Colapso populacional nunca ocorreu na Ilha de Páscoa e nativos da ilha alcançaram a América antes de Colombo, aponta estudo
Figura 1. Estátuas Moai na Ilha de Páscoa. |
Essa narrativa foi popularizada em especial no livro 'Collapse: How Societies Choose to Fail or Succeed', publicado em 2006 e de autoria do geógrafo Jared Diamond, da Universidade da Califórnia, Los Angeles. Mas essa hipótese tem sido desde então muito criticada na literatura acadêmica. Independentemente disso, a narrativa do colapso populacional - caracterizada como um suicídio ecológico ou ecocídio - continua sendo usada como um clássico exemplo de como devastação ambiental por humanos pode ter dramáticas consequências.
Nesse sentido, um estudo publicado esta semana no periódico Nature (Ref.1) trouxe evidência genética aparentemente conclusiva que derruba a hipótese do ecocídio, confirmando também contato pré-colonial entre Rapanui e Nativos Americanos.
"Serve como o prego final no caixão dessa narrativa de colapso," disse em entrevista a arqueogeneticista Kathrin Nägele, do Instituto Max Planck para Antropologia Evolucionária em Leipzig, Alemanha (Ref.2).
Rapa Nui, também conhecida como Ilha de Páscoa ou Te Pito Te Henua ("O Umbigo do Mundo"), é uma pequena ilha (~164 km2) localizada na ponta mais ao leste do Triângulo da Polinésia, distante 3700 km da costa oeste da América do Sul e >1900 km ao leste da ilha habitada mais próxima (Fig.2). Apesar de uma localização tão remota, evidências arqueológica e genética mostram que pessoas da Polinésia, ao oeste, alcançaram essa ilha em ~1250 d.C., atravessando milhares de quilômetros de oceano em embarcações. Nos cinco séculos seguintes, os novos habitantes humanos da ilha (Rapanui) desenvolveram uma cultura caracterizada por icônicas estátuas de pedra gigantes conhecidas como moai e plataformas monumentais de pedra (ahu). Os Rapanui esculpiram quase mil enormes estátuas, transportando cerca de 500 ao longo de antigas estradas até locais monumentais ao redor da ilha, alguns tão longe quanto 16-18 km (Fig.2). A maior dessas estátuas possui mais de 10 m de altura e uma massa de aproximadamente 74 toneladas, e foi deslocada por mais de 5 km.
É tradicionalmente sugerido as estátuas eram transportadas na ilha a partir das pedreiras através de movimentação horizontal sobre toras de madeira (rolamento). Porém, um estudo experimental de 2012 sugeriu que as estátuas esculpidas eram transportadas por longas distâncias através de cordas que, puxadas sequencialmente e verticalmente de um lado e do outro e para frente, faziam os moai "andarem" ao longo de estradas de aproximadamente 4,5 m de largura (Fig.5). Essa hipótese faz sentido com certos aspectos físicos das estátuas (centro de massa e dimensões corporais) que parecem ter sido pensados para uma movimentação vertical estável. Esse modo de transporte também corrobora tradições orais em Rapa Nui narrando histórias onde os moai andavam e que essas estátuas eram "abençoadas com o poder de andar na escuridão" (Ref.7).
Devido ao isolamento de Rapa Nui, europeus alcançaram a ilha apenas em 1722. Ao longo dos anos, os "turistas" europeus tiveram um impacto devastador sobre os Rapanui à medida que matavam os habitantes e introduziam patógenos letais que os nativos não haviam sido expostos antes. Além disso, na década de 1860, invasores e escravagistas Peruvianos raptaram um terço da população da ilha, e apenas alguns poucos foram repatriados após condenação internacional das práticas de escravidão. Subsequentemente, um surto de varíola dizimou a população Rapanui restante, sobrando estimados 110 indivíduos.
Apesar da ilha e dos seus habitantes terem sido extensivamente estudados através de análises arqueológicas, antropológicas e genéticas, dois principais pontos de discussão sobre a história demográfica de Rapa Nui permanecem insuficientemente esclarecidos:
- houve um grande colapso populacional na ilha antes do contato com os Europeus?
- e houve um possível contato trans-Pacífico entre os Rapanui e os Nativos Americanos?
No primeiro ponto, Rapa Nui é frequentemente considerada um modelo sobre como as interações entre humanos e o meio ambiente possuem dramáticas implicações diretas para o futuro da humanidade. Especificamente, a história da ilha é considerada um exemplo de ecocídio, um alerta sobre a superexploração de recursos naturais.
Quando os exploradores holandeses, espanhóis e ingleses chegaram à ilha na segunda metade do século XVII, eles encontraram um lugar amplamente deficiente em árvores e fontes de água fresca, e com uma população de 1,5 mil a 3 mil humanos. A assumida incongruência entre o estado do ambiente e o tamanho das comunidades comparada aos impressionantes monumentos apontou para um grande mistério associado à Rapa Nui. Por muito tempo, esse "mistério" foi explicado pela existência de uma população muito maior e mais próspera no passado da ilha. E aqui entra a hipótese do ecocídio.
Popularizada por múltiplos acadêmicos a partir do início da década de 1990, a ideia é que, após se estabeleceram na ilha, os Rapanui teriam iniciado um amplo culto baseado na construção e transporte de massivas estátuas, um tipo de "mania moai", que levou ao consumo excessivo dos limitados recursos naturais na região. Para manter essa cultura e a crescente população que eventualmente teria alcançado ~15 mil até 17 mil indivíduos, os Rapanui teriam promovido grande desmatamento - especialmente árvores de palma - e dizimado a fauna local. Ao longo dos séculos, a demanda excessiva por recursos naturais teria aumentado dramaticamente, levando ao colapso florestal, erosão do solo, extinção de aves, escassez de recursos hídricos, perda de nutrientes no solo e redução de pescado. Finalmente, uma catástrofe ecológica, ou ecocídio.
A falta de recursos naturais em Rapa Nui teria levado à fase cultural "Huri Moai": um período de fome e guerra que teria escalado ao ponto de canibalismo e ultimamente culminado em um colapso cultural e populacional no início do século XVII. Era o fim abrupto da moda de esculpir grandes estátuas, uma consequência do desenvolvimento insustentável. Nas palavras de Diamond, talvez o principal defensor da hipótese do ecocídio:
"Em apenas alguns séculos, as pessoas da Ilha de Páscoa eliminaram a floresta, levaram plantas e animais à extinção, e viram a própria e complexa sociedade espiralar em caos e canibalismo. Nós estamos próximos de seguir esse mesmo caminho?"
Embora seja bem estabelecido que o ambiente em Rapa Nui foi afetado por atividade antropogênica (ex.: desmatamento), não é bem esclarecido se ou como essas mudanças teriam levado a um colapso populacional. De fato, várias linhas de evidências bioantropológicas, arqueológicas e históricas têm desafiado o cenário do ecocídio. Nos últimos anos, estudos têm apontado que as comunidades de Rapa Nui sempre foram sustentáveis em várias aspectos (ex.: práticas otimizando o uso da terra, Fig.6) e continuaram o estilo de vida e tradições mesmo com as condições ecológicas desafiadoras impostas pelo limitado ambiente insular (Ref.3). E talvez mais importante, evidência mais recente aponta que nunca existiu uma população de grande escala na ilha como tradicionalmente alegado e muito menos um colapso populacional. Um estudo publicado este ano na Science Advances (Ref.8) não encontrou sinais de extensiva infraestrutura agrícola na história da região e estimou que a ilha sustentou até ~3 mil pessoas, espelhando o tamanho populacional reportado pelos europeus invasores no século XVIII.
O segundo ponto de debate envolve o possível contato entre Nativos Americanos e Rapanui. De fato, é bem estabelecido que os antigos Rapanui cortaram a maioria das árvores de Rapa Nui ao longo dos séculos. A eventual escassez de madeira para a construção e renovação de canoas levou ao isolamento da ilha, devido ao abandono das explorações marítimas de longa distância - uma característica-chave de culturas Polinésias. Várias evidências limitadas sugerem que Rapa Nui não representou o limite de exploração ao leste pelos Polinésios, com estes eventualmente alcançando a América antes de Colombo. Estudos genéticos suportam esse cenário, apontando múltiplos fluxos genéticos entre os anos de 1150 e 1380 envolvendo populações polinésias e americanas.
No novo estudo, um grupo internacional de pesquisadores, com consentimento e envolvimento da atual comunidade que vive em Rapa Nui, conduziu uma detalhada análise genômica de amostras coletadas de 15 indivíduos catalogados como Rapanui e cujos vestígios ósseos estão preservados no Museu do Homem, em Paris. Esses indivíduos foram coletados por etnólogos nas décadas de 1870 e de 1930. Datação radiocarbônica apontou que os indivíduos viveram no período de 1670-1950.
Figura 7. Em meio a uma pedreira com "cabeças" de moai, destaque na foto para a líder indígena Jean Patricia Pakarati Pate, hoje habitante e nativa da ilha de Rapa Nui. |
As análises genômicas confirmaram que os indivíduos tinham origem Polinésia e que eram mais próximo-relacionados aos Rapanui modernos. As análises também apontaram apenas um único e muito antigo evento de deriva genética na história demográfica de Rapa Nui, e provavelmente devido ao "efeito fundador" (1) antes do ano de 1300 - um achado esperado e corroborado por estudos genômicos prévios. No caso, o evento de deriva genética teria sido causado pelo pequeno grupo de pessoas que primeiro se estabeleceu na ilha - representando um pequeno pool genético - e posteriormente cresceu, lentamente, até milhares de indivíduos. O único colapso populacional que parece ter ocorrido entre os Rapanui aconteceu após o contato com os europeus.
Os pesquisadores também mostraram que o DNA de Nativos Americanos constitui ~10% do genoma dos antigos e atuais Rapanui. Esse achado suporta o cenário de significativo fluxo genético entre nativos de Rapa Nui e nativos da América há 600-800 anos (~1250-1430 d.C.), talvez através de viagens ida-e-volta até a costa da América do Sul. Relevante, explica alguns notáveis achados arqueológicos prévios. A batata-doce (Ipomoea batatas), uma planta domesticada nos Andes, era um alimento regular dos Polinésios bem antes do contato com os europeus, e ossos de galinhas de linhagens polinésias têm sido encontrados em sítios arqueológicos sul-americanos que pré-datam a colonização europeia na região.
Comentando sobre esse último achado do estudo, Keolu Fox, um pesquisador geneticista da Universidade da Califórnia, San Diego, disse em entrevista (Ref.9): "Nós estamos confirmando algo que já sabíamos. Você acha que uma comunidade [Polinésios] que descobriu lugares como o Havaí e o Taiti teriam deixado escapar um continente inteiro?"
Além de potencialmente derrubar a hipótese do ecocídio e fortemente sugerir que Polinésios alcançaram a América bem antes do genovês Cristóvão Colombo ("descoberta" da América em 1492 d.C.), o novo estudo também irá facilitar a repatriação dos indivíduos analisados hoje em posse do museu parisiense.
Leitura complementar:
- (1) O que é a deriva genética?
- Galinhas primeiro emergiram na Tailândia, e pouco antes do Antigo Testamento
- Vikings: A Era Subestimada da Sociedade Nórdica
REFERÊNCIAS
- Moreno-Mayar et al. (2024). Ancient Rapanui genomes reveal resilience and pre-European contact with the Americas. Nature 633, 389–397. https://doi.org/10.1038/s41586-024-07881-4
- https://www.science.org/content/article/famed-polynesian-island-did-not-succumb-ecological-suicide-new-evidence-reveals
- DiNapoli et al. (2021). Triumph of the Commons: Sustainable Community Practices on Rapa Nui (Easter Island). Sustainability. https://doi.org/10.3390/su132112118
- Margottini et al. (2013). Geotechnical and geophysical characterization of Moai statues — Rapa Nui Easter Island (Chile). Geotechnical Engineering for the Preservation of Monuments and Historic Sites. https://doi.org/10.1201/b14895-62
- Richards et al. (2011). Road my body goes: re-creating ancestors from stone at the greatmoaiquarry of Rano Raraku, Rapa Nui (Easter Island). World Archaeology, 43(2), 191–210. https://doi.org/10.1080/00438243.2011.579483
- Pitts et al. (2014). Hoa Hakanana'a: A New Study of an Easter Island Statue in the British Museum. The Antiquaries Journal, 94, 291–321. https://doi.org/10.1017/S0003581514000201
- Lipo et al. (2013). The "walking" megalithic statues (moai) of Easter Island. Journal of Archaeological Science, 40(6), 2859–2866. https://doi.org/10.1016/j.jas.2012.09.029
- Davis et al. (2024). Island-wide characterization of agricultural production challenges the demographic collapse hypothesis for Rapa Nui (Easter Island). Science Advances, Vol. 10, No. 25. https://doi.org/10.1126/sciadv.ado1459
- https://www.nature.com/articles/d41586-024-02962-w