Aquecimento global antropogênico foi responsável pelas extremas ondas de calor nos EUA e Canadá
O aquecimento global antropogênico - causado pelo excesso de gases estufas (ex.: CO2) lançados na atmosfera pelas atividades humanas - continua avançando e deflagrando preocupantes mudanças climáticas. Agora, cinco estudos publicados esta semana trazem ainda mais preocupação com o atual cenário climático. Atribuição de recentes e altíssimas temperaturas na América do Norte virtualmente impossíveis de ocorrerem sem o aquecimento global antropogênico, mortes por temperaturas anormalmente anômalas estão ficando cada vez mais comuns, doenças tropicais como a dengue e a malária podem afetar em breve um extra de bilhões de pessoas, e dois modelos climáticos apontam consistente risco de abruptas mudanças no sistema climático ainda neste século.
EXTREMOS NA AMÉRICA DO NORTE
Durante os últimos dias de junho de 2021, áreas no noroeste do Pacífico nos EUA e no Canadá experienciaram temperaturas nunca antes observadas, com recordes quebrados em vários lugares por vários graus Celsius. Múltiplas cidades Norte-Americanas de Oregon e Washington e de províncias ao oeste do Canadá registraram temperaturas bem acima de 40°C, incluindo um recorde antes nunca antes registrado na história do Canadá de 49,6°C na vila de Lytton, no dia 29 de junho. E pouco depois do recorde térmico, Lytton foi quase que completamente destruída em um massivo incêndio florestal.
As excepcionais altas temperaturas levaram a altos picos em mortes súbitas e a dramáticos aumentos em visitas hospitalares para doenças e em chamadas de emergência relacionadas às temperaturas muito altas. Ondas de calor são um dos perigos naturais mais letais, especialmente quando afetam populações não acostumadas com altas temperaturas e despreparadas para essa situação (ex.: ausência de ar condicionado), como nas altas latitudes da América do Norte. Por causa dessas ondas anormais de calor nos EUA e no Canadá, várias centenas de mortes ocorreram. Apenas na província de British Columbia, onde está localizada a vila de Lytton, mais de 500 mortes em excesso e 180 incêndios florestais foram registrados.
A extensão total dos danos dessas ondas de calor ainda precisam ser mensurados.
Nesse sentido, um grupo de 27 cientistas dos EUA, Canadá, Reino Unido, Holanda, França, Alemanha e Suíça junto ao projeto World Weather Attribution (WWA) correram para analisar se o atual e acelerado processo de aquecimento global influenciou a probabilidade de tais intensas ondas de calor nessas regiões (Ref.1).
Usando métodos publicados e revisados por pares, o time internacional de pesquisa analisou em particular a região onde a maioria das pessoas foram afetadas pelas ondas de calor (45–52 ºN, 119–123 ºW), incluindo as cidades de Seattle, Portland e Vancouver (com mais de 9 milhões de habitantes nas áreas metropolitanas combinadas). Entre os principais achados da análise, temos:
- Com base nas observações e aplicação de modelos, a ocorrência de uma onda de calor com máximos de temperaturas diárias como observados na área 45–52 ºN, 119–123 ºW é virtualmente impossível sem as mudanças climáticas causadas pelas atividades antropogênicas.
- As temperaturas observadas eram tão extremas que os valores se situam muito longe da faixa historicamente observada de temperaturas. Isso tornou inclusive difícil quantificar com confiança o quão raro esse evento foi. Na análise estatística mais realista conduzida pelos pesquisadores, foi estimado uma chance de 1 em 1000 anos no clima de hoje.
- O aquecimento global antropogênico tornou o evento 150 vezes mais provável de ocorrer na região em questão.
- A anômala onda de calor foi cerca de 2°C mais quente do que seria caso tivesse ocorrido no começo da Revolução Industrial (quando a temperatura global média era 1,2°C menor do que o atual valor).
- Em termos de perspectiva futura, em um mundo com aquecimento global de +2°C (0,8°C mais quente do que hoje, e alcançável com as atuais taxas de emissão de gases estufas no início da década de 2040), o evento teria sido 1°C mais quente. Um evento como esse - atualmente estimado de ocorrer apenas uma vez a cada 1000 anos - ocorreria a cada ~5 a 10 anos a partir de 2040.
Em resumo, um evento de extrema onda de calor como o testemunhado no Noroeste do Pacífico é ainda raro ou extremamente raro no clima de hoje, mas ainda assim seria virtualmente impossível de ocorrer sem o aquecimento global antropogênico. À medida que o aquecimento global avança, esse tipo de evento se tornará muito menos raro.
> Outras atribuições investigadas pela WWA:
- Onda extrema de calor na Sibéria foi causada pelo aquecimento global antropogênico
- Mudanças climáticas fizeram os incêndios na Austrália no mínimo 30% mais prováveis
- Aquecimento global fez as ondas de calor Europeias até 3°C mais quentes
MILHÕES DE MORTES
No caminho do anômalo evento de ondas de calor previamente explorado, um estudo publicado no periódico The Lancet Planetary Health (Ref.2) encontrou um extra de >5 milhões de mortes ao ano atribuídas a temperaturas anormalmente frias ou quentes. O estudo encontrou que as mortes relacionadas a altas temperaturas aumentaram em todas as regiões do mundo de 2000 até 2019, acompanhando o aquecimento de 0,26°C por década e indicando que as mudanças climáticas promovidas pelo aquecimento global antropogênico podem tornar essa taxa de mortalidade ainda pior no futuro.
De acordo com o estudo, 9,43% das mortes globais podem ser atribuídas a temperaturas frias e quentes. Isso equivale a um excesso de 74 mortes para cada 100 mil pessoas, com mais mortes sendo causadas por exposição ao frio. Porém, mortes frio-relacionadas diminuíram 0,51% de 2000 até 2019, enquanto mortes quente-relacionadas aumentaram 0,21%, levando a uma redução na mortalidade global devido a temperaturas anômalas. Com a continuidade do aquecimento global, as mortes por eventos de alta temperatura podem se tornar mais prevalentes e muito mais expressivas.
MALÁRIA E DENGUE
E não apenas mortes por temperaturas anômalas são uma preocupação. Um estudo publicado no periódico Lancet Planetary Health (Ref.3) estimou que 8,4-8,5 bilhões de pessoas podem estar em risco de serem infectadas pelo vírus da malária e da dengue até o final deste século se as emissões de gases estufas continuarem aumentando nos atuais níveis. Essa estimativa de 'pior cenário' (+3,7°C até 2100 comparado com a temperatura média do período pré-industrial) implica um extra de ~4,7 bilhões de pessoas (relativo ao período de 1970-1999) expostos a essas doenças, particularmente em áreas urbanas e de baixa altitude.
Isso porque com o contínuo aquecimento global, áreas de maior latitude que antes eram inadequadas para a sobrevivência dos mosquitos vetores (gêneros Aedes e Anopheles) devido às menores temperaturas se tornarão cada vez mais convidativas para esses insetos. Epidemias de malária avançarão mais ao norte na América do Norte, Centro-Norte Europeu e Norte Asiático, e epidemias de dengue avançarão para o Centro-Norte Europeu e para o Norte dos EUA. Já existe um notável aumento da presença dos mosquitos Aedes albopictus e Aedes aegypti sendo observado na Europa.
Além disso, no pior cenário, áreas tropicais de alta altitude (>1000 metros), como na Etiópia, Angola, África do Sul e Madagascar, poderão experienciar um adicional de até 1,6 meses de clima favorável para a transmissão da malária em 2070-2099 comparado com o período de 1970-1999. Em áreas do Sudeste Asiático, África Subsaariana e o subcontinente da Índia, o período de transmissão de dengue pode aumentar em até 4 meses adicionais. Isso pode resultar um aumento de +1,4 bilhões de pessoas na África e no Sudeste da Ásia sob risco de malária e de dengue.
Em áreas na África de alta altitude, climas favoráveis para a transmissão de malária já aumentou em cerca de 30% entre 2012 e 2017 comparado com linha de base no ano de 1950.
Os achados do estudo reforçam o quanto é crucial reduzir ao máximo as emissões de gases estufas, buscando pelo menos manter as temperaturas abaixo de 2°C de aumento. É preciso também lembrar que as novas populações atingidas por essas doenças serão mais vulneráveis em termos de impacto no organismo por não existir um histórico evolutivo de convivência com os patógenos associados.
A malária é causada por cinco espécies de protozoários do gênero Plasmodium. A mais preocupante espécie é o P. falciparum, responsável por cerca de 97% de todos os novos casos globais (~230 milhões/ano), a maior parte deles (93%) concentrados na África Subsaariana. Para mais informações sobre essa doença e seus impactos no Brasil e no mundo, acesse: Mulher de 29 anos com malária, infectada no Rio de Janeiro
PONTOS DE VIRADA
É frequentemente assumido que as mudanças climáticas causadas pelo aquecimento global antropogênico irão proceder de forma gradual à medida que os gases estufas na atmosfera aumentam de concentração, em especial do dióxido de carbono (CO2). Porém, nos últimos 15 anos, tem se tornado cada vez mais claro que o sistema climático da Terra ou subsistemas associados - como a cobertura de gelo marinho, sistemas de monção (ventos) e correntes oceânicas - podem mudar abruptamente de um estado básico para outro excitado, e com pouco aviso de antecedência, à medida que os níveis de CO2 aumentam. Isso é conhecido como ponto de virada climática.
O sistema Terra é um sistema dissipativo multiescala forçado por sinais externos tempo-dependentes de várias origens. Dada a enorme complexidade do sistema, podemos dividi-lo em vários subsistemas, cada um deles afetados pelos outros. Os subsistemas individuais, por sua vez, podem ser considerados como sendo tanto forçados quanto dissipativos. As dinâmicas desses sistemas podem ser descritas usando conceitos e métodos da teoria de sistemas dinâmicos, baseada em leis de conservação e aproximações simplificadas sujeitas à influência de forças externas.
Nesse sentido, dois estudos usando modelos de simulação climática e investigando a probabilidade desses subsistemas alcançarem um ponto de virada, concluíram que abruptas mudanças climáticas podem ser menos previsíveis e mais amplamente disseminadas no sistema climático do que antes antecipado, colocando em cheque a suposta segurança de aumentos menores do que 2°C na temperatura média superficial do planeta.
No primeiro estudo, publicado no periódico Journal of Advances in Modeling Earth Systems (Ref.4), os pesquisadores mostraram em um modelo acoplado oceano-atmosfera como os subsistemas de vento na latitude média sobre a Europa e a América do Norte (climas extratropicais) possuem uma probabilidade de virar entre diferentes tipos de comportamento (ou diferentes regimes) dependendo da força promovida pelo El Niño Oscilação do Sul (ENSO). A influência do ENSO nas latitudes médias e altas de ambos os hemisférios é muito importante devido à presença de teleconexões entre o Pacífico Tropical e várias regiões ao longo do mundo.
A natureza probabilística de ponto de virada revelada para os subsistemas afetados pelo ENSO complica predições, as quais são geralmente baseadas na presunção de que os sistemas climáticos mudam gradualmente e de forma mais previsível. O achado, portanto, explica porque padrões de precipitação e de temperatura durante e após um El Niño têm sido tão difíceis de serem preditos com acuracidade.
No segundo estudo, publicado no periódico Scientific Reports (Ref.5), pesquisadores analisaram a Corrente do Golfo, a qual distribui calor para o Atlântico Norte e atua de forma importante para manter as temperaturas na Europa Ocidental relativamente amena. Os pesquisadores encontraram um ponto de virada taxa-induzido no sistema excitável associado, onde a mudança abrupta no clima ocorre não porque um certo limite foi alcançado (ex.: nível de CO2 na atmosfera), mas, sim, porque a taxa de mudança é muito rápida para o sistema evoluir gradualmente
Segundo os autores desses estudos, o ponto de virada climática é um risco iminente no sistema Terra. Mesmo considerando um aumento de temperatura entre 1,5°C e 2°C acima do valor médio atual - meta do Acordo Climático de Paris e do IPCC (Painel Internacional de Mudanças Climáticas) -, mudanças abruptas, irreversíveis e não esperadas no clima terrestre podem ocorrer, fomentados por diferentes feedbacks positivos engatilhados pela interferência antropogênica (!). O foco, portanto, é reduzir o máximo possível as emissões de gases estufas, visando zerá-las e não apenas amenizá-las.
(!) Para mais informações: Quais os mecanismos do efeito estufa atmosférico?
Aliás, essa preocupação teórica não possui fundamentação apenas em modelos climáticos relativos ao futuro. Dados paleoclimáticos apontam quatro estados climáticos marcando o Cenozoico (incluindo o atual Holoceno): "Hothouse", "Warmhouse", "Coolhouse" e "Icehouse". Esses distintos estados são primariamente determinados pelas concentrações de gases estufas na atmosfera e pelo volume de gelo polar, onde temos maiores concentrações de CO2 e pouco ou nenhum volume de gelo durante os estados de Hothouse e de Warmhouse comparado com os estados de Coolhouse e Icehouse - esse último onde estamos hoje. Ao longo desses estados, houve quedas e aumentos dramáticos de temperatura em curtíssimos intervalos geológicos de tempo, de ±5°C até ±12°C (!), refletindo mudanças abruptas no clima. Considerando esses períodos, o fator antropogênico dirigindo as atuais mudanças climáticas é capaz de reverter em algumas dezenas de anos processos climáticos que levaram dezenas de milhões de anos.
(!) Para mais informações: Quais são as evidências paleoclimáticas do Aquecimento Global Antropogênico?
REFERÊNCIAS
- https://www.worldweatherattribution.org/western-north-american-extreme-heat-virtually-impossible-without-human-caused-climate-change/
- https://www.thelancet.com/journals/lanplh/article/PIIS2542-5196(21)00081-4/fulltext
- https://www.thelancet.com/journals/lanplh/article/PIIS2542-5196(21)00132-7/fulltext
- https://agupubs.onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1029/2021MS002530
- https://www.nature.com/articles/s41598-021-90138-1