Essas lesmas marinhas decepam a própria cabeça e crescem novos corpos dentro de 20 dias
De acordo com os pesquisadores responsáveis pela descoberta - reportada e descrita em um estudo publicado em 2021 no periódico Current Biology (Ref.1) -, em entrevista para a Science Magazine (Ref.2), foi como um "filme de terror".
O clado Sacoglossa (Gastropoda: Heterobranchia) engloba o mais especializado grupo de herbívoros marinhos, incluindo algumas espécies que são capazes de realizar fotossíntese a partir de cloroplastos sequestrados de algas (!), particularmente no gênero Elysia. Autotomia refere-se ao descarte voluntário de partes corporais por um organismo, e é comum em diversos grupos de seres vivos distantes em termos filogenéticos, como artrópodes, gastrópodes, anfíbios e répteis. O processo de autotomia é geralmente seguido pela regeneração de partes corporais terminais, como apêndices ou caudas.
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Leitura complementar:
> A habilidade de sequestrar temporariamente cloroplastos funcionais após ingestão de algas evoluiu de forma convergente múltiplas vezes em invertebrados. Nas células digestivas de lesmas da superordem Sacoglossa, material fagocitado de algas é seletivamente degradado, deixando apenas os cloroplastos intactos e funcionais e fornecendo às lesmas nitrogênio e carbono fixado (nutrientes). O tempo que esses cloroplastos sequestrados ficam fotossinteticamente ativos difere entre as espécies de lesma desse grupo, variando de alguns dias na espécie Elysia cornigera até >11 meses na espécie Plakobranchus ocellatus. Fatores responsáveis por manter esses cloroplastos funcionais no corpo da lesma por períodos estendidos de tempo - mesmo sem o genoma nuclear das algas - não são totalmente esclarecidos, mas parecem envolver expressão única de centenas de genes que parecem garantir estabilidade e proteção às organelas sequestradas (ex.: imunidade adaptativa e "blindagem" contra estresse oxidativo e radiação UV). Ref.3
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No estudo citado, os pesquisadores reportaram e descreveram uma nova forma de autotomia extrema em duas espécies de sacoglossanos: Elysia marginata e Elysia Atroviridis. Após a observação inicial do fenômeno em um espécime, os dois pesquisadores envolvidos no estudo, Sayara Mitoh e Yoich Yusa, coletaram vários espécimes no meio selvagem da espécie E. atroviridis, junto com 15 indivíduos criados em laboratório da espécie E. marginata, para serem melhor analisados nesse sentido.
Ao longo do estudo, cinco dos 15 espécimes de E. marginata decapitaram a si mesmos, com o ferimento resultante no pescoço sendo fechado geralmente dentro de 1 dia, e as cabeças permanecendo bastante ativas e funcionais. Dentro de algumas horas, as cabeças "zumbis", especialmente em espécimes mais jovens, começaram a se alimentar de algas. Dentro de 7 dias, o coração foi regenerado. Cerca de 20 dias depois, um corpo inteiramente novo se formou. No vídeo abaixo, todo esse processo é demonstrado.
No grupo da espécie E. atroviridis, três dos 82 espécimes coletados se decapitaram, e dois dos decapitados eventualmente cresceram novos corpos.
Uma das lesmas conseguiu se regenerar duas vezes após o processo de autotomia. Porém, em nenhuma das duas espécies uma cabeça se regenerou a partir dos corpos decapitados, apesar do corpo descartado frequentemente permanecer ativo por vários meses.
Entre os espécimes auto-decapitados de E. atroviridis, todos estavam infectados com pequenos crustáceos conhecidos como copépodes (subclasse Copepoda). Em outro grupo analisado contendo 64 indivíduos E. atroviridis sem parasitas, nenhum deles se decapitou, levando os pesquisadores a propor que essas lesmas marinhas separam a cabeça do corpo como um meio de se livrarem de parasitas, estes os quais podem interferir de forma deletéria na capacidade reprodutiva desses animais. Outra possível explicação é a de que essas lesmas estariam usando a autotomia para escaparem de predadores durante um ataque. Porém, quando os pesquisadores imitaram situações de ataque por um predador - apertando e cortando as lesmas -, não houve decapitação voluntária. Aliás, o processo de autotomia observado durava várias horas, sendo improvável ter alguma serventia durante o escape de algum predador.
O real grande mistério é como exatamente essas lesmas sobrevivem à decapitação, persistindo vivas por vários dias sem um coração, sem quase todo o aparelho digestivo e sem outros órgãos vitais. Os pesquisadores acreditam que o fato dessas lesmas serem fotossintéticas - com cloroplastos sequestrados e modificados espalhados por todos o corpo - forneceria uma crucial fonte alternativa de substratos energéticos na ausência de um intestino. De fato, a cabeça "zumbi" dessas lesmas continuava ávida por algas (fonte de cloroplastos) mesmo sem sistema digestivo completo para processar os nutrientes associados. Entre indivíduos observados dentro e fora dos grupos estudados com idades mais avançadas, as cabeças decepadas não eram capazes de consumir algas, morrendo cerca de 10 dias depois.
No caso da falta de bombeamento de sangue, os pesquisadores sugeriram que devido ao pequeno tamanho da cabeça dessas lesmas, a necessidade de oxigênio não é grande nessa região, com um mínimo de oxigênio podendo ser assimilado do ambiente aquático a partir da superfície corporal.
Mais experimentos serão necessários para melhor elucidar os mecanismos fisiológicos e moleculares por trás desse extremo e inesperado processo de regeneração, o qual provavelmente deve envolver células-tronco especiais na extremidade final do pescoço separado.
REFERÊNCIAS
- Mitoh & Yusa. (2021). Extreme autotomy and whole-body regeneration in photosynthetic sea slugs. Current Biology, Volume 31, Issue 5. https://doi.org/10.1016/j.cub.2021.01.014
- https://www.sciencemag.org/news/2021/03/sea-slug-cut-its-own-head-and-lived-tell-tale
- Katharine et al. (2023). A reference genome for the long-term kleptoplast-retaining sea slug Elysia crispata morphotype clarki, G3 Genes|Genomes|Genetics, Volume 13, Issue 12, jkad234. https://doi.org/10.1093/g3journal/jkad234