Psicodélico de rituais Africanos parece ter efeitos terapêuticos "milagrosos" em veteranos de guerra
Figura 1. Raiz de iboga triturada para uso em uma cerimônia tradicional no Gabão. Essa raiz é a principal fonte natural da droga psicodélica ibogaína. |
Fármacos psicodélicos como o MDMA (1) e a psilocibina (2), esse último um componente alucinógeno dos chamados "cogumelos mágicos", têm mostrado enorme potencial para tratamentos psiquiátricos, particularmente transtorno do estresse pós-traumático (TEPT) e depressão resistente a medicamentos. Agora, um estudo clínico de pequeno porte, envolvendo veteranos militares e publicado no periódico Nature (Ref.1), encontrou evidência fortemente sugestiva de que um potente composto psicodélico chamado de ibogaína pode ser usado para o tratamento de lesões cerebrais traumáticas (LCT) e transtornos psiquiátricos associados (3). Após um mês do tratamento com ibogaína, os veteranos reportaram que os sintomas de LCT como TEPT e depressão reduziram em mais de 80% na média. Porém, importante realçar, o teste clínico não incluiu um grupo de controle, servindo apenas para dar um sinal verde para estudos clínicos mais robustos e de alta qualidade.
Leitura recomendada:
- (1) Cogumelos mágicos são a solução da depressão?
- (2) Terapia com popular droga ilegal parece ser efetiva no tratamento de Transtorno de Estresse Pós-Traumático
- (3) Senhor dos Anéis e a Primeira Guerra Mundial
"Essa droga parece ter um amplo, dramático e consistente efeito," disse em entrevista um dos coautores do novo estudo e neurocientista na Universidade de Stanford, Dr. Nolan Williams (Ref.2).
Lesões cerebrais traumáticas (LCTs) são uma das principais causas de comorbidades relacionadas a lesões físicas ao redor do mundo. A LCT é também uma lesão característica de veteranos de guerra nos EUA que estiveram em conflitos militares recentes, mais frequentemente causada por exposição a explosões. Clinicamente, sequelas da LCT podem incluir transtorno do estresse pós-traumático (TEPT), transtorno depressivo maior e transtornos de ansiedade, mas a eficácia de tratamentos para essas complicações é limitada. Ainda mais preocupante é o fato dos veteranos militares representarem 20% dos casos de suicídio nos EUA, apesar de constituírem apenas 6,4% da população em geral.
Exposição a repetidas explosões podem resultar em mudanças no cérebro, incluindo estruturais, de conectividade funcional, no fluxo sanguíneo cerebral e na matéria branca (3). As sequelas de LCT podem também incluir tanto mudanças subjetivas quanto objetivas na memória, atenção, velocidade de processamento e funções executivas que podem substancialmente impactar na qualidade de vida. Desesperados por alívio, alguns veteranos começaram a procurar terapias cientificamente pouco exploradas ou validadas que atualmente não estão disponíveis nos EUA, como o alcaloide ibogaína.
A ibogaína é um composto orgânico derivado da casca de raízes do arbusto Tabernanthe iboga (planta tropical nativa do oeste-Africano) (Fig.2) e de outras espécies de plantas relacionadas, sendo tradicionalmente usado em cerimônias Africanas religiosas, espirituais e medicinais (!). Doses terapêuticas de ibogaína levam a estados de consciência similares a sonhos que facilitam um período mais longo de autoreflexão e avaliação. Farmacologicamente, a ibogaína e seu principal metabólito, noribogaína (Fig.3), demonstram moderada-a-fraca afinidade por um número de receptores neurotransmissores incluindo N-meti-D-aspartato, κ e μ opioide, σ-1 e σ−2, acetilcolina nicotínico, transportador de serotonina, transportador de dopamina, entre outros. A ibogaína também parece aumentar os fatores neurotróficos de transcrição e a complexidade dendrítica de neurônios corticais. Essa farmacologia única resulta na classificação da ibogaína como um psicodélico atípico.
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(!) Ingerida em pequenas doses (<50 mg), a ibogaína promove efeitos estimulantes, anorexigênicos e eufóricos. Seu uso como estimulante por caçadores Congoleses tem sido registrado desde o século XIX. Em doses moderadas (de 100 mg até 1 g), a ibogaína causa alucinações visuais e auditivas, percepção alterada do tempo, sinestesia gustatória, além de potencial diarreia e vômito. Historicamente, esse composto têm sido usado principalmente por certas povos tradicionais Africanos, em especial no culto Bwiti, no Gabão. Nesse culto, os iniciados (banzi) ingerem massivas quantidades de iboga [raiz] durante complexos ritos de iniciação na presença da tribo e do nganga (o curandeiro-chefe espiritual da comunidade), acompanhados por música e dança. O consumo do iboga nesse contexto é um meio dos indivíduos se conectarem com seus ancestrais no "mundo espiritual" e de "reconciliarem a si mesmos com a morte". Ref.5
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Um estudo de 2023, publicado na Nature (Ref.7) e baseado em experimentos com ratos, sugeriu que a ibogaína e outros psicodélicos (ex.: psilocibina, LSD, MDMA, PCP e mescalina) podem temporariamente reabrir um "período crítico" associado ao início do desenvolvimento quando o sistema nervoso está particularmente maleável, reinstalando uma importante aprendizagem social recompensatória. Durante esses períodos críticos, o sistema nervoso exibe uma maior sensibilidade a estímulos etologicamente relevantes, assim como uma maior maleabilidade para modificações sinápticas, de circuitos e comportamentais. A ibogaína parece ser especialmente eficaz nesse processo neurobiológico, mantendo o período crítico aberto por pelo menos 4 semanas, comparado com até 2 semanas para a psilocibina.
Até o momento, estudos sobre a ibogaína têm focado predominantemente no seu potencial como tratamento para transtornos de uso de substâncias (ex.: dependência alcoólica, de opioides, de nicotina e de cocaína) (Ref.8). Efeitos adversos potencialmente fatais - especialmente associados a irregularidades de batimento cardíaco - têm reduzido o interesse desse composto em estudos clínicos. Eventos adversos associados ao uso de ibogaína em contextos variados incluem efeitos agudos (<24 horas), principalmente cardíacos (comumente prolongação de QTc), gastrointestinais, neurológicos e alterações clínicas, e efeitos de longa duração (>24 horas), principalmente alterações cardíacas, psiquiátricas e neurológicas persistentes (Ref.9).
O número de clínicas e de praticantes ilegais que fornecem tratamento baseado em ibogaína tem aumentado ao redor do mundo. A falta de um mercado regulado resulta em uma falta de controle de qualidade e pacientes podem, portanto, estar consumindo ibogaína com concentrações desconhecidas do ingrediente ativo. Muitas vezes as administrações são feitas em quartos de hotéis e outros ambientes inadequados. Além disso, a pureza de extratos de ibogaína usados nos tratamentos ou autoadministradas por pacientes frequentemente é desconhecida, e muitas vezes o produto é fornecido em vendas na internet sem qualquer controle de qualidade, com risco de perigosos contaminantes. Nesse contexto, acidentes e mortes têm sido cada vez mais reportados. Até 2015, 22 mortes associadas à ibogaína foram reportadas e descritas na literatura (Ref.10).
Por exemplo, em um relato de caso reportado em 2021 no periódico Forensic Science, Medicine and Pathology (Ref.11), um homem de 27 anos com histórico de dependência de heroína foi encontrado morto em um apartamento alugado, onde ele estava sendo submetido a um tratamento para se livrar da dependência química. De acordo com sua esposa, o homem havia passado três dias no apartamento com um alegado terapeuta que administrava um pó de iboga comprado online. O "terapeuta" disse que o homem morreu subitamente 5-12 horas após a ingestão oral do pó. O histórico médico do paciente não trazia nada de significativo, com exceção do problema de abuso de droga. Análise forense apontou que a morte provavelmente ocorreu devido aos efeitos cardiotóxicos da dose consumida de ibogaína.
O uso recomendado e mais seguro de ibogaína com fins terapêuticos é aquele feito em ambiente controlado, suportado por profissionais treinados e com a presença de equipamentos permitindo rigoroso monitoramento médico, psiquiátrico e cardíaco (Ref.12).
No novo estudo, os pesquisadores buscaram investigar de forma sistemática o uso de ibogaína para o tratamento de sintomas de LCT. Nesse sentido, eles acompanharam 30 veteranos militares dos EUA considerados aptos para o teste clínico, todos do sexo masculino, com LCT e um histórico de repetida exposição a explosões ou combate. Quinze participantes exibiam transtorno depressivo maior, 14 tinam transtorno de ansiedade e 23 tinham TEPT. Todos os veteranos, por vontade própria, buscaram ibogaína em um local no México (Centro de Tratamento Ambio, em Tijuana), onde o uso da droga não é restrito.
Os pesquisadores não tiveram qualquer envolvimento com a administração da ibogaína, mas forneceram aos participantes um suplemento de magnésio junto com a droga para reduzir o risco de efeitos cardiovasculares adversos. A dose oral de ibogaína foi de ~12 mg/kg para cada participante e na forma de hidrocloreto de ibogaína (>98% de pureza, sintetizada por um laboratório Sul-Africano a partir de extratos de árvores da espécie Voacanga africana)..
Um mês após o tratamento, os participantes tiveram reduções de 88% nos sintomas de TEPT, 87% nos sintomas de depressão e 81% nos sintomas de ansiedade. Na média, os participantes exibiam leve-a-moderada incapacidade física antes do tratamento e nenhuma incapacidade após um mês de tratamento, algo indicado por análises de cognição, mobilidade e outras funções.
E, talvez mais importante, nenhum dos participantes experienciou efeitos cardíacos adversos, incluindo braquicardia, taquicardia e clinicamente significativa prolongação de Q-T ou instabilidade hemodinâmica. Isso mostra que é possível administrar com segurança a ibogaína em doses terapêuticas após devidos cuidados (acompanhamento de profissionais, ambiente hospitalar, ingestão de magnésio, etc.) e rigorosa seleção dos pacientes.
Isso abre o caminho para testes clínicos mais robustos, randomizados e acompanhados de grupo de controle com placebo. Pesquisadores também querem melhor esclarecer como a ibogaína atua no cérebro e conferir se os potenciais benefícios terapêuticos persistem a longo prazo.
REFERÊNCIAS
- Nardou et al. (2023). Psychedelics reopen the social reward learning critical period. Nature 618, 790–798. https://doi.org/10.1038/s41586-023-06204-3
- https://www.nature.com/articles/s41586-023-06204-3
- https://pubchem.ncbi.nlm.nih.gov/compound/Ibogaine
- Iyer et al. (2020). The iboga enigma: the chemistry and neuropharmacology of iboga alkaloids and related analogs. Natural Product Reports. https://doi.org/10.1039/D0NP00033G
- Mazoyer et al. (2013). Fatal Case of a 27-Year-Old Male After Taking Iboga in Withdrawal Treatment: GC-MS/MS Determination of Ibogaine and Ibogamine in Iboga Roots and Postmortem Biological Material. Journal of Forensic Sciences, 58(6), 1666–1672. https://doi.org/10.1111/1556-4029.12250
- Rodríguez et al. (2020). A Single Administration of the Atypical Psychedelic Ibogaine or its Metabolite Noribogaine Induces an Antidepressant-like Effect in Rats. ACS Chemical Neuroscience. https://doi.org/10.1021/acschemneuro.0c00152
- Nardou et al. (2023). Psychedelics reopen the social reward learning critical period. Nature 618, 790–798. https://doi.org/10.1038/s41586-023-06204-3
- Fernandes-Nascimento et al. (2023). Three Decades of Research on the Development of Ibogaine Treatment of Substance Use Disorders: A Scientometric Analysis. Journal of Psychoative Drugs. https://doi.org/10.1080/02791072.2023.2276230
- Ona et al. (2022). The adverse events of ibogaine in humans: an updated systematic review of the literature (2015–2020). Psychopharmacology 239, 1977–1987. https://doi.org/10.1007/s00213-021-05964-y
- Bouso et al. (2020). An analytical study of iboga alkaloids contained in Tabernanthe iboga-derived products offered by ibogaine treatment providers. Archives of Clinical Psychiatry (São Paulo), 47(2). https://doi.org/10.1590/0101-60830000000231
- Aćimović et al. (2021). Death due to consumption of ibogaine: case report. Forensic Science, Medicine and Pathology, 17(1), 126–129. https://doi.org/10.1007/s12024-020-00342-0
- Rocha et al. (2023). Identifying setting factors associated with improved ibogaine safety: a systematic review of clinical studies. Eur Arch Psychiatry Clin Neurosci 273, 1527–1542. https://doi.org/10.1007/s00406-023-01590-1