Terapia contra COVID-19 fomentou preocupantes mutações em paciente com sistema imune comprometido
Em um estudo publicado na Nature (1), pesquisadores reportaram que o tratamento com transfusão de plasma convalescente parece ter fomentando mais do que preocupantes mutações no SARS-CoV-2 que infectou um homem com o sistema imune comprometido (imunossuprimido e imunodeprimido) com idade entre 70 e 80 anos. Ao longo do curso de tratamento, o vírus adquiriu mutações com alta capacidade de evasão imune e mutações que, ao mesmo tempo, garantiram alta infectividade. O achado é um alerta para o tratamento anticorpo-baseado de longo prazo visando pacientes com COVID-19, e demonstra mais uma vez a alta capacidade de adaptação evolutiva do vírus.
O paciente em questão foi admitido em um hospital terciário no verão de 2020 e tinha testado positivo para o SARS-CoV-2 com teste PCR trinta e cinco dias previamente ao teste nasofaríngeo (Dia 1) no hospital local. No seu histórico médico constava um linfoma de células b da zona marginal diagnosticado em 2012, com prévia quimioterapia incluindo vincristina, prednisolona, ciclofosfamida e depleção de células anti-CD20 B com rituximabe. Nesse sentido, é provável que tanto a quimioterapia quanto o linfoma contribuíram para imunodeficiência de células-T e -B (células de memória imune).
Tomografia computacional (CT) do peito mostrou disseminadas anormalidades consistentes com pneumonia causada por COVID-19. Tratamento incluiu dois cursos de 10 dias de remdesivir com uma lacuna de 5 dias entre ambos, mas sem resultados. Duas unidades de plasma convalescente (soro sanguíneo contendo anticorpos neutralizantes de outro paciente recuperado) (2) foram então administradas nos dias 63 e 65 dias. Seguindo deterioração clínica, remdesivir e uma unidade de plasma convalescente foram administrados no dia 95, mas o paciente acabou morrendo no dia 102.
(2) Leitura recomendada: Plasma convalescente: tratamento precoce de baixo custo e efetivo contra a COVID-19, aponta forte evidência
Ao longo do tratamento, 23 amostras respiratórias do paciente foram sequenciadas para acompanhar a evolução do vírus no seu corpo. As análises mostraram que no início da infecção, o paciente carregava a linhagem 20B do SARS-CoV-2, associada com a mutação D614G que havia dominado a pandemia no ano passado. Ou seja, nenhuma surpresa. Após a administração dos dois cursos de remdesivir, a população viral variou pouco em termos genômicos. Porém, após as primeiras duas administrações de plasma convalescente entre os dias 66 e 82, uma significativa mudança na população viral foi observada, com uma variante carregando a mutação (deleção) D796H na subunidade S2 da proteína Spike e a mutação ΔH69/ΔV70 no domínio N-terminal da subunidade S1 da proteína Spike se tornando a população dominante no dia 82. A proteína Spike é o principal alvo dos anticorpos neutralizantes.
Quando o tratamento foi interrompido, a variante dominante prévia (pós-remdesivir) - chamada de NSP15 N1773S - adquiriu duas novas mutações na proteína Spike (Y200H e T240I), adquirindo grande vantagem competitiva em relação à variante D796H/ΔH69/ΔV70 - a qual teve uma reduzida capacidade de infectividade - e reganhando dominância.
Porém, na última tentativa de reduzir a carga viral no paciente, o terceiro curso de remdesivir (dia 93) e a terceira dose de plasma convalescente (dia 95) foram administrados. Então, seguindo seleção positiva, as mutações D796H + ΔH69/ΔV70 reemergiram na última variante dominante e com maior poder de infectividade. Agora, o SARS-CoV-2 tinha alta capacidade de evasão imune em relação aos anticorpos neutralizantes do plasma convalescente mas mantendo sua capacidade de infectividade original. Com a nova ressurgência viral, um quadro de hiperinflamação se desenvolveu no paciente, levando a falhas em múltiplos órgãos e morte no dia 102.
Sensibilidade 2 vezes menor à capacidade de neutralização do plasma convalescente da mutação dupla D796H + ΔH69/ΔV70 foi confirmada em experimentos in vitro, mesmo com a presença de anticorpos policlonais (!).
A eficácia clínica do plasma convalescente em casos severos de COVID-19 ainda não foi demonstrada (apesar de evidências favoráveis) (2), e seu uso em diferentes estágios de infecção e da doença permanece experimental. Além disso, cada vez mais evidências vêm mostrando que plasma convalescente sem um nível alto de anticorpos - a maior parte das doses doadas por pacientes recuperados - são ineficazes Nesse sentido, os autores do estudo sugeriram que o uso dessa estratégia terapêutica deveria ser reservado apenas para testes clínicos, com rigoroso monitoramento dos parâmetros clínicos e virológicos. Mesmo com a evidência muito limitada de um único caso reporte, os autores também pediram bastante cuidado com o uso de plasma convalescente em paciente com supressão imune de células-T e -B. Em tais casos, os anticorpos administrados terão pouco suporte de células-T citotóxicas, portanto reduzindo as chances de limpeza viral e teoricamente aumentando o potencial para a emergência de mutações de evasão/escape imune. Nesses pacientes, o monitoramento e sequenciamento genômico do vírus deve ser redobrado.
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(!) Esse tipo de evasão imune do vírus é uma preocupação também para a eficácia das promissoras terapias envolvendo anticorpos monoclonais, os quais podem ser evadidos com maior facilidade por se tratar de um único tipo de anticorpo neutralizante.
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> É sugerido que as preocupantes novas variantes se alastrando no Reino Unido (3), Amazonas (4) e África do Sul (5) podem ter emergido de indivíduos imunossuprimidos e/ou imunodeprimidos atravessando longos períodos de infecção. Isso reforça a importância de medidas de controle epidêmico para reduzir as chances de que esses indivíduos mais suscetíveis a perigosas evoluções virais sejam infectados.
Para mais informações:
- (3) Nova variante no Reino Unido do SARS-CoV-2 acumulou um recorde de 17 mutações relevantes
- (4) Nova variante do SARS-CoV-2 em Manaus é potencialmente mais contagiosa e causou reinfecção
- (5) Variante do novo coronavírus na África do Sul parece ser mais séria do que pensado
> Publicação do estudo: https://www.nature.com/articles/s41586-021-03291-y