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Cientistas soam o alarme: Superfungos estão sendo ignorados e são uma crescente ameaça para a humanidade

Figura 1. Visão microscópica do fungo Trichophyton indotineae. Fonte: Mykologie Experten



Enquanto o problema da resistência bacteriana e superbactérias vem ganhando grande e necessária atenção da mídia, da indústria e das agências de saúde ao redor do mundo (1), o mesmo não vem acontecendo com outro problema similar de resistência microbiana a fármacos: evolução de fungos resistentes aos antifúngicos (superfungos). Nas últimas décadas, a emergência de fungos patogênicos - a qual pode se intensificar no atual cenário de aquecimento global antropogênico (2) - tem representando uma crescente ameaça de saúde pública, particularmente dado o limitado número de fármacos antifúngicos disponíveis para tratar infecções invasivas. Nesse sentido, uma série de estudos publicados esta semana no The Lancet (Ref.1) resolveu explorar a fundo a questão, com especialistas pedindo urgência política, da indústria farmacêutica e da comunidade científica para soluções visando os superfungos. 


Leitura recomendada:


Anualmente, doenças fúngicas têm afetado 6,5 milhões de pessoas e respondem por estimadas 3,8 milhões de mortes. Para adereçar o problema, uma iniciativa da Organização Mundial da Saúde (OMS) foi lançada em 2022 para classificar de forma sistemática fungos patogênicos (FPPL - Lista de Patógenos Fúngicos Prioritários), mas sem surtir os efeitos esperados em ações de pesquisa, desenvolvimento e saúde pública. 


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Em meio às ações insuficientes contra fungos patogênicos, uma pandemia silenciosa de superfungos vem causando cada vez mais preocupação em especialistas na área. O combate pronto e efetivo a infecções fúngicas e à resistência aos antifúngicos é um problema complexo. O diagnóstico de infecções fúngicas é frequentemente atrasado ou difícil, o que aumenta o uso inapropriado de tratamento antimicrobiano e o risco de processos evolutivos promovendo resistência. Testes moleculares e equipamentos analíticos (ex.: MALDI-TOF) facilitando diagnósticos  rápidos e acurados ainda estão longe da prática clínica, especialmente em países subdesenvolvidos ou em desenvolvimento, como o Brasil.


E fungos patogênicos estão evoluindo com cada vez mais frequência e intensidade resistência a antifúngicos sistêmicos ou rapidamente adquirindo resistência sob exposição a antifúngicos no ambiente ou in vivo (ex.: no corpo de pacientes). Talvez os três principais fungos patogênicos de atual maior preocupação nesse sentido são (Ref.2-3): 


- Candida auris, espalhando rápido através de hospitais, resistente a múltiplos antifúngicos e possivelmente promovida pelo aquecimento global antropogênico;


- Aspergillus fumigatus, sob pressão seletiva de fungicidas azólicos usados na agricultura e outros ambientes; (!)


- Trichophyton indotineae, sob pressão seletiva do uso desregulado e sem prescrição de cremes antifúngicos contendo corticosteroides de alta potência. O gênero Trichophyton é uma causa comum de infecções fúngicas cutâneas e nas unhas dos pés (ex.: onicomicoses).


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(!) Fungos do gênero Aspergillus ganharam grande notabilidade durante a pandemia da COVID-19, com sérias infecção oportunística em pacientes hospitalizados. Para mais informações: Emergente e letal ameaça em pacientes com COVID-19: Infecção oportunista com fungos 


> Quase todo mundo é afetado por uma infecção fúngica superficial (ex.: micose), a qual é fácil de tratar. Fungos, em geral, são organismos hipotérmicos e, portanto, encontram dificuldade de suportar as altas temperaturas internas de mamíferos. A maioria das infecções fúngicas geralmente se limitam à superfície da pele. No entanto, existem patógenos fúngicos que são invasivos (ex.: Aspergillus, Candida, Cryptococcus e Pneumocystis) e que podem ser fatais devido à falta de um diagnóstico definitivo e tratamento. Em invasões fúngicas invasivas, superfungos são responsáveis por causar >50% da taxa de mortalidade. Ref.4


*Leitura recomendada: Fungos são organismos hipotérmicos, aponta estudo  


> Estima-se que mais de 80% da população mundial é afetada com algum tipo de infecção fúngica. Várias ordens de fungos (ex.: Hypocreales, Microascales e Mucorales) já exibem, invariavelmente, resistência a antifúngicos de uso comum. Ref.5


> Dermatofitoses são infecções fúngicas da pele, cabelo e unhas que afetam aproximadamente 25% da população global. Uso de roupas fechadas, ambiente quente e úmido, baixa higiene, proximidade com outros animais, e ambientes muito populados são importantes fatores de risco. Em regiões como o subcontinente Indiano, dermatofitoses são muito prevalentes e evolução de resistência a antifúngicos nesse contexto está emergindo rápido. Atualmente, as espécies  Trichophyton indotineae e T. mentagrophytes são as mais preocupantes em casos de superfungos causando dermatofitoses, comumente ligados a mutações no gene SQLE. Ref.6-8


> Recentemente, um estudo reportou aparente transmissão sexual de um superfungo Trichophyton indotineae, resistente ao antifúngico terbinafina, usado como tratamento de primeira linha. A infectada era do sexo feminino, saudável e jovem. Ref.9

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Para tratar infecções fúngicas profundas ou invasivas, apenas quatro classes de antifúngicos estão disponíveis, e resistência a esses fármacos via mecanismos diversos (biofilmes, mutações, rearranjos cromossômicos, etc.) é agora a regra ao invés de exceção. Cada vez mais infecções causadas pelas espécies Aspergillus fumigatus e Candida parapsilosis são resistentes aos antifúngicos azólicos; pela espécie Nakaseomyces glabratus, resistência contra azólicos e equinocandinas; Trichophyton indotineae, resistência contra terbinafinas; e preocupantes epidemias de Candida auris vêm se mostrando resistentes a antifúngicos em geral.

 

Figura 2. Estrutura molecular do fluconazol. Essa molécula é um exemplo de antifúngico azólico, uma classe de fármacos descobertos em 1944 e aprovados para uso humano na década de 1950. Os fármacos azólicos inibem a enzima lanosterol-14α-desmetilase, causando um distúrbio na biossíntese de ergosterol, um importante componente da membrana celular. Como resultado, as células fúngicas experienciam depleção de ergosterol e acúmulo de esteróis 14-metilados tóxicos, levando à lise celular e morte. Evolução de resistência a esses antifúngicos comumente envolvem os genes ERG11Cyp51A e Cyp51BRef.10

 

Figura 3. Biofilme complexo produzido por um fungo Candida sob visão microscópica, onde podemos ver as hifas (filamentos), as células do fungo (lêvedos em roxo) e a matriz extracelular (protuberâncias rosadas). Essa matriz é uma mistura de múltiplas macromoléculas, incluindo carboidratos, proteínas e lipídios, e protege os fungos através do sequestro de moléculas antifúngicas no espaço extracelular. Mutações podem alterar a composição dessa matriz, permitindo potencialmente melhor interação com antifúngicos e criando maior resistência contra esses fármacos. Ref.11

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> Candidíase é uma infecção causada pelo crescimento excessivo de leveduras patogênicas do gênero Candida em diferentes órgãos do corpo, desde genitália até a cavidade oral. Tipicamente habitam o microbioma humano sem causar prejuízos ao hospedeiro, mas podem se proliferar de forma deletéria quando ocorre desequilíbrio microbiótico. Nesse sentido, esse grupo de organismos é responsável pelo tipo mais comum de infecção fúngica oportunística afetando a saúde humana ao redor do mundo, com mais de 1 bilhão de casos anualmente, especialmente em indivíduos imunocomprometidos e idosos. Essas espécies de fungos crescem otimamente em maiores temperaturas e o aquecimento global tem favorecido a proliferação e mesmo emergência desses fungos. Além disso, um número de espécies vêm exibindo resistência primária e secundária contra múltiplos antifúngicos. Ref.12


> Entre patógenos fúngicos humanos, espécies de Candida estão comumente associadas com formação de biofilmes. O impacto clínico de resistência ligada a biofilmes é mais severa para aparatos vasculares e cirurgicamente implantados. Por exemplo, quando fungos Candida não são removidos de cateteres venosos centrais infectados, a mortalidade de pacientes dobra mesmo na presença de terapia antifúngica. Para triazólicos aprovados pelo FDA, dose precisa ser aumentada em >1000x para reduzir células fúngicas viáveis em biofilmes. Ref.11

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O desenvolvimento de fármacos antifúngicos é dificultado devido à grande similaridade entre células fúngicas e humanas quando comparado com células bacterianas. Assim como humanos, fungos são organismos eucariontes. A busca por compostos que seletivamente inibem fungos com toxicidade mínima para para os pacientes humanos é trabalhosa e requer enorme recurso financeiro. Apesar desses obstáculos, várias novas classes de moléculas têm sido propostas e testadas em estudos clínicos nos últimos anos. Foco em especial tem sido dado a terapias visando complexos caminhos de sinalizações que regulam os genes envolvidos na manutenção da parede celular fúngica (Ref.13).


Porém, mesmo antes desses novos fármacos alcançarem o mercado após anos de desenvolvimento e testes clínicos, fungicidas com modos similares de ação são desenvolvidos para a indústria agroquímica, resultando em resistência cruzada para patógenos de crítica prioridade, como o A. fumigatus. Aliás, esse último cenário tem marcado a evolução de resistência dessa espécie (A. fumigatus) contra antifúngicos azólicos. De fato, vários cultivares na agricultura essenciais são afetados por fungos, e proteção antifúngica é necessária para garantir segurança alimentar - mas acaba também promovendo evolução de resistência contra esses compostos. Novas soluções, orientações e regulações são necessárias para conciliar ótima produção alimentar e combate ao avanço dos superfungos.


Na série de estudos do The Lancet, os cientistas recomendaram: 


- restrição global para o uso de certas classes de moléculas antifúngicas para aplicações específicas;


- colaboração internacional para soluções e regulações que assegurem segurança alimentar e saúde universal para animais, plantas e humanos;


- adição de prioridade para o problema da evolução de resistência em fungos no próximo encontro das Nações Unidas.


"A ameaça de patógenos fúngicos e resistência aos antifúngicos, mesmo sendo um crescente problema global, está sendo deixada de fora do debate," alertou em entrevista o pesquisador Dr. Norman van Rhijn, da Universidade de Manchester, comentando sobre a série de publicações no The Lancet (Ref.14).


REFERÊNCIAS

  1. Rhijn et al. (2024). Beyond bacteria: the growing threat of antifungal resistance. The Lancet, Volume 404, Issue 10457, p1017-1018. https://doi.org/10.1016/S0140-6736(24)01695-7
  2. Lockhart et al. (2023). The rapid emergence of antifungal-resistant human-pathogenic fungi. Nature Reviews Microbiology 21, 818–832. https://doi.org/10.1038/s41579-023-00960-9
  3. Gupta et al. (2024). Treatment of onychomycosis in an era of antifungal resistance: Role for antifungal stewardship and topical antifungal agents. Mycoses, Volume 67, Issue 1, e13683. https://doi.org/10.1111/myc.13683
  4. Rabaan et al. (2023). Potential Strategies to Control the Risk of Antifungal Resistance in Humans: A Comprehensive Review. Antibiotics 12(3), 608. https://doi.org/10.3390/antibiotics12030608
  5. Hoog et al. (2024). Evolutionary trends in antifungal resistance: a meta-analysis. Microbiology Spectrum, Vol.12, No.4. https://doi.org/10.1128/spectrum.02127-23
  6. Hill et al. (2024). Expert Panel Review of Skin and Hair Dermatophytoses in an Era of Antifungal Resistance. American Journal of Clinical Dermatology 25, 359–389. https://doi.org/10.1007/s40257-024-00848-1
  7. Kruithoff et al. (2024). Dermatophyte Infections Worldwide: Increase in Incidence and Associated Antifungal Resistance. Life 14(1), 1. https://doi.org/10.3390/life14010001
  8. Gupta et al. (2024). An update on antifungal resistance in dermatophytosis. Expert Opinion on Pharmacotherapy, Volume 25, Issue 5. https://doi.org/10.1080/14656566.2024.2343079
  9. Ghannoum et al. (2024). Potential Sexual Transmission of Antifungal-Resistant Trichophyton indotineae. Emerging Infectious Diseases, 30(4): 807–809. https://doi.org/10.3201%2Feid3004.240115
  10. Chow et al. (2024). Genomic epidemiology and antifungal-resistant characterization of Candida auris, Colombia, 2016–2021. mSphere, Vol.9, No.2. https://doi.org/10.1128/msphere.00577-23
  11. Massey et al. (2023). Role of the extracellular matrix in Candida biofilm antifungal resistance, FEMS Microbiology Reviews, Volume 47, Issue 6, fuad059. https://doi.org/10.1093/femsre/fuad059
  12. Czajka et al. (2023). Molecular Mechanisms Associated with Antifungal Resistance in Pathogenic Candida Species. Cells 12(22), 2655. https://doi.org/10.3390/cells12222655
  13. Delgado et al. (2024). Chapter 143 - Mechanisms of antifungal resistance. Molecular Medical Microbiology (Third Edition), Pages 2847-2864. https://doi.org/10.1016/B978-0-12-818619-0.00156-8
  14. https://www.uva.nl/en/content/news/press-releases/2024/09/ignore-antifungal-resistance-in-fungal-disease-at-your-peril-warn-top-scientists.html?cb

Cientistas soam o alarme: Superfungos estão sendo ignorados e são uma crescente ameaça para a humanidade Cientistas soam o alarme: Superfungos estão sendo ignorados e são uma crescente ameaça para a humanidade Reviewed by Saber Atualizado on setembro 16, 2024 Rating: 5

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