Orangotango é observado tratando uma ferida no rosto com planta medicinal
Figura 1. Ferida facial no orangotango Rakus, dois dias antes de tratá-la com uma planta medicinal. |
Embora exista ampla evidência de comportamentos de automedicação em animais, até o momento não existia registro científico de animais em ambiente selvagem usando plantas medicinais para o tratamento de feridas. Agora, biólogos do Instituto Max Planck de Comportamento Animal, na Alemanha, e da Universitas Nasional, na Indonésia, reportaram na Scientific Reports (Ref.1) que um orangotango-de-Sumatra macho exibindo uma ferida no rosto aplicou sistematicamente uma planta medicinal mastigada no local lesionado, com subsequente rápida cicatrização e recuperação da pele danificada. A planta em questão é comumente usada na medicina tradicional humana e possui propriedades anti-inflamatórias e de alívio de dor. O achado sugere que o tratamento médico de feridas pode ter emergido no ancestral comum compartilhado por humanos e orangotangos.
"Provavelmente o mais antigo registro histórico conhecido de tratamento de feridas humanas data de 2200 a.C., o qual incluía limpeza e revestimento de feridas com certas substâncias medicinais," disse em entrevista a Dra. Caroline Schuppli, uma das autoras do novo estudo (Ref.2). "Considerando que formas ativas de tratamento de feridas não são exclusivas de humanos, mas também podendo ser encontradas em outros hominídeos Africanos e Asiáticos, é possível que exista um mecanismo comum para o reconhecimento e aplicação de substâncias com propriedades médicas ou funcionais sobre feridas e que nosso último ancestral comum já exibia formas similares de comportamento fitoterápico."
Automedicação por animais é comumente observada (1), especialmente em primatas hominídeos (ex.: chimpanzés e orangotangos), e pode ser dividida em cinco categorias:
- comportamentos de enfermo, como anorexia;
- comportamentos aversivos, como evitar o consumo de fezes e alimentos ou água contaminados;
- comportamentos profiláticos, como consumo rotineiro de alimentos com efeitos preventivos ou de manutenção da saúde;
- comportamentos terapêuticos, definidos como a ingestão de pequenas quantidades de uma substância tóxica ou biologicamente ativa com nenhum ou pouco valor nutricional para o tratamento curativo de uma doença ou de seus sintomas;
- e aplicação tópica terapêutica de plantas farmacologicamente ativas sobre o corpo para o tratamento de condições de saúde externas ou aplicação de tais espécies nos ninhos como um fumegante ou repelente de insetos.
(1) Sugestão de leitura:
- Árvore cabreúva pode estar servindo de ‘farmácia’ para diversas espécies animais
- Por que os gatos às vezes comem plantas?
Vários dos comportamentos acima listados podem ser regularmente observados em animais não-humanos diversos, mas comportamento terapêutico e aplicação tópica terapêutica são mais raros e mais comumente observados no ambiente selvagem em hominídeos não-humanos. Por exemplo, o primeiro comportamento do tipo cientificamente descrito, na década de 1960, envolve o consumo de folhas inteiras por chimpanzés (Pan troglodytes) visando efeitos terapêuticos antiparasíticos. Estudos subsequentes mostraram que essa prática também ocorre em bonobos (Pan paniscus), gorilas (ex.: Gorilla beringei graueri) e em apenas um táxon de primata [não-hominídio] na Ásia: o gibão da espécie Hylobates lar.
Chimpanzés também têm sido observados mastigando as amargas folhas de Vernonia amygdalina para o tratamento de infecções por vermes, e evidência mais recente aponta que esses primatas comumente e ativamente buscam consumir extratos e folhas de plantas, cascas de árvores e mesmo madeira morta com propriedades medicinais (ex.: anti-inflamatórias) quando estão doentes (Ref.6).
Entre orangotangos-de-Bornéu (Pongo pygmaeus) existem vários reportes sugerindo a ingestão intencional de partes específicas de plantas visando uso terapêutico, como folhas e caules de gengibre (Zingiberaceae) - uma planta usada na medicina tradicional humana que exibe propriedades anti-inflamatórias, antibacterianas, antivirais e antifúngicas. Mas esses reportes no geral tem fornecido evidência muito limitada para uso medicinal de plantas por orangotangos.
Reportes da aplicação tópica de plantas ou insetos para fins terapêuticos são limitados a poucas espécies de primatas, e a maioria são oriundos de relatos anedóticos. O mais notável caso envolve o uso de insetos por chimpanzés da subespécie P. t. troglodytes para o aparente tratamento ativo de feridas na pele. O achado foi descrito em 2022 no periódico Current Biology (Ref.3), após análise de chimpanzés na comunidade de Rekambe, no Parque Nacional de Loango, Gabão. Indivíduos adultos e juvenis capturavam pequenos insetos, imobilizam os insetos capturados apertando-os entre os lábios, e aplicavam os insetos com a boca ou os dedos sobre feridas na própria pele ou na pele de outros membros do grupo.
Orangotangos-de-Bornéu têm sido também observados em múltiplas ocasiões esfregando folhas mastigadas de Dracaena cantleyi em partes específicas do corpo - e de forma intencional, mas com objetivos incertos. A espécie D. cantleyi é uma planta medicinal com propriedades anti-inflamatórias e usada por povos nativos para fins terapêuticos diversos, incluindo dores articulares ou ósseas e inchaços.
No novo estudo, pesquisadores reportaram o uso tópico da planta Fibraurea tinctoria por um orangotango-de-Sumatra (Pongo abelii) macho de ~32 anos de idade para o tratamento de uma ferida no rosto. Essa planta exibe compostos alcaloides com múltiplas atividades biológicas de relevância para a cura de feridas, incluindo propriedades antibacterianas, anti-inflamatórias, antioxidantes e antifúngicas. Essa planta também é usada em medicinas tradicionais e alternativas humanas para o tratamento de feridas e de condições como disenteria, diabetes e malária.
No caso, o estudo analisou e descreveu o comportamento do orangotango macho - apelidado de Rakus pelos pesquisadores - exibido em 2022 no Parque Nacional de Gunung Leuser, Indonésia. Rakus se mudou para essa região em 2009, com cerca de 20 anos de idade e ainda imaturo (não exibia as grandes almofadas nas bochechas típicas de machos maduros de orangotangos). Em 2021, Rankus passou por uma fase de rápido crescimento e amadurecimento, iniciando disputas por dominância com outros machos da mesma espécie. Nesse contexto, uma ferida aberta foi notada em sua bochecha direita em junho de 2022, provavelmente causada pelos caninos de outro macho rival. Durante vocalizações de Rakus, uma ferida também foi notada na sua boca, como pode ser observado no vídeo abaixo.
Após três dias com a ferida aberta no rosto, Rakus resolveu mastigar e consumir o caule e folhas de F. tinctoria - raramente usada como alimento por orangotangos - e repetidamente aplicar o suco gerado na mastigação sobre a lesão cutânea, ao longo de sete minutos. Em seguida, começou a espalhar folhas mastigadas sobre a ferida até cobri-la completamente e continuou se alimentando da planta por >30 minutos. Nenhum sinal de infecção na ferida foi notado nos dias seguintes. Dentro de cinco dias, a ferida estava fechada e totalmente curada dentro de um mês.
Como Rakus repetidamente aplicou o material herbáceo sobre sua ferida e em nenhuma outra parte do corpo durante todo o processo que durou mais de meia hora, é muito provável que ele intencionalmente tratou sua ferida facial com a planta. A planta F. tinctoria processada pode ter ajudado a reduzir a dor e a inflamação locais, e otimizado o processo natural de cicatrização.
É ainda desconhecido se Rakus já havia usado esse método fitoterápico para o tratamento de outras feridas e incerto de onde ele aprendeu esse comportamento: seria de outros orangotangos na sua área original de nascimento, autoaprendizado ou de observação prévia de humanos usando a planta para o mesmo fim?
"É possível que o tratamento da ferida com Fibraurea tinctoria pelo orangotango em Suaq tenha emergido através de inovação individual" comentou a Dra. Schuppli (Ref.2). "Orangotangos no local raramente comem a planta. No entanto, indivíduos podem acidentalmente tocar feridas enquanto se alimentam dessa planta e, portanto, acidentalmente aplicar sucos da planta sobre as feridas. Como a Fibraurea tinctoria possui potentes efeitos analgésicos, indivíduos podem sentir um alívio imediato na dor, levando-os a repetir o comportamento várias vezes."
Até o momento, essa é a primeira observação de uso tópico de uma planta medicinal para o tratamento de feridas em animais não-humanos. O mesmo comportamento nunca foi reportado para outros orangotangos habitando a mesma área de Rakus, mas é importante realçar que encontros de cientistas com indivíduos exibindo feridas abertas na pele são raros.
Leitura recomendada:
REFERÊNCIAS
- Laumer et al. (2024). Active self-treatment of a facial wound with a biologically active plant by a male Sumatran orangutan. Scientific Reports 14, 8932. https://doi.org/10.1038/s41598-024-58988-7
- https://www.mpg.de/21886982/0429-ornr-first-evidence-for-medical-wound-treatment-in-a-wild-animal-987453-x
- Pika et al. (2022). Application of insects to wounds of self and others by chimpanzees in the wild. Current Biology, Volume 32, Issue 3, PR112-R113. https://doi.org/10.1016/j.cub.2021.12.045
- https://www.science.org/content/article/orangutan-plays-doctor-heals-himself
- https://www.nature.com/articles/d41586-024-01289-w
- Freymann et al. (2024) Pharmacological and behavioral investigation of putative self-medicative plants in Budongo chimpanzee diets. PLoS ONE 19(6): e0305219. https://doi.org/10.1371/journal.pone.0305219