em junho de 2019, um dos pesquisadores observou no ambiente natural dessas aves uma fruta antes ignorada da árvore manga do mar (Cerbera manghas), com marcas de mordida de cacatuas.
Com o tamanho de um pequeno abacate e tóxica para humanos, a manga do mar contém uma polpa avermelhada cercada por um duro caroço que engloba sementes muito nutritivas. Alcançar essas sementes não é uma tarefa fácil, mesmo com uma ave possuindo bicos muito afiados, e a força necessária para abrir o caroço chega a exceder o equivalente a 50 quilos de peso.
Ao fornecer essas frutas para as cacatuas em cativeiro, os pesquisadores tiveram uma grande surpresa. Um dos machos no grupo pegou uma das frutas e, após descascá-la com o bico, rapidamente arrancou um pequeno galho dentro do aviário e, com rápidas mordidas, produziu uma ferramenta na forma de cunha. Segurando a fruta com seu pé esquerdo, a ave usou sua língua para encaixar a cunha em uma fissura do caroço e a forçou para abri-lo. Em seguida, a ave pegou uma farpa e a modelou na forma de uma ferramenta muito afiada, usando-a para perfurar a camada interior protegendo as sementes. Finalmente, a ave fabricou uma terceira ferramenta de outro pedaço de galho, modelando-o na forma de uma ferramenta achatada que foi usada como uma colher para remover as sementes, como pode ser observado no vídeo abaixo. A técnica usada pelas cacatuas é particularmente complexa, requerendo a manufatura de tipos específicos de ferramentas e envolvendo ações consecutivas e de alta precisão, incluindo variável uso de força e de posicionamento.
Outro ponto importante da descoberta: apesar dos pesquisadores terem fornecido uma grande quantidade dessas frutas para as cacatuas no aviário, apenas dois machos produziram e usaram as ferramentas para abrir os caroços e alcançar as sementes. Se esse uso sofisticado de ferramenta fosse uma simples predisposição genética, todas as aves ali no aviário o fariam. Ou seja, um ou outro indivíduo inventou o método de forma independente na natureza, e outros testemunhando a invenção na prática passaram a copiar esse método (aprendizado social). Aliás, aprendizado social (memorização e repetição) de complexos comportamentos já foram amplamente observados entre as cacatuas (3). E mais: o uso e o processo de manufatura dessas ferramentas variaram entre as cacatuas, indicando flexibilidade para atender as características do ambiente e do caroço (ex.: maior ou mais duro).
(3) Para mais informações: Complexa cultura de aprendizado observada entre cacatuas na Austrália
O uso flexível de múltiplas ferramentas, em coordenação, para um único fim é sugerido de demonstrar um avançado entendimento causal das relações de um objeto e um elaborado controle motor. A habilidade demonstrada pelas cacatuas foi comparável àquela observada em chimpanzés selvagens, os quais usam de duas a cinco ferramentas para abrir e extrair alimento, por exemplo, de colmeias e ninhos de cupim. O uso de ferramentas pelas cacatuas, portanto, pode representar o mais complexo uso de ferramenta até o momento registrado em qualquer espécie sem mãos, sugerindo um caso de evolução convergente associada ao desenvolvimento tecnológico entre primatas e aves.
Por fim, os pesquisadores também observaram o uso descrito de múltiplas ferramentas pelas cacatuas no ambiente natural, visando abrir a manga do mar, e vários indivíduos descascando essa fruta do mesmo modo que os indivíduos usuários de ferramenta. Somando-se a isso, frutas coletadas no meio selvagem foram observadas com sinais de abertura com ferramentas, e uma ainda continha um fragmento de madeira inserido na sua fissura.
(1) Publicação do estudo: https://www.cell.com/current-biology/fulltext/S0960-9822(21)01111-8
Reviewed by Saber Atualizado
on
setembro 02, 2021
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