Maior artrópode conhecido que já habitou a Terra era uma mistura entre centopeia e piolho-de-cobra, aponta estudo
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Figura 1. Fóssil de um Arthropleura juvenil. |
O antigo miriápode gigante Arthropleura é considerado o maior artrópode conhecido que já habitou o planeta. Alguns espécimes desse gênero ultrapassavam 2 metros de comprimento e somavam dezenas de quilos. Porém, relações filogenéticas e ecológicas desse artrópode são ainda pouco resolvidas. Em um estudo publicado esta semana no periódico Science Advances (Ref.1), pesquisadores analisaram dois espécimes fossilizados Arthropleura, representando filhotes que viveram há mais de 300 milhões de anos. Os resultados da análises mostraram que o gênero representa uma mistura de traços entre centopeias e milípedes ("piolhos-de-cobra"): cabeça exibindo estruturas similares a pinças de centopeias mas com ausência de estruturas para a injeção de veneno ou captura de presas. Isso descarta o Artropleura como um predador e aponta para uma dieta baseada em detritos, típica de milípedes. Além disso, reforça a proximidade evolucionária entre centopeias e milípides.
A superclasse Myriapoda engloba artrópodes segmentados com um elevado número de pernas (1). Dois representantes que atualmente dominam a diversidade desse clado são os quilópodes (centopeias ou lacrais) e os diplópodes (milípedes ou piolhos-de-cobra). Entre antigos e notáveis representantes extintos desse grupo temos o famoso Arthropleura, um artrópode terrestre que persistiu do início do Carbonífero até o início do Permiano, habitando ambientes florestais próximos do cinturão equatorial de ~346 milhões até 290 milhões de anos atrás.
Sugestão de leitura:
- (1) Cientistas descobrem espécie de milípede com número recorde de pernas
- Qual é a maior centopeia conhecia ainda viva?
Descrito a partir de poucos fósseis parciais (Fig.2) e rastros fossilizados (Fig.3), esse miriápode gigante chegou a ser um membro comum de biotas continentais Paleozoicas (Ref.2). Evidências acumuladas sugerem que o Arthropleura possuía um exoesqueleto esclerotizado e resistente (Ref.3). É incerta a causa do gigantismo desse gênero e a hipótese tradicional sugerindo altas concentrações de oxigênio atmosférico no Carbonífero (~35% de O2 em comparação com ~21% hoje) como fator causal primário tem sido questionada com novas evidências fósseis apontando espécimes gigantes que precedem o pico de O2 no Permiano Médio (Ref.3-4). Outros potencias fatores favorecendo gigantismo entre miriápodes e outros artrópodes do Carbonífero (ex.: libélulas gigantes) incluem número reduzido de competidores, poucos predadores e abundância de alimentos muito nutritivos no ambiente. Além disso, existem evidências fósseis de que nem todos os representantes [espécies] do gênero Arthropleura eram gigantes, com possíveis indivíduos adultos exibindo comprimento inferior a 1 m (Ref.3).
O atual consenso acadêmico coloca o Arthropleura com relação mais próxima dos milípedes, mas a exata posição filogenética é incerta devido aos limitados e incompletos registros fósseis. E embora rastros fossilizados apontem um estilo de vida terrestre, os órgãos respiratórios desse grupo de animais permanecem desconhecidos, impossibilitando a exclusão de um estilo de vida aquático ou semiaquático (anfíbio) para parte ou todos os estágios de desenvolvimento.
No novo estudo, pesquisadores usaram tomografia micro-computacional de raio-X para analisar espécimes fossilizados juvenis de Arthropleura, tridimensionalmente preservados em nódulos sideróticos do Carbonífero Superior, datados em ~305 milhões de anos (Fig.4). E, mais importante, os fósseis analisados traziam, de forma inédita para a ciência, a região da cabeça preservada.
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Figura 4. Espécime juvenil fossilizado de Arthropleura sp. (A) Contraparte dentro do nódulo. (B) Molde 3D de látex da contraparte analisado no novo estudo. Barra de escala = 1 cm Ref.1 |
As análises revelaram vários detalhes das partes bucais e cefálicas desses animais. Enquanto que os representantes Arthropleura exibem um número de características compartilhadas com os atuais milípedes, como dois pares de pernas por segmento corporal e um tergito modificado entre a cabeça e o tronco, esses artrópodes também mostraram exibir múltiplos traços morfológicos na cabeça similares àqueles das centopeias, mais notavelmente estruturas do aparato de alimentação (ex.: projeções similares a pinças ou pernas na maxila). As antenas mostraram ser estruturalmente similares àquelas de milípedes, segmentada em sete partes.
Essa amálgama de características morfológicas no Arthropleura corrobora evidências filogenética e molecular prévias de que centopeias e milípedes possuem relação evolucionária muito mais próxima entre si do que tradicionalmente pensado (Fig.6), justificando também a inclusão de ambos (Chilopoda + Diplopoda) no clado Pectinopoda.
Análises filogenéticas no novo estudo colocaram o Arthropleura mais próximo dos milípedes do que das centopeias e dentro do clado Pectinopoda, associado a uma linhagem ancestral muito próxima em relação aos milípedes (Fig.7). Além disso, mesmo com o aparato de alimentação mais similar àquele das centopeias - grupo de animais carnívoros -, os pesquisadores apontaram que a anatomia geral desse miriápode gigante é mais consistente com uma dieta detritívora (baseada no consumo de detritos orgânicos e típica de milípedes), em especial devido à falta de estruturas para a captura efetiva de presas.
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Figura 6. Filogenia, morfologia e homologia da cabeça entre quilópodes, diplópodes e Arthropleura. Ref.6 |
Com base na estrutura dos membros locomotórios do Arthropleura, os autores do novo estudo apontaram uma taxa provavelmente moderada a lenta de deslocamento, similar àquela de milípedes e distinta das rápidas investidas observadas nas centopeias.
Por fim, e muito relevante apontar, os olhos protuberantes e compostos revelados nos filhotes analisados são anômalos entre os miriápodes, e podem representar um traço independentemente derivado. Essa anomalia anatômica também sugere possível adaptação para um estilo de vida subaquático, pelo menos para as fases juvenis do Arthropleura (Ref.6). É incerto se esse traço persistia na fase adulta, sendo necessário a descoberta de indivíduos fossilizados adultos com a cabeça preservada para esclarecer a questão.
REFERÊNCIAS
- Lhéritier et al. (2024). Head anatomy and phylogenomics show the Carboniferous giant Arthropleura belonged to a millipede-centipede group. Science Advances, Vol. 10, No. 41. https://doi.org/10.1126/sciadv.adp6362
- Moreau et al. (2019). Trackways of Arthropleura from the Late Pennsylvanian of Graissessac (Hérault, southern France). Historical Biology, An International Journal of Paleobiology, Volume 33, Issue 7. https://doi.org/10.1080/08912963.2019.1675055
- Davies et al. (2021). The largest arthropod in Earth history: insights from newly discovered Arthropleura remains (Serpukhovian Stainmore Formation, Northumberland, England). Journal of the Geological Society, Volume 179. https://doi.org/10.1144/jgs2021-115
- Martino & Greb (2016). Walking trails of the giant terrestrial arthropod Arthropleura from the Upper Carboniferous of Kentucky. Journal of Paleontology, 83(1):140-146. https://doi.org/10.1666/08-093R.1
- Buckman et al. (2023). Arthropleura trackway (Diplichnites cuithensis) from the Carboniferous, Serpukhovian, Limestone Coal Formation, Clackmannan Group, Linn Park, Glasgow. Scottish Journal of Geology, Volume 60. https://doi.org/10.1144/sjg2021-019
- https://www.science.org/doi/full/10.1126/sciadv.ads9192
- Benavides et al. (2023). Re-evaluating and dating myriapod diversification with phylotranscriptomics under a regime of dense taxon sampling. Molecular Phylogenetics and Evolution, Volume 178, 107621. https://doi.org/10.1016/j.ympev.2022.107621
