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Larvas de mosca e carne pútrida eram parte essencial da dieta Neandertal, sugere estudo


Análises isotópicas em ossos de Neandertais têm sugerido que essa espécie humana consumia mais carne do que hienas e leões. Mas como isso é possível? Um novo estudo publicado no periódico Science Advances (Ref.1) trouxe uma solução: Neandertais consumiam grande quantidade de larvas de mosca e de carne pútrida. Sim, carne em processo de putrefação ou podre. E isso pode não ter sido um traço único dos Neandertais durante a história evolutiva humana.


"Você gosta de carne de alce, e o que são essas larvas de mosca mas se não carne viva de alce? Elas são tão saborosas quanto a carne e são um deleite para a boca." - Resposta de um esquimó para um explorador europeu horrorizado ao ver os nativos consumindo com voracidade larvas brancas de mosca infestando a carcaça esverdeada de um alce, durante uma expedição no Ártico na década de 1920 (Ref.2).


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A linhagem humana (Homo sp.) é marcada por espécies onívoras mas com favorecimento de dieta carnívora (1), desde o Homo erectus até humanos modernos (Homo sapiens). E, nesse ponto, os Neandertais (H. neanderthalensis) se destacam. Análises isotópicas de nitrogênio (razão de N-15/N-14) em ossos fossilizados dessa espécie sugerem uma dieta hipercarnívora e marcada por ingestão excessiva de proteína animal. É como se neandertais fossem "caçadores fanáticos" e aficionados pela ingestão de carne fresca ou cozida de vertebrados.


Porém, esse último ponto entra em conflito com a fisiologia humana. Humanos possuem um sistema digestivo e metabólico, em grande extensão, onívoro. Aliás, consumo excessivo de carnes - dependendo do tipo de caça e cortes ingeridos - pode inclusive levar a quadros letais de intoxicação por proteínas (2).


Um humano moderno de 80 kg não pode consumir mais de ~300 gramas de proteína por dia (equivalente a ~1200 kcal) sem sérias consequências de saúde - e consumo proteico diário além desse limite pode levar à morte em questão de apenas 1-2 semanas. Importante, a maior parte das calorias diárias ingeridas por humanos precisa vir de carboidratos e/ou gorduras (ex.: tecido adiposo, medula óssea e óleos vegetais). De fato, caçadores-coletores modernos da nossa espécie (H. sapiens) na região norte do planeta - onde animais respondem pela maior parte da dieta - historicamente exibem preferência pelo consumo de presas ou partes de carcaças mais gordurosas, evitando naturalmente o consumo excessivo de proteínas.


Já hipercarnívoros como felídeos podem tolerar o consumo de quantidades muito maiores de tecido muscular magro sem sobrecarregar as funções hepáticas. Por exemplo, leões africanos (Panthera leo) consomem de 7 a 14 kg de carne por dia, ou ~8 a 17 g de proteína por kg de massa corporal. O valor limite estimado para humanos é próximo de 4 g/kg/dia. É improvável que Neandertais estavam consumindo até quatro vezes esse nível proteico máximo.


Além disso, estudos nos últimos anos têm mostrado que Neandertais consumiam significativa quantidade de alimentos derivados de plantas, inclusive usando fogo para cozinhar cevada (3).


Como, então, explicar as evidências isotópicas?


No novo estudo, a pesquisadora Melanie Beasley, da Universidade de Purdue, EUA, apresentou uma solução aparentemente fora da curva mas concordante com evidências etnográficas associadas com a nossa própria espécie. Melanie argumentou que Neandertais estavam obtendo uma elevada quantidade de proteína animal não apenas a partir de caça e carne fresca, mas explorando carcaças (carne em putrefação encontrada e estocada) e larvas de mosca associadas.


A pesquisadora e seu time de pesquisa basearam a hipótese em um interessante estudo etológico e antropológico de 2022 (Ref.4), na análise experimental de três famílias de moscas (Calliphoridae, Piophilidae e Stratiomyidae), e em um trabalho prévio em que a autora principal esteve envolvida analisando a assimilação de nitrogênio por larvas de mosca de duas espécies distintas durante decomposição de cadáveres humanos (Ref.5).


No estudo de 2022 citado, os autores denunciaram o viés de trabalhos acadêmicos em favor de uma visão ocidental, em especial europeia, sobre alimentação humana e a alegada repulsa natural da nossa espécie em relação a carnes pútridas. O estudo reuniu um vasto conjunto de relatos etnográficos e históricos de povos nativos e grupos de caçadores-coletores, desde áreas tropicais até o Ártico, explorando carne em estado de putrefação como alimento, mesmo sem um contexto de fome.


Nesse último ponto, muitos dos relatos descreviam apreciação desse tipo de alimento - desde carnes estocadas até carcaças de animais coletadas no ambiente. Na África, existem até registros de pigmeus festejando e conduzindo rituais alimentares quando encontravam carcaças estufadas de elefantes.


Aliás, as evidências do estudo de 2022 e de outras fontes acadêmicas apontam que povos indígenas quase que universalmente veem carnes pútridas e infestadas com larvas de mosca como altamente desejáveis. Vários desses povos rotineiramente, e frequentemente de forma intencional, permitem que alimentos se decomponham ao ponto em que fiquem infestados com larvas de mosca, em alguns casos inclusive com liquefação de carnes e emitindo cheiro muito forte de putrefação. Esquimós (Inuítes) - povos que habitam regiões no extremo norte - adoram consumir larvas de mosca da espécie Hypoderma tarandi que infestam as carcaças de renas e alces.


E não apenas povos indígenas fora de um contexto urbano. Temos o caso do queijo casu marzu, muito apreciado como alimento tradicional na Sardenha, uma ilha na Itália. Esse queijo é produzido pela digestão parcial do queijo por larvas de mosca da espécie Piophila casei, e os habitantes da Sardenha tipicamente consomem o produto final com as larvas (4). E mais: alguns cientistas apostam nas larvas da mosca-soldado-negra como alimento essencial no futuro (5).


É sugerido que possíveis patógenos e toxinas em carnes putrefatas podem ser talvez driblados por uma microbiota moldada em um contexto ambiental específico e/ou fatores epigenéticos e genéticos perdidos ou desativados em sociedades humanas urbanizadas.


Esse apreço por carne pútrida e infestada com larvas de mosca pode ter sido muito comum em antigos homininins e humanos antes do uso extensivo de fogo e métodos mais avançados de caça.


Carne em estado de putrefação já é um estágio de alimento pré-digerido por bactérias endógenas e exógenas, com vários aminoácidos e peptídeos liberados das proteínas de fibras musculares, facilitando o trabalho do sistema digestivo humano. A putrefação produz vários dos mesmos benefícios do cozimento, mas a um custo bem menor.


Valores construídos e disseminados a partir de influentes religiões e novas normas culturais teriam tornado a percepção (visão, cheiro, etc.) de carnes em putrefação como repugnante e inaceitável. No Ocidente, algo similar ocorreu em relação ao consumo alimentar de insetos e outros invertebrados terrestres, os quais são ainda componentes comuns na dieta Oriental e de povos indígenas.


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Voltando ao novo estudo, Melanie e colaboradores argumentaram que Neandertais estavam comendo e armazenando carne pútrida e também abundante quantidade de larvas de mosca crescendo nesse tipo de carne ou no solo sob carcaças. Talvez para assegurar disponibilidade de alimento em períodos de escassez alimentar ou dificuldade de caça, Neandertais estariam armazenando carcaças por várias semanas ou meses, tornando-as eventualmente infestadas de larvas de mosca. Métodos tradicionais de secar carnes para preservação, mesmo quando envolvem fumaça, inevitavelmente atraem moscas e resultam no acúmulo de larvas em ambiente aberto.


Os pesquisadores encontraram que a putrefação aumenta a concentração isotópica de nitrogênio-15 no tecido muscular de carcaças em até 7,7%. Já o processamento da carne por larvas pode aumentar essa concentração em até ~43% no corpo desses insetos (!). Consumo abundante de carnes putrefatas e ricas em larvas plausivelmente explicaria os dados isotópicos aparentemente anômalos associados aos fósseis de Neandertais.


Importante, adotando como referência os hábitos alimentares de nativos de H. sapiens do norte, onde a dieta é baseada principalmente no consumo de animais caçados ou coletados, Neandertais precisavam consumir de dois terços até três quartos das calorias diárias na forma de gordura animal. Como mencionado, excesso de ingestão proteica por humanos pode ser letal ao sobrecarregar o fígado. Larvas de moscas possuem alta densidade nutricional, especialmente representada por gorduras (~20-40%). Consumir nitrogênio da carne de vertebrados indiretamente a partir dessas larvas ajudaria a prevenir a ingestão excessiva de proteínas.


Considerando correta a hipótese levantada, Neandertais eram ávidos carnívoros mas não se sustentavam apenas com a atividade de caça e consumo de carne fresca: grande parte da proteína animal consumida provavelmente era coletada (larvas) ou oriunda de carne pútrida abandonada ou armazenada.


(!Isótopos de nitrogênio e reatividade 


Isótopos são elementos químicos com o mesmo número atômico (prótons no núcleo) e número diferente de nêutrons. Portanto, isótopos de um mesmo elemento químico possuem massas atômicas (nêutrons +  prótons) distintas. O nitrogênio possui dois isótopos estáveis na natureza: nitrogênio-14 e nitrogênio-15. O isótopo mais leve (nitrogênio-14) é o mais abundante (99,637%), enquanto o nitrogênio-15 representa apenas 0,363% do total. 


Dependendo dos sistemas reacionais envolvidos, um ou outro isótopo é incorporado preferencialmente nos produtos de reação (fracionamento isotópico).


Em uma reação de putrefação de tecido muscular, à medida que aminoácidos são quebrados, os dois isótopos de nitrogênio são preferencialmente selecionados na formação de novos compostos orgânicos voláteis, incluindo amônia (NH3) e quantidades menores de outros gases nitrogenados como cadaverina [NH2(CH2)5NH2] e putrescina [NH2(CH2)4NH2]. À medida que a putrefação progride, a liberação preferencial contínua do isótopo-14 resulta no enriquecimento do nitrogênio-15 no tecido muscular remanescente.


Nesse sentido, tecido putrefato irá exibir valores médios maiores de nitrogênio-15 ao longo do tempo em relação ao tecido fresco inicial. Larvas de mosca concentram ainda mais nitrogênio-15 no corpo ao processar a carne putrefata através de reações enzimáticas diversas.


Leitura complementar:


REFERÊNCIAS

  1. Beasley et al. (2025). Neanderthals, hypercarnivores, and maggots: Insights from stable nitrogen isotopes. Science Advances, Vol. 11, No. 30. https://doi.org/10.1126/sciadv.adt7466
  2. https://www.nature.com/articles/d41586-025-02334-y
  3. K. Rasmussen, in The Netsilik Eskimos: Social Life and Spiritual Culture, Report of the Fifth Thule Expedition 1921–1924, The Danish Expedition to Arctic North America in Charge of Knud Rasmussen (Gyldendal, 1931), vol. 8, no. 1–2, p. 60. 
  4. Speth & Morin (2022). Putrid Meat in the Tropics: It Wasn’t Just for Inuit, PaleoAnthropology, 2: 327−383. https://doi.org/10.48738/2022.iss2.114
  5. Beasley et al. (2024). Using Stable Nitrogen Isotope Ratios from Human Skeletal Muscle Tissue for Postmortem Interval (PMI) Estimation (Part 1). Forensic Anthropology, Vol. 8, No. 2. https://doi.org/10.5744/fa.2023.0001

Larvas de mosca e carne pútrida eram parte essencial da dieta Neandertal, sugere estudo Larvas de mosca e carne pútrida eram parte essencial da dieta Neandertal, sugere estudo Reviewed by Saber Atualizado on setembro 02, 2025 Rating: 5

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