Performance cognitiva dos corvos é similar àquela de primatas superiores não-humanos
Em um compreensivo estudo publicado no periódico Scientific Reports (1), pesquisadores reportaram que já aos quatro meses de idade, corvos-comuns (Corvus corax) possuem uma performance cognitiva social e física similar àquela observada em primatas hominídeos não-humanos adultos (ex.: chimpanzés e orangotangos). O estudo traz mais uma forte evidência de que os primatas não foram os únicos que evoluíram alta inteligência na Terra.
Estudos experimentais têm mostrado que crianças humanas (Homo sapiens) de 2 anos e meio de idade possuem habilidades cognitivas similares àquelas de três dos nossos mais próximos parentes evolucionários ainda vivos - chimpanzés-comuns (Pan troglodytes), bonobos (Pan paniscus) e orangotangos (Pongo pygmaeus) -, sugerindo que as habilidades cognitivas das crianças muito novas são ainda equivalentes àquelas do nosso último ancestral comum com esses primatas há cerca de 6 milhões de anos. Porém, em notável contraste, as crianças humanas possuem habilidades sociais maiores do que essas três espécies de primatas. Esse último ponto reforça a hipótese de que cruciais desenvolvimentos em habilidades de cognição socioculturais podem ter ocorrido apenas após a evolução do Homo erectus, em suporte de formas especialmente complexas de atividades colaborativas, como caça ou reuniões, possibilitadas por habilidades especiais de comunicação e aprendizado social.
Esse paralelo de inteligência entre humanos e primatas superiores é bem estabelecido e já esperado, considerando o grau de proximidade evolutiva. Nesse cenário, alta capacidade cognitiva têm sido ligada de forma exclusiva aos primatas superiores, e associada com um neocórtex mais desenvolvido, o qual representa um conjunto de camadas no córtex cerebral dos mamíferos envolvido em funções cerebrais mais complexas, como percepção sensorial, cognição, geração de comandos motores, racionalização espacial e linguagem. Porém, nas últimas décadas, alta capacidade cognitiva começou também a ser observada em aves, particularmente papagaios (família Psittacidae) (I) e corvídeos (família Corvidae) (II). Mamíferos e aves estão separadas por aproximadamente 300 milhões de anos desde o último ancestral em comum, e as aves não possuem córtex cerebral, e muito menos neocórtex. Mesmo assim, em estudos diversos, corvídeos - como gralhas e corvos - têm se mostrado cognitivamente tão capazes quanto primatas não-humanos.
> Para mais informações:
- (I) Alta inteligência parece ter evoluído de forma convergente entre humanos e papagaios
- (II) Corvos-Comuns possuem a habilidade de planejar!
- (III) Aves como os corvos parecem ter consciência, assim como os humanos
Corvídeos têm sido associados com habilidades como lembrar de eventos passados específicos (memória do tipo episódica), planejar para o futuro, capacidade de resolver complexos problemas (não-óbvios), capacidade tática de enganar e, mais explorado e bem estabelecido, uso de ferramentas. Corvos-comuns, o mais amplamente distribuído membro da família dos corvídeos, são particularmente reconhecidos pelas suas sofisticadas habilidades de cognição social, incluindo a formação de coalizões, considerações visuais perspectivas de outros, e direcionamento da atenção de membros do grupo para referentes externos. Mais recentemente, dois estudos publicados na Science revelaram uma rede de microcircuitos neurais desconhecida no cérebro das aves que mostrou ser análoga ao neocórtex dos mamíferos, com evidências sugerindo inclusive que os corvos possuem consciência (III).
Nesse sentido, no novo estudo, os pesquisadores conduziram a primeira avaliação sistemática, comparativa, quantitativa e de larga escala da performance cognitiva física e social de corvos-comuns com um foco especial no desenvolvimento. Para isso, os pesquisadores utilizaram uma versão adaptada da robusta Bateria de Testes de Cognição Primata (PCTB), permitindo também uma comparação quantitativa e direta com a performance cognitiva de chimpanzés e de orangotangos.
Os pesquisadores testaram com o PCTB adaptado oito corvos-comuns aos 4, 8, 12 e 16 meses de idade. As habilidades específicas investigadas incluíram memória espacial, permanência de objetos (entendimento que um objeto existe mesmo quando está fora da visão; vídeo abaixo), entendimento de números relativos e adição, e a habilidade de se comunicar e aprender com um humano.
Os resultados da série de testes mostraram que a performance cognitiva dos corvos-comuns foi similar de 4 a 16 meses de idade, sugerindo que a velocidade com que as habilidades cognitivas dessas aves se desenvolvem é relativamente rápida e quase-a-completa aos 4 meses de idade. Nessa idade, os corvos-comuns se tornam cada vez mais e mais independentes dos seus pais, e começam a descobrir e ativamente explorar seus ambientes sociais e ecológicos. Apesar da performance ter variado entre os indivíduos testados, essas aves se mostraram melhor na manipulação de números e pior nas tarefas de memória espacial.
Comparando a performance cognitiva média dos corvos-comuns com aquela de 106 chimpanzés e 32 orangotangos que completaram tarefas similares em estudos prévios, os pesquisadores encontraram que, com a exceção da memória espacial, a performance cognitiva dos corvos se mostrou muito similar àquela desses primatas, e associada com uma inteligência generalizada (em contraste com sugestões prévias de que essas aves eram altamente especializadas apenas em alguns domínios cognitivos).
Os resultados, portanto, reforçam que os corvos-comuns - e provavelmente outros corvídeos - evoluíram sofisticadas habilidades cognitivas de forma convergente com os primatas superiores, expressando um sistema neural generalizado e flexível para a cognição superior. Segundos os autores do estudo, essas aves podem ter desenvolvido alta capacidade cognitiva em resposta às constantes mudanças ambientais em seus habitats, onde sobrevivência e reprodução são fortemente dependentes de cooperação e alianças entre membros da mesma espécie. De fato, corvos-comuns vivem em sociedades complexas caracterizadas por dinâmicas de fissão-fusão e alta competitividade intraespecífica.
No entanto, os pesquisadores também alertaram que as performances observadas nos corvos-comuns analisados (criados em ambiente controlado e interagindo com humanos) podem não representar a performance cognitiva da espécie em geral (ambiente selvagem).
(1) Publicação do estudo: https://www.nature.com/articles/s41598-020-77060-8