Variante do novo coronavírus na África do Sul parece ser mais séria do que pensado
O SARS-CoV-2, vírus responsável pela pandemia da doença COVID-19 está continuamente evoluindo, com novas linhagens sendo reportadas ao redor de todo o mundo. Após a linhagem trazendo a mutação D614G ter se tornado dominante, três novas linhagens têm trazido grande preocupação: B.1.1.7 (Britânica), B.1.1.28 (K417N / E484K / N501Y) (Amazônica) e B.1.351 (Sul-Africana), todas associadas com substancial maior infecciosidade.
Para mais informações:
- Nova variante no Reino Unido do SARS-CoV-2 acumulou um recorde de 17 mutações relevantes
- (!) Nova variante do SARS-CoV-2 em Manaus é potencialmente mais contagiosa e causou reinfecção
Em dezembro de 2020, um time internacional de pesquisadores - incluindo cientistas Brasileiros da UFMG e da Fundação Oswaldo Cruz - reportaram uma nova e preocupante variante do SARS-CoV-2 (501Y.V2) - linhagem B.1.351 - caracterizada por nove mutações na proteína Spike, incluindo três em importantes resíduos no domínio de ligação ao receptor (RBD) - K417N, E484K e N501Y - com potencial significância funcional. A linhagem emergiu na África do Sul durante a primeira onda epidêmica no país em uma área metropolitana severamente atingida (Baía de Nelson Mandela). A linhagem, então, se espalhou rápido, se tornando, dentro de semanas, a linhagem dominante na Cidade do Cabo (capital do país). Existe evidência de aumento de transmissibilidade e potencial de evasão imune associados à variante.
As mutações acumuladas na proteína Spike nessa linhagem podem ser divididas em dois subconjuntos: um grupo que inclui quatro substituições e uma deleção no domínio N-terminal (NTD) - L18F, D80A, D215G, Δ242-244 e R246I - e um grupo de três substituições no domínio de ligação do receptor (RBD) - K417N, E484K e N501Y. O acúmulo de mutações nessas regiões fortemente sugerem pressão seletiva imune no sentido de escape de neutralização.
Em estudo publicado como preprint (ainda sem revisão por pares) na plataforma bioRxiv (1), o pesquisador Filip Fratev, da Universidade do Texas, realizou cálculos de perturbação de energia livre (FEP) e de dinâmica molecular entre a interação do RBD com a mutação N501Y e o receptor humano ACE2 e o anticorpo neutralizante STE90-C11 derivado de um paciente com COVID-19. Fratev encontrou uma mais forte interação RBD-ACE2 e uma diminuição de quase 160 vezes da interação RBD-anticorpo. Isso pode explicar a maior capacidade de disseminação das linhagens virais com essa mutação e sugere uma possível redução na eficácia das vacinas sendo testadas;
Estudos também têm mostrado que a mutação E484K na região RBD da proteína Spike está fortemente associada com evasão imune em relação a anticorpos neutralizantes contra o SARS-CoV-2, chegando a reduzir em mais de 3 vezes a eficiência de neutralização por anticorpos induzidos por infecção com cepas prévias (9).
É incerto a origem de uma linhagem com tantas mutações, mas assim como é proposto para a variante no Reino Unido, cientistas desconfiam de evolução intra-hospedeiro ao longo de uma prolongada replicação viral (infecção persistente) - por exemplo, a mutação N501Y é uma de várias mutações na proteína Spike que emergiu em um paciente nos EUA que ficou infectado pelo SARS-CoV-2 por 20 semanas. Como na África do Sul infecção pelo HIV é altamente prevalente, não seria raro pacientes imunossuprimidos co-infectados pelo SARS-CoV-2, facilitando longos períodos de COVID-19 antes de total recuperação.
Ambas as linhagens B.1.1.7 emergentes de SARS-CoV-2 no Reino Unido (HV69-70del, Y144del, N501Y, A570D, P681H, T716I, S982A, D1118H)1 e B.1.351 na África do Sul (L18F, D80A, D215G, R246I, K417N, E484K, N501Y e A701V) adquiriram várias substituições de aminoácidos definidores de linhagem na proteína Spike, sendo a mutação N501Y no domínio de ligação ao receptor a única substituição de aminoácidos comum detectada em ambas as linhagens.
O primeiro sério alerta contra a nova variante veio com um estudo preprint (2) - bastante aguardado pelo comunidade científica -, publicado em janeiro deste ano, onde pesquisadores da África do Sul, através de experimentos laboratoriais com anticorpos monoclonais e plasma convalescente de pacientes recuperados da COVID-19 causada por cepas prévias do SARS-CoV-2, confirmaram preocupante aumento de resistência à neutralização da variante 501Y.V2.
Os resultados do estudo mostraram que essa variante exibiu completo escape de três classes de anticorpos monoclonais terapeuticamente relevantes. Em três anticorpos de classe 1 (CA1, LyCoV016, e CC12.1), os experimentos confirmaram dependência desses anticorpos do resíduo K417 no domínio RBD. Experimentos com anticorpos de classe 2 reforçaram que a mutação E484K está associada com efetiva evasão imune. Além disso, a linhagem 501Y.V2 mostrou substancial ou completo escape de anticorpos neutralizantes elicitados por infecções com linhagens virais previamente circulantes. Somados os resultados, estes sugerem que, apesar de muitos já terem sido infectados no ano passado com o SARS-CoV-2 e ainda reterem algum nível de imunidade, a nova variante representa um significativo risco de reinfecção.
Enquanto que altos níveis de anticorpos neutralizantes são comuns em indivíduos hospitalizados, a maior parte das pessoas infectadas pelo SARS-CoV-2 desenvolvem moderados níveis desses anticorpos. Nesse sentido, os pesquisadores concluíram que a maioria dos indivíduos infectados com linhagens virais prévias provavelmente irão ter mínima ou não detectável atividade de neutralização contra a linhagem 501Y.V2.
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ATUALIZAÇÃO (25/01/21): A Moderna (responsável pela vacina mRNA-1273) está trabalhando em uma vacina reforçada visando a nova variante (linhagem B.1.351) (4). De acordo com a empresa, a atual vacina produz um reduzido nível de anticorpos protetores contra a variante, e por isso o interesse em produzir uma versão alternativa do imunizante. Essa conclusão foi suportada por um estudo publicado hoje como preprint na bioRxiv (5), analisando vírus modificados expressando a proteína Spike com as mutações das linhagens B.1.351 e B.1.1.7, e usando o sangue de oito pessoas que receberam as duas doses da vacina e de dois macacos imunizados. Enquanto que a vacina não mostrou perda de atividade neutralizante contra a linhagem B.1.1.7 (comparação com a cepa prévia hoje dominante no mundo, carregando a mutação D614G), houve uma redução de 5-10 vezes de atividade de neutralização contra a linhagem B.1.351, apesar da vacina ainda preservar significativo nível de anticorpos neutralizantes suficiente para garantir boa proteção contra a variante Sul-Africana. [Atualização] Publicação do estudo
ATUALIZAÇÃO (18/02/21): Em dois estudos publicados no periódico The New England of Medicine (6), pesquisadores trouxeram evidência in vitro que a linhagem Sul-Africana parece possuir uma drástica menor suscetibilidade aos anticorpos neutralizantes elicitados pelas vacinas da Pfizer (BNT162b2) e da Moderna (mRNA-1273). Na vacina da Pfizer, houve uma redução de neutralização em torno de 65%. Nos estudos foram usados pseudo-vírus carregando a proteína Spike de diferentes variantes do SARS-CoV-2 (incluindo a previamente dominante cepa carregando a mutação D614G, e as variantes Britânicas e Sul-Africanas). Os pseudo-vírus modificados foram expostos ao soro contendo anticorpos neutralizantes coletados de participantes pós-segunda dose da vacina alvo.
ATUALIZAÇÃO (24/03/21): Reforçando resultados de estudos prévios, um estudo publicado no periódico Cell Host and Microbe (8) encontrou que a vacina da Pfizer (BNT162b2) ainda neutraliza a variante Britânica do novo coronavírus (B.1.1.7), mas é significativamente menos eficaz – resistindo 6,8 vezes mais à neutralização de anticorpos induzidos pelo imunizante – contra a variante Sul-Africana (B.1.351). O estudo foi conduzido in vitro, com o uso de pseudovírus expressando a proteína Spike de uma cepa selvagem e das duas variantes de preocupação. Já um estudo clínico randomizado, duplo-cego, placebo-controlado, publicado no periódico The New England Journal of Medicine, encontrou que a vacina de Oxford (AZD1222) é praticamente ineficaz contra a variante Sul-Africana. Para mais informações, acesse: Vacina da Oxford não possui eficácia contra a variante Sul-Africana na prevenção de COVID-19 leve a moderada, indica estudo
> Na Zâmbia, um estudo publicado pelo Centro de Controle e Prevenção de Doenças dos EUA (CDC) (7) mostrou um aumento de 16 vezes de casos reportados entre dezembro e janeiro, coincidindo com a detecção da variante B.1.351 no país.
ATUALIZAÇÃO (08/04/21): Um estudo publicado no periódico The New England Journal of Medicine (10) encontrou a sensibilidade à neutralização por anticorpos induzidos pela vacina mRNA-1273 é 9-14 vezes menor em comparação com a cepa dominante com a mutação D614G.
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Para piorar a situação, a variante P.1 se disseminando rápido no Brasil possui mudanças na proteína Spike similares àquelas presentes na linhagem 501Y.V2 (417T, 484K no domínio RBD, e 18F, 20N no domínio NTD). Segundo os pesquisadores, os dados do estudo sugerem que essa linhagem provavelmente exibe significativos níveis de resistência à neutralização, tornando-a também uma considerável preocupação de saúde pública. De fato, já existe um caso confirmado de infecção com a cepa Amazônica (!). A emergência independente de ambas as linhagens suporta a hipótese de origem das duas a partir de seleção contra anticorpos neutralizantes comumente compartilhados entre a população, assim que a imunidade populacional (nível de infectados) começou a aumentar em um cenário de descontrole epidêmico.
Por fim, essas variantes podem comprometer em alguma extensão a eficácia das vacinas sendo testadas - já que são baseadas em linhagens prévias -, o que reforça a necessidade de plataformas de vacinas que sejam prontamente adaptáveis, como as vacinas de mRNA (ex.: Pfizer e Moderna), e a necessidade de identificar alvos virais menos mutáveis para a incorporação em futuros imunogênicos. Se essas variantes acumularem mais mutações, pode ser que algumas vacinas já em uso percam grande parte da eficácia. Ao mesmo tempo, as pessoas precisam reforçar as medidas de prevenção não-farmacológicas, como uso de máscaras e distanciamento social, visando frear a disseminação dessas preocupantes linhagens e dificultar a emergência de mais mutações associadas a evasão imune.
Publicação dos estudos:
- (1) https://www.biorxiv.org/content/10.1101/2020.12.23.424283v1
- (2) https://www.biorxiv.org/content/10.1101/2021.01.18.427166v1
- (3) Referência adicional: BBC News
- (4) https://www.nytimes.com/2021/01/25/health/coronavirus-moderna-vaccine-variant.html
- (5) https://www.biorxiv.org/content/10.1101/2021.01.25.427948v1
- (6) https://www.nejm.org/doi/full/10.1056/NEJMc2102017
- (6) https://www.nejm.org/doi/full/10.1056/NEJMc2102179
- (7) https://www.cdc.gov/mmwr/volumes/70/wr/mm7008e2.htm?s_cid=mm7008e2_x
- (8) https://www.cell.com/cell-host-microbe/fulltext/S1931-3128(21)00136-0
- (9) https://www.thelancet.com/journals/lanmic/article/PIIS2666-5247(21)00068-9/fulltext
- (10) https://www.nejm.org/doi/full/10.1056/NEJMc2103740
> Boa parte das mutações (deleções, substituições, edições endógenas, recombinações) do SARS-CoV-2 e de outros vírus ocorre durante o processo de transcrição e replicação do RNA viral (via complexo replicase–transcriptase), onde erros acabam ocorrendo na formação da sequência genética, como a introdução de uma letra/base nitrogenada errada (A, G, C ou U). Porém, evidências mais recentes sugerem que danos (ex.: oxidação) e edições endógenas (ex.: enzimas antivirais do hospedeiro) são a forma dominante de mutações do SARS-CoV-2 intra-hospedeiro, resultando em típicas assimetrias na cadeia genética do vírus. De qualquer forma, quanto mais o vírus se dissemina e se replica, mais erros, e mais mutações.
> Mutações podem impactar a eficácia das vacinas e da imunidade naturalmente adquirida, e de tratamentos. Para mais informações, acesse: Vacina é o início da real luta contra o novo coronavírus: Evolução viral sob pressão seletiva