Por que esfregar superfícies gera eletricidade estática? Estudo teórico trouxe uma resposta
Muitos já devem ter feito esse experimento em casa ou durante as aulas de Física na escola: esfregar um pente seco no cabelo [também seco] para atrair pequenos pedaços de papel. A explicação geral é simples: o atrito leva a um acúmulo de carga elétrica no pente e, por indução, os pedacinhos de papel são atraídos pelo pente quando este é aproximado (Fig.1). Essa eletrização por atrito é chamada de efeito triboelétrico ou triboeletricidade. E esse fenômeno é observado para o atrito ou deslizamento entre sólidos ou materiais diversos, como entre sola do pé e carpete ou entre a mão e a pelagem de gatos em um tempo seco. Eletricidade estática é frequentemente uma consequência do efeito triboelétrico.
Mas qual é o mecanismo exato que governa a triboeletricidade? Esse mistério vem acompanhando a humanidade há mais de 2 milênios.
Em um estudo recentemente publicado no periódico Nano Letters (Ref.1), pesquisadores trouxeram uma solução teórica para o problema que parece conclusiva. Quando um objeto desliza sobre outro objeto, as partes da frente e de trás dos pontos de contato envolvendo protusões superficiais experienciam diferentes forças. Essa diferença de forças faz com que diferentes cargas elétricas se acumulem nessas partes opostas, criando uma corrente ao longo do movimento de deslize que permite o fluxo de cargas de um objeto para o outro.
"Pela primeira vez, nós fomos capazes de explicar um mistério que ninguém conseguiu antes: por que esfregar importa?", disse em entrevista o autor principal do novo estudo, Laurence Marks, pesquisador e especialista em estruturas superficiais na Universidade de Northwestern, EUA (Ref.2). "Pessoas têm tentado, mas não conseguiam explicar resultados experimentais sem fazer suposições que não eram justificadas ou justificáveis. Nós agora podemos, e a resposta é surpreendentemente simples. Basta ter diferentes deformações - e, portanto, diferentes cargas - na frente e atrás de algo deslizando para uma corrente ser gerada."
A palavra eletricidade é derivada do antigo termo Grego para âmbar (élektron), um material sólido formado a partir de resina vegetal que fica carregado (eletrificado) quando esfregado contra seda ou pelagem. No século VI a.C., o filósofo Grego Tales de Mileto foi o primeiro a reportar eletricidade estática a partir desse tipo de atrito, também notando que, após esfregar âmbar com pelagem, esta última passava a atrair partículas de poeira. Mileto também apontou que materiais como âmbar e magnetos eram uma evidência de que existia "alma ou vida até mesmo em objetos inanimados". Desde então, tornou-se claro que esfregar superfícies cria eletricidade estática em todos os materiais isolantes (que não conduzem eletricidade em típicas condições ambientais). No entanto, esse ponto é mais ou menos onde o consenso científico sobre o fenômeno termina.
A microfísica da fricção seca permanece pouco entendida e não existe uma teoria amplamente aceita para a triboeletricidade, ou seja, a separação de cargas via atrito entre superfícies. Eletrodinâmica clássica tem sido considerada insuficiente para explicar o fenômeno, e inclusive uma solução teórica quântica foi proposta por Alicki & Jenkins em 2020 (Ref.3). O efeito triboelétrico é complexo devido principalmente a três motivos (Ref.4):
i) mesmo para uma superfície altamente carregada (ex.: 1 mC.m−2), a densidade de carga pode alcançar apenas 1 unidade de elétron para cada ~10^5 átomos na superfície;
ii) questões básicas incluindo qual superfície irá ser carregada positivamente e qual será carregada negativamente quando duas superfícies entram em contato/interagem entre si são ainda difíceis de serem respondidas com certeza;
iii) múltiplos fatores podem atuar no mesmo processo triboelétrico e de forma aditiva, dificultando a separação e análise de componentes individuais e dominantes.
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Curiosidade: Efeito triboelétrico parece ser importante para explicar a geração de raios em plumas vulcânicas. Para mais informações: Napoleão, Batalha de Waterloo e o vulcão Monte Tambora
> Em termos tecnológicos, o efeito triboelétrico pode ser benéfico ou deletério. Por exemplo, esse efeito é amplamente explorado em tecnologias como impressoras a laser, mas pode causar descargas eletrostáticas com potencial de incêndio. São reportados >2 incêndios ou explosões industriais por dia causados pela triboeletricidade.
> Espécies carregadas transferidas durante o processo triboelétrico incluem elétrons, íons ou fragmentos moleculares carregados.
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É bem estabelecido que deslizar ou atritar produz mais carga do que simples contato ou rolamento entre duas superfícies. A primeira teoria física que tentou explicar essa observação é atribuída ao Físico e Químico Alessandro Volta, em 1779, sugerindo que o atrito multiplicava o número de pontos de contato por segundo, levando a uma maior transferência de cargas. Porém, essa proposta não explica a diferença entre rolar e esfregar, onde em ambos o número de contatos de asperidade são similares, mas as forças tangenciais envolvidas nesses contatos são distintas.
Desde então, várias explicações têm sido oferecidas para resolver essa discrepância, incluindo maior área total de contato, maior transferência de material, maior aquecimento local, movimento de regiões carregadas e modelos de mecânica quântica baseados, por exemplo, em quebras de ligação. Até o momento, nenhuma dessas explicações têm concordado quantitativamente e qualitativamente com observações experimentais, e algumas incluem suposições que não são suportadas por dados experimentais ou teoria física.
No novo estudo, Marks e colaboradores desenvolveram uma teoria geral para a triboeletricidade com base em um estudo prévio liderado pelo mesmo autor em 2019 (Ref.5), no qual experimentos e cálculos teóricos apontaram uma associação causal entre efeito triboelétrico e flexoeletricidade. Nesse trabalho de 2019, os pesquisadores descreveram como contato de asperidade causa potenciais e cargas ligadas que podem alimentar transferência de carga. Em outras palavras, esfregar dois materiais juntos curvam pequenas protusões - associadas à textura - sobre a superfície desses materiais, e essas protusões curvadas e deformadas, por sua vez, dão origem a potenciais elétricos.
Um conceito chamado de "cisalhamento elástico" é fundamental no novo modelo teórico proposto. Esse tipo de cisalhamento pode ocorrer quando um material resiste a uma força de deslizamento. Se uma pessoa empurrar um prato ao longo de uma mesa, o prato irá deslizar com resistência causada pelo atrito entre as superfícies. Tão logo a pessoa para de empurrar o prato, este para de se mover. Essa fricção extra - causada pela resistência ao deslizamento - faz com que cargas elétricas se movam nas superfícies.
Nesse sentido, segundo o modelo, quando deslizamento entre superfícies está ocorrendo, existe quebra de simetria devido ao cisalhamento elástico, no sentido de que a frente do corpo deslizando experiencia diferentes tensões elásticas a partir da parte de trás (Fig.2). Consequentemente, a polarização e cargas associadas nas partes da frente e de trás não são as mesmas, e a diferença entre esses dois fatores leva a um fluxo de cargas durante o movimento de deslize similar à diferença na pressão do ar acima e abaixo das asas de um avião que faz esse último subir.
O modelo concordou com cálculos de teorias físicas bem estabelecidas e com resultados de múltiplos experimentos, além de não ser dependente de materiais, ou seja, pode ser aplicado para cenários diversos de atrito envolvendo sólidos secos diversos. Uma possível limitação do modelo, apontada pelos autores do novo estudo, são correntes atípicas recentemente reportadas na faixa de pico- (pA) e nanoampère (nA) em certos nanogeradores triboelétricos, devido aparentemente a fatores de dopagem dos semicondutores associados afetando contribuições flexoelétricas.
O avanço no entendimento da triboeletricidade é importante em várias áreas da ciência e em aplicações tecnológicas diversas. Partículas e grãos com eletricidade estática gerada por efeito triboelétrico limitam diversos processos industriais, incluindo dosagens precisas de fármacos, e, como já mencionado, podem causar sérios acidentes. Até na astronomia e geofísica o efeito triboelétrico é crucial: a Terra provavelmente não seria um planeta sem o processo inicial de aglutinação de partículas que ocorre através de eletricidade estática gerada pela colisão de grãos de poeira no meio espacial.
REFERÊNCIAS
- Olson & Marks (2024). "What Puts the 'Tribo' in Triboelectricity?" Nano Letters, Vol. 24, Issue 39. https://doi.org/10.1021/acs.nanolett.4c03656
- https://www.mccormick.northwestern.edu/news/articles/2024/09/why-petting-your-cat-leads-to-static-electricity/
- Alicki & Jenkins (2020). A quantum theory of triboelectricity. Physical Review Letters, Vol. 125, Issue 18. https://doi.org/10.1103/PhysRevLett.125.186101
- Pan & Zhang (2019). Fundamental theories and basic principles of triboelectric effect: A review. Friction 7, 2–17. https://doi.org/10.1007/s40544-018-0217-7
- Marks et al. (2019). Does Flexoelectricity Drive Triboelectricity? Physical Review Letters, 123(11). https://doi.org/10.1103/PhysRevLett.123.116103
