Inédito na Biologia: Fêmea de formiga produz machos de duas espécies distintas, revela estudo
![]() |
Figura 1. Machos das espécies (A) Messor ibericus e (B) Messor structor. Ambos são naturalmente produzidos por rainhas da espécie M. ibericus. |
"É uma história absolutamente fantástica e bizarra de um sistema que permite algo quase inimaginável," disse em entrevista o biólogo evolucionário Jacobus Boomsma, da Universidade de Copenhagen, comentando sobre o novo estudo (Ref.2).
Formigas coletoras do gênero Messor são granívoros - que se alimentam de grãos e sementes - altamente especializados e encontrados principalmente em áreas abertas de habitats áridos e semi-áridos nos continentes europeu, africano e asiático. A forte interação com plantas produtoras de sementes tornam essas formigas muito abundantes ao redor da bacia do Mediterrâneo, mas também se estendendo até a África do Sul e o Japão. Dentro da subfamília Myrmicinae, o gênero Messor atualmente inclui 134 espécies descritas, tornando esse grupo o segundo mais diverso na tribo Stenammini. É estimado que o gênero emergiu há aproximadamente 20 milhões de anos, no início do Mioceno, e grande parte da atual diversidade dessas formigas está localizada em duas regiões bem distantes entre si: Norte da África Ocidental e Oriente Médio (Ref.3).
Junto com a grande diversidade, o gênero Messor é marcado por um fenômeno conhecido como hibridogênese social. Entre as formigas, operárias e rainhas da mesma espécie são tipicamente indivíduos diploides esperados de ser geneticamente similares (2). Algumas espécies do gênero Messor, por outro lado, como a M. barbarus e a M. ebeninus, possuem operárias nas colônias que são geradas via hibridização entre espécies ou subespécies distintas.
Através de análises genéticas e filogenéticas, o novo estudo na Nature mostrou que todas as formigas operárias da espécie M. ibericus são híbridos entre duas espécies: M. ebeninus e M. structor. Em específico, essas operárias possuem ancestralidade paterna da linhagem M. structor. Aliás, o estudo demonstrou que a rainha M. ibericus é incapaz de produzir ovos fertilizados sem espermatozoides fornecido pela espécie M. structor (parasitismo de espermatozoides obrigatório). E mais notável: essas duas espécies possuem divergência evolutiva de 5 milhões de anos e não são irmãs (Fig.4). Ou seja, são íntimas em termos reprodutivos mesmo sem parentesco muito próximo.
![]() |
Figura 2. Operários da formiga Messor ibericus na entrada do ninho. |
Mas neste ponto, um mistério emergiu: os pesquisadores descobriram que formigas operárias híbridas de M. ibericus ocorriam inclusive em regiões na Europa onde colônias da espécie M. structor não existem. Como isso é possível?
Analisando de forma compreensiva os ovos depositados em laboratório por rainhas M. ibericus de populações que viviam sem contato com colônias de M. structor, os pesquisadores encontraram que 9-11% desses ovos continham o genoma nuclear apenas da espécie M. structor. Os pesquisadores mostraram que essas rainhas estavam efetivamente produzindo machos das duas espécies e usando aqueles da espécie M. structor para fertilizá-las. E isso mesmo na ausência de machos de M. structor antes da deposição dos ovos. E todos, operárias, rainhas e machos alados das duas espécies, mostraram compartilhar o mesmo genoma mitocondrial da linhagem M. ibericus, fornecido pelo lado materno.
Para produzir machos de duas espécies distintas por conta própria, as rainhas de M. ibericus mostraram ser capazes de clonar o genoma de espermatozoides M. structor armazenados na espermateca, e ao mesmo tempo barrando a transmissão de genoma da linhagem materna para parte dos ovos produzidos. Os machos clonados - efetivamente da espécie M. structor - eram, então, mantidos na colônia como fonte de novos espermatozoides para as rainhas que, assim, conseguiam continuar se reproduzindo mesmo na ausência de colônias de M. structor nas proximidades. Embora os clones sejam machos parasitas - que gastam ovos da fêmea para continuarem se propagando -, as rainhas controlam o desenvolvimento e a maturidade dos ovos contendo machos clonados (domesticação) e ao mesmo tempo são dependentes dos clones. É uma relação que vai além do parasitismo sexual; é uma co-dependência sexual.
Os pesquisadores definiram essas rainhas/fêmeas como xenóparas, significando que elas precisam produzir indivíduos de outra espécie como parte do ciclo de vida. Na xenoparidade, existe a necessidade de propagar o genoma de outra espécie através dos próprios ovos. É uma relação simbiótica relativamente similar àquela observada entre as células eucarióticas e as mitocôndrias - essas últimas carregando genoma derivado de um procarionte ancestral (3). Os machos clonados de M. structor seriam equivalentes às organelas domesticadas de eucariontes (mitocôndrias e cloroplastos) mas à nível de superorganismo.
----------
> Cenário evolucionário proposto: Populações de M. ibericus normalmente exploram machos de M. structor de colônias próximas para a produção de operárias híbridas (estado ancestral). Essa estratégia reprodutiva levou eventualmente à evolução de populações M. ibericus com fêmeas capazes de clonar machos M. structor (estado derivado), permitindo a exploração de novos territórios onde a espécie M. structor não ocorre.
> Ao longo da Europa, existem populações ancestrais e derivadas de M. ibericus. A descoberta da xenoparidade explica, por exemplo, por que colônias de M. ibericus na ilha da Sicília, Itália, exibem operárias híbridas e machos de M. structor. Colônias dessa última espécie não existem na ilha.
----------
Curiosamente, quando os pesquisadores colocaram formigas M. structor clonadas em colônias normais de M. structor, os insetos foram mortos por serem considerados invasores externos, mesmo morfologicamente quase idênticos aos membros da colônia. Isso é explicado pelo fato dos clones carregarem feromônios da espécie M. ibericus, fazendo-os serem tratados como potenciais inimigos pela própria espécie.
Mas por que a obrigatoriedade de operárias híbridas na colônia? Uma hipótese sugere que a hibridização produz indivíduos mais vigorosos para as tarefas diversas na colônia (coleta de alimento, defesa, limpeza, etc.), sendo portanto favorecidos em processos de seleção natural.
Leitura recomendada:
- (1) Por que gravidez masculina evoluiu nos cavalos-marinhos?
- (2) Formigas-loucas quebram uma regra reprodutiva: todos os machos são quimeras haploides!
- (3) Afinal, as mitocôndrias são sempre herdadas da mãe em humanos?
REFERÊNCIAS
- Juvé et al. (2025). One mother for two species via obligate cross-species cloning in ants. Nature. https://doi.org/10.1038/s41586-025-09425-w
- https://www.nature.com/articles/d41586-025-02807-0
- Juvé et al. (2025). Phylogenomics of Messor harvester ants (Hymenoptera: Formicidae: Stenammini) unravels their biogeographical origin and diversification patterns. Systematic Entomology. https://doi.org/10.1111/syen.12693
