Medicamento autorizado pela ANVISA é ainda suportado por escassa evidência científica
A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) autorizou esta semana (1) o uso emergencial de um medicamento contra a COVID-19. Trata-se de um coquetel que contém a combinação de casirivimabe e imdevimabe (REGN-CoV2), dois anticorpos monoclonais experimentais desenvolvidos pela farmacêutica Roche. É o segundo medicamento aprovado pela agência. O primeiro foi o Remdesivir. Mas existe dúvida quanto a evidência científica de suporte para o fármaco, especialmente aqui no Brasil.
O REGN-CoV2 é um coquetel composto por dois anticorpos monoclonais IgG1 neutralizantes (casirivimabe e imdevimabe) que visam o domínio do domínio de ligação do receptor (RBD) da proteína Spike ("coroa") do novo coronavírus (SARS-CoV-2), portanto prevenindo a entrada viral do SARS-CoV-2 nas células humanas através do receptor glicoproteico ACE2. Nesse sentido, a ideia dessa proposta é neutralizar o vírus para que ele não se propague nas células infectadas e assim controlar a doença. No geral, segundo a Anvisa, o Regn-CoV2:
- Deve ser administrado por infusão intravenosa, ou seja, idealmente em ambiente hospitalar;
- O tratamento é indicado para adultos e pacientes pediátricos (com 12 anos ou mais que pesem no mínimo 40 kg) que não necessitam de suplementação de oxigênio, com infecção por SARS-CoV-2 confirmada por laboratório e que apresentam alto risco de progressão para COVID-19 grave.;
- Não é recomendado para pacientes graves, e pode estar associado a piora nos desfechos clínicos quando administrados em pacientes hospitalizados com COVID-19 que necessitam de suplementação de oxigênio de alto fluxo ou ventilação mecânica;
- Não é indicado para prevenção da Covid-19;
- O coquetel já foi aprovado para uso emergencial nos Estados Unidos (Agência de Drogas e Alimentos, FDA), Canadá e Suíça. Também teve recomendação de uso pela agência europeia de medicamentos (EMA);
- Não substitui as vacinas contra a COVID-19.
Porém, assim como no caso do Remdesivir, existe importante limitação quanto à eficácia do REGN-CoV2, incluindo relativa escassez de evidência científica. A justificativa principal da Anvisa para a aprovação do REGN-CoV2 parece ser o fato desse medicamento ter sido também aprovado por agências europeias e Norte-Americanas para uso emergencial, porque o único estudo de alta qualidade (duplo-cego, randomizado, placebo-controlado) sobre o medicamento foi publicado no final de janeiro deste ano no periódico The New England Journal of Medicine (NEJM) (2). É um estudo de porte pequeno-médio e ainda incompleto, ou seja, os resultados são preliminares.
Estudos in vivo (macacos Rhesus e hamsters) prévios, tinham mostrado que em primatas não-humanos o REGN-COV2 possui profunda atividade antiviral em um contexto profilático e foi efetivo em reduzir de forma significativa a carga viral em um contexto terapêutico (3).
No estudo publicado no NEJM, foram analisados 275 pacientes sintomáticos, não-hospitalizados e com confirmação de infecção por SARS-CoV-2 (estágios iniciais da COVID-19). O estudo, que ainda estava em andamento na data de publicação, dividiu os participantes em três grupos: um recebendo placebo, o outro recebendo 2,4 g de REGN-COV2 e, por fim, um recebendo 8,0 g de REGN-COV2. Os principais resultados clínicos perseguidos no estudo foram a mudança da carga viral do dia 1 até o dia 7 pós-tratamento, e a porcentagem de pacientes com pelo menos uma visita médica relacionada à COVID-19 até o dia 29 pós-tratamento (indicando possivelmente um agravamento nos sintomas da doença).
Os resultados mostraram que houve uma significativa redução da carga viral em comparação com o placebo, e que, na população geral do teste clínico, 6% dos pacientes no grupo de placebo e 3% dos pacientes nos grupos REGN-COV2 reportaram pelo menos uma visita ao médico. Entre os pacientes que estavam soro-negativos no início do tratamento (sem perceptível reposta imune ainda contra a infecção), 15% reportaram pelo menos uma visita ao médico no grupo de placebo, e apenas 6% nos grupos REGN-COV2.
Esses achados dão suporte à hipótese de que a maioria das pessoas infectadas pelo SARS-CoV-2 se recuperam sem necessidade de hospitalização porque conseguem já montar uma resposta imune já no início da infecção, reduzindo substancialmente a carga viral de forma precoce e diminuindo consequentemente as chances de uma progressão mais severa da COVID-19. Nesse sentido, pacientes soro-negativos que recebem os anticorpos neutralizantes monoclonais exógenos podem garantir o mesmo ou similar efeito endógeno de proteção precoce.
Por outro lado, o estudo ainda é muito limitado, e não trouxe sólida evidência de que essa redução inicial na carga viral de fato reduz as taxas de mortalidade ou de progressão mais severa da doença, especialmente quando múltiplos fatores de risco estão associados à COVID-19 e quando existem tão poucos participantes nos grupos de controle e de intervenção. A associação entre visitas ao médico com severidade não é suficiente para isso.
E além da necessidade de estudos clínicos de grande porte e mais compreensivos para mais firmes conclusões sobre o coquetel, é válido lembrar que o Brasil foi dominado pela variante P.1, associada com uma forte capacidade de evasão imune, e que a variante Sul-Africana (B.1.351) - ainda mais preocupante em termos de evasão imune - já foi detectada circulando em São Paulo. Mais estudos são necessários para verificar se esse coquetel é eficiente contra essas variantes de preocupação, as quais já mostraram efetivamente escapar de misturas policlonais de anticorpos neutralizantes produzidos em resposta a cepas prévias.
Considerando o elevado custo do REGN-COV2 e escassa evidência científica, é incerto se a autorização de uso emergencial da Anvisa realmente faz sentido antes de mais estudos, ou se foi algum tipo de marketing político. Talvez a Anvisa tenha informações privilegiadas de dados clínicos ainda não tornados públicos.
REFERÊNCIAS
- (1) https://g1.globo.com/bemestar/coronavirus/noticia/2021/04/20/anvisa-autoriza-uso-emergencial-de-coquetel-contra-covid-19.ghtml
- (2) https://www.nejm.org/doi/full/10.1056/NEJMoa2035002
- (3) https://science.sciencemag.org/content/370/6520/1110