Pessoas com essa variante genética são mais resistentes ao frio, conclui estudo
- Atualizado no dia 28 de abril de 2024 -
Em um estudo publicado no periódico American Journal of Human Genetics (Ref.1), pesquisadores identificaram uma variante genética que parece proteger os humanos contra baixas temperaturas, à medida que nossa espécie (Homo sapiens) migrou da África para a Europa há mais de 50 mil anos. A variante (R577X) pertence a um gene (ACTN3) que afeta as funções da musculatura esquelética, e sua presença homozigótica leva à perda de uma proteína músculo-esquelética chamada de α-actina-3. A frequência dessa variante aumentou dramaticamente durante o período em que os humanos modernos se moveram para ambientes mais frios. No novo estudo, os pesquisadores mostraram que a deficiência da proteína α-actina-3 melhora a tolerância ao frio em humanos ao aumentar o tônus muscular.
A proteína sarcomérica α-actinina-3 está presente nos discos-Z das fibras músculo-esqueléticas, onde realiza ligações cruzadas entre filamentos de actina de sarcômeros adjacentes (unidades de miosina e de actina que se repetem ao longo dos filamentos musculares, as quais permitem as contrações musculares nos músculos estriados). Porém, a α-actinina-3 está ausente em 1,5 bilhão de pessoas ao redor do mundo devido ao polimorfismo nonsense R577X. A falta do gene funcional ACTN3 não causa doença muscular, mas afeta a funcionalidade muscular tanto na população em geral quanto em atletas. No geral, deficiência α-actinina-3 é detrimentosa para atividades de poder e de velocidade.
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> Estudos experimentais, observacionais e de revisão têm apontado que a expressão normal da proteína α-ctinina-3 em fibras de contração rápida parece oferecer benefícios no desenvolvimento de performance em termos de força e potência muscular. Pessoas com a presença dessa proteína parecem ter maior facilidade de se tornarem atletas de elite em esportes com altas demandas de força e potência muscular. Além disso, atletas sem essa proteína parecem ser mais suscetíveis a lesões, especificamente lesões musculares, ligamentares e exacerbação de danos musculares. Ref.2-3
> É estimado que ~20% da população mundial possui um genótipo com a variante ou polimorfismo R577X [X] nos dois alelos [XX] do gene ACTN3, e, nesse sentido, são incapazes de sintetizar a proteína α-ctinina-3. Indivíduos com um alelo normal [R] expressam a proteína (indivíduos RX e RR). O genótipo XX não causa significativo prejuízo ao funcionamento normal do corpo, já que a falta da proteína α-ctinina-3 é compensada pela expressão em excesso da proteína α-ctinina-2. Ref.3
> Mais de 200 genes e polimorfismos podem alterar as habilidades físicas e fisiológicas de atletas, e é estimado que fatores genéticos respondem por 40-60% das variações em parâmetros cardiorrespiratórios, 50-90% das variações na performance aeróbica, e 30-70% de variações na força muscular. Ref.3
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Estudos prévios explorando as implicações evolucionárias da deficiência em α-actinina-3 já mostraram que o alelo 577X se tornou mais abundante à medida que os humanos migraram para fora da África em direção a regiões mais frias do norte e da parte central da Europa. Isso levou à hipótese de que humanos modernos com essa deficiência proteica são superiores em se adaptar a temperaturas mais baixas.
No novo estudo, os pesquisadores resolveram testar a hipótese de adaptação ao frio, através de testes experimentais in vivo de resistência aguda a baixas temperaturas. Para isso, foram recrutados 42 participantes saudáveis do sexo masculino com idades de 18 a 40 anos e apresentando ou a variante R577X ou o gene funcional ACTN3.
Os participantes foram, então, imersos em água a 14°C por um período de 20 minutos, intercalados por pausas de 10 minutos fora da água em temperatura ambiente. Exposições sucessivas à água fria continuaram até a temperatura retal dos participantes alcançar 35,5°C, ou por um total de 120 minutos (170 minutos incluindo as pausas).
Os resultados mostraram que enquanto 69% dos participantes com a variante R577X foram capazes de manter a temperatura corporal acima de 35,5°C durante todo o período experimental, apenas 30% dos participantes com o gene funcional ACTN3 foram capazes de fazer o mesmo. Na média, a perda da α-actinina-3 resultou em metade da taxa de declínio de temperatura no reto e sobre os músculos da panturrilha.
Além disso, o mais interessante dos achados é que os carregadores da variante R577X tendiam a ter maior quantidade de fibras de contração lenta (Tipo I), resultando em um aumento do tônus muscular ao invés de um maior movimento de tremor durante a imersão em água fria. Isso melhorou de forma robusta a resistência ao frio mas sem um consumo de maior energia para manter a temperatura corporal mais alta (sem variação significativa nas taxas cardíacas, VO2 e VCO2 em comparação com os indivíduos ACTN3-funcionais). Em contraste, indivíduos com o gene funcional tinham mais fibras musculares de contração rápida (Tipo II), dobrando a taxa de atividade explosiva de alta intensidade.
Somados, os resultados fornecem um mecanismo fisiológico suportando uma maior resistência ao frio e com economia de energia em indivíduos com a variante R577X: mais fibras musculares de contração lenta nos músculos desses indivíduos acopladas com uma mudança na ativação neuronal muscular no sentido de aumentar o tônus muscular ao invés de aumentar o energeticamente custoso tremor corporal.
Em experimentos realizados em ratos, os pesquisadores também encontraram que a deficiência em α-actinina-3 não aumenta o tecido de gordura marrom frio-induzido, o qual é muito importante na geração de calor em mamíferos hibernantes e em bebês – esses últimos são incapazes de tremer (tremor corporal gera energia térmica colateralmente ao gasto de ATP – moeda energética das células – para a rápida movimentação das fibras musculares, típica de fibras musculares do Tipo II). Esse resultado reforça que a variante R577X não causa resistência ao frio via aumento da gordura marrom – uma possível explicação alternativa ou complementar -, reforçando o cenário de adaptação ao frio via ativação diferencial de fibras do Tipo I e II.
O próximo passo dos pesquisadores é explorar se a deficiência em α-actinina-3 ajuda bebês a lidarem melhor com o frio, algo que teria sido muito importante há dezenas de milhares de anos em territórios desconhecidos e com um clima drasticamente novo. Um melhor entendimento desse processo evolutivo na nossa espécie pode também ajudar a entender problemas modernos de saúde, como obesidade, diabetes e outras desordens metabólicas. Como hoje temos outros meios (tecnológicos) para nos proteger de forma mais eficiente do frio e acesso “ilimitado” a alimentos, indivíduos com a variante R577X podem ser mais suscetíveis ao acúmulo de reservas energéticas (ex.: gordura) e maior dificuldade na queima de glicose em excesso na circulação sanguínea, já que possuem adaptações extras de economia energética.
REFERÊNCIAS
- Wyckelsma et al. (2021). Loss of α-actinin-3 during human evolution provides superior cold resilience and muscle heat generation. AJHG, Volume 108, Issue 3, P446-457. https://doi.org/10.1016/j.ajhg.2021.01.013
- Zouhal et al. (2023). Association between ACTN3 R577X genotype and risk of non-contact injury in trained athletes: A systematic review. Journal of Sport and Health Science, Volume 12, Issue 3, Pages 359-368. https://doi.org/10.1016/j.jshs.2021.07.003
- Ouali et al. (2024). A Systematic Review and Meta-analysis of the Association Between ACTN3 R577X Genotypes and Performance in Endurance Versus Power Athletes and Non-athletes. Sports Medicine - Open 10, 37. https://doi.org/10.1186/s40798-024-00711-x