Transmissão de traço adaptativo adquirido: estudo demonstra evolução "Lamarckiana" no arroz
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Figura 1. Cabeça reprodutiva (panícula) do arroz. |
É possível a herança de características adquiridas - similar à ideia defendida por Lamarck no início do século XIX (!) - protagonizar evolução adaptativa? Embora essa noção tenha sido enterrada com os trabalhos de Darwin no final do século XIX e esquecida com os avanços na genética ao longo do século XX, nas últimas duas décadas múltiplas evidências experimentais e moleculares estão desenterrando conceitos [neo]"lamarckianos", através de mecanismos epigenéticos e de plasticidade fenotípica (1). Em outras palavras, traços que emergem ao longo da vida de indivíduos, e sem envolver mudanças nas sequências genéticas, podem estar sendo transmitidos ao longo de gerações e de forma similar à evolução Darwiniana. Mas evidências para esse fenômeno evolutivo em processos naturais tem sido limitadas ou elusivas, especialmente quando envolve traços adaptativos.
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Em um estudo publicado esta semana na Cell (Ref.1), cientistas na China mostraram que plantas do arroz (Oryza sativa L.) podem herdar tolerância ao frio sem mudanças no genoma. O estudo analisou múltiplas variedades dessa planta ao longo de vários anos e revelou "epialelos" de um gene com diferentes níveis de metilação transmitidos entre gerações e de forma estável, demonstrando que um traço adaptativo resultante de epigenética pode ser herdado e fixado em uma população.
"O que eles estão mostrando é extremamente convincente; eu diria que é um estudo revolucionário no campo," disse em entrevista à Nature o geneticista botânico Leandro Quadrana, do Centro Francês para Pesquisa Científica em Paris-Saclay, e sem envolvimento com o estudo (Ref.2).
Mecanismos epigenéticos, incluindo metilação do DNA e sequências curtas de RNA, operam a nível extra-genômico e estão ligados a fenótipos induzidos por fatores ambientais (ex.: temperatura, nível de predação, disponibilidade de alimentos). Marcadores epigenéticos no DNA são responsáveis por regular a atividade de genes e, nesse sentido, alteram características gerais do organismo (ex.: ao ligar ou desligar genes específicos). Epialelos associados à metilação de genes - ou seja, remoção ou adição de grupos metila (-CH3) em bases nitrogenadas de genes - podem potencialmente mediar a herança de novos fenótipos em organismos diversos, incluindo plantas.
A planta do arroz teve origem de regiões tropicais do planeta, mas, mesmo adaptada a ambientes mais quentes, tem sido também cultivada com sucesso em regiões de maior latitude e mais frias. Para investigar a adaptação do arroz a ambientes de baixa temperatura, pesquisadores da Academia Chinesa de Ciências, em Pequim, primeiro identificaram uma variedade da planta que era particularmente suscetível ao frio, produzindo menor quantidade de sementes viáveis quando cultivada em ambientes de menor temperatura.
Pouco antes das plantas vulneráveis ao frio estarem prontas para o período reprodutivo, os pesquisadores moveram exemplares dessa variedade para uma câmara mantida à temperatura de -15°C por 7 dias, antes de retornarem elas para o campo natural. Sementes foram coletadas de plantas que produziram a maior quantidade de sementes, e a próxima geração foi submetida ao mesmo estresse térmico (baixa temperatura). Os pesquisadores notaram que, pela terceira geração, uma variedade produziu várias sementes, apesar do estresse térmico. As plantas mantiveram essa habilidade por cinco gerações ao longo do experimento - que durou aproximadamente uma década - mesmo sem estímulo ambiental atuante.
O rápido desenvolvimento e fixação de tolerância ao frio - adquirida no estágio meiótico de produção dos gametas (sensibilidade térmica na meiose) - chamou a atenção dos pesquisadores. Seleção natural e mutações necessárias para o estabelecimento e transmissão intergeracional estável desse tipo de traço adaptativo geralmente levam muito mais tempo, às vezes milhares de anos.
Para descartar a possibilidade que o traço adaptativo era devido a mudanças genéticas, os pesquisadores sequenciaram os genomas das plantas com e sem tolerância ao frio. Nenhuma diferença genética foi identificada explicando a tolerância ao frio.
Então, os pesquisadores resolveram investigar marcadores epigenéticos. Comparado com plantas sem tolerância ao frio, as plantas tolerantes exibiam um menor nível de metilação no início do gene ACT1 (Acquired Cold Tolerance 1). Quando os pesquisadores, em laboratório, desativaram os grupos metila nesse gene em plantas sem tolerância ao frio, estas passaram a tolerar melhor o estresse térmico. E, quando usaram edição genética para recolocar os grupos metila no gene ACT1, as plantas perdiam essa habilidade. Em outras palavras, foi demonstrada causalidade direta: os epialelos eram responsáveis pela tolerância ao frio e, nesse contexto, estavam sendo transmitidos ao longo de múltiplas gerações.
Além disso, o padrão variável e natural de metilação no gene ACT1 também mostrou estar correlacionado com a distribuição geográfica do arroz na China - provavelmente ajudando na expansão do arroz para latitudes mais altas. Em regiões no sul da China, plantas exibiam maior nível de metilação no gene ACT1. Já no norte da China, plantas exibiam menor nível de metilação nesse gene. Não era resultado apenas do experimento de estresse térmico no estudo. O traço adaptativo epigenético de tolerância ao frio estava ocorrendo e se mantendo estável naturalmente, sendo selecionado durante expansão do arroz para regiões de maior latitude.
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> De acordo com os resultados do estudo, variação epigenética frio-induzida emerge no arroz quando temperaturas baixas durante o estágio meiótico reduzem a atividade dos genes MET1b e CMT3, resultando em falha no processo de reforçar a metilação no gene ACT1. Isso produz um epi-ACT1 com menor nível de metilação (hipometilado).
> Exposição de sucessivas gerações a baixas temperaturas fortalece e estabiliza a perda de metilação, criando epialelos estáveis que ajudam o arroz a se adaptar a climas mais frios.
> A proteína expressa pelo gene ACT1 - cuja produção é estimulada pela hipometilação - interage com a membrana das células de arroz e parece otimizar a captação e a transmissão de sinais de baixa temperatura, mediando, portanto, adaptação ao frio.
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Epimutações adaptativas, portanto, podem servir como alvo de seleção natural, reforçando ideia de que a epigenética, por si só, pode protagonizar evolução adaptativa - algo que vem sendo apelidado no meio acadêmico de "Neo-Lamarckismo" (!). Mudanças epigenéticas ambientalmente orientadas podem se tornar fixadas dentro de populações, contribuindo para processos evolucionários de longo prazo.
> (!) Importante não confundir "lamarckismo" com epigenética. São conceitos bem distintos. Aliás, curiosidade, Lamarck não parece ter alegado ser sua autoria a ideia de "herança de características adquiridas", apesar de endossá-la (Ref.3).
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- Como nova informação genética é gerada durante o processo evolutivo?
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REFERÊNCIAS
- Song et al. (2025). Inheritance of acquired adaptive cold tolerance in rice through DNA methylation. Cell. https://doi.org/10.1016/j.cell.2025.04.036
- https://www.nature.com/articles/d41586-025-01616-9
- Burkhardt, R. W. (2013). Lamarck, Evolution, and the Inheritance of Acquired Characters, Genetics, Volume 194, Issue 4, Pages 793–805. https://doi.org/10.1534/genetics.113.151852
