Carne de cobra pode ajudar a alimentar o mundo e reduzir impactos ambientais, aponta estudo
No contexto das atuais mudanças climáticas, crise alimentar e redução de recursos naturais ao redor do mundo, novas alternativas sustentáveis e resilientes aos sistemas agropecuários de produção alimentar são necessárias. Cerca de 12% da população humana global está subnutrida e deficiência proteica aguda em países de baixa renda está comprometendo a produtividade da força de tralho e o desenvolvimento. O atual e tradicional sistema agropecuário é baseado em poucas espécies de mamíferos e aves de "sangue quente" (endotérmicos) e está associado a um grande consumo de recursos naturais (água e biomassa vegetal), devastação ambiental em grande escala, relativa baixa eficiência de produção proteica, alto custo final para o consumidor e massiva liberação de gases estufas (1). Alternativas propostas nesse sentido incluem fungos (2) e insetos (3) como fontes proteicas.
Para mais informações:
- (1) Gases estufas, vapor de água e o GWP
- (2) Substituir 20% do consumo de carne bovina por micoproteína pode reduzir pela metade o desmatamento e emissões de gases estufas
- (3) Insetos Comestíveis: Solução para um mundo mais sustentável?
Em um estudo publicado recentemente no periódico Scientific Reports (Ref.1), pesquisadores concluíram que grandes pítons são melhores na conversão de recursos alimentares em proteína comestível do que a maioria dos outros animais usados para essa mesma finalidade, incluindo galinhas, porcos, vacas, salmão e gafanhotos. Além disso, pítons reticuladas (Malayopython reticulatus) e pítons-de-Burmese (Python bivittatus) em fazendas podem ficar de jejum por meses sem perder muita massa corporal, o que pode ajudar a assegurar alimento durante crises climáticas e econômicas.
"Criar pítons pode ser parte importante da solução para uma parte do mundo que já está sofrendo com severa deficiência proteica," comentou um dos coautores do novo estudo, o herpetólogo Dan Natusch, em entrevista à Scientific American (Ref.2). "Criação de pítons é bem estabelecida na Ásia e a carne é bem saborosa e versátil."
Animais de "sangue frio" (ectotérmicos) são aproximadamente 90% mais eficientes em termos de gasto energético do que endotérmicos (!). No contexto da pecuária, essa energia diferencial prontamente é traduzida em um potencial para maior eficiência de produção. É parcialmente por esse motivo que a aquacultura (criação de organismos aquáticos diversos) e a criação de insetos comestíveis estão atualmente experienciando rápidas taxas de crescimento. Assim como insetos, cobras são uma fonte tradicional de proteína em vários países tropicais, e o consumo desses répteis é ligado a importantes valores alimentares, culturais e medicinais. E a demanda pela carne de cobra e seus derivados têm aumentado de forma significativa nos últimos anos.
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(!) Existe uma hipótese de que a endotermia evoluiu para facilitar o desenvolvimento de febre. Sugestão de leitura: Qual é a função da febre?
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Ao longo das últimas duas décadas, a criação de cobras tem se expandido para incluir mais espécies, modelos de produção e mercados, parcialmente como um resultado de vantagens competitivas agriculturais. Por exemplo, alguns sistemas de criação de cobras requerem mínimo espaço de terra e água fresca, podem se sustentar sobre resíduos proteicos e alimentares de outras indústrias (ex.: restos descartados na pecuária tradicional), e algumas espécies de cobras têm adaptações especializadas para mitigar os impactos de choques ambientais. Além disso, a carne de répteis não é muito diferente daquela de galinhas - aliás, aves também são incluídas do clado Reptilia - e é caracterizada por: alto teor proteico, baixo teor de gorduras saturadas e um amplo apelo estético e culinário.
Sugestão de leitura:
No novo estudo, pesquisadores exploraram o potencial das pítons - cobras da família Pythonidae e com alguns dos maiores representantes ofídicos conhecidos - visando a agricultura comercial. Especificamente, os pesquisadores estudaram os padrões de crescimento de duas espécies de pítons em duas fazendas comerciais no Sudeste Asiático (localizadas na Tailândia e no Vietnã), comparando-os com aqueles de outras espécies agriculturais (endotérmicas e ectotérmicas). As espécies analisadas - pítons reticulada (M. reticulatus) e de Burmese (P. bivittatus) podem somar mais de 100 kg quando adultas, possuem rápido crescimento e exibem alta fecundidade, com fêmeas alcançando a maturidade dentro de 3 anos e produzindo até 100 ovos por ano por 20 anos ou mais.
As pítons analisadas eram criadas de forma comunitária nas fazendas e eram alimentadas com uma variedade de alimentos dependendo dos recursos proteicos locais. As fontes alimentares mais comum eram roedores selvagens capturados e restos de proteína de fornecedores alimentícios (ex.: pós-processamento de porcos, galinhas, peixes). Os restos de animais processados eram geralmente transformados em salsichas e essas últimas eram tipicamente introduzidas às cobras após os juvenis terem desenvolvido uma robusta resposta alimentar. Filhotes recém-nascidos eram iniciados com presas vertebradas (ex.: roedores e galinhas ou codornas com 1 dia de idade). Com aproximadamente 2 meses de idade, as cobras passavam a ser alimentadas com as salsichas.
Os pesquisadores encontraram que as pítons cresciam rápido ao longo de um período de 12 meses, com as fêmeas crescendo mais rápido do que os machos. Taxas de aumento de massa mostraram variar de 0,24 g a 19,7 g/dia para a M. reticulatus e 0,24 a 42,6 g/dia para a P. bivittatus, até um máximo de 46 g/dia, dependendo do fornecimento alimentar nas fazendas. E, mais importante, mesmo com as cobras ficando sem alimentação [jejum] por até 4,2 meses, essas perdiam uma média de apenas 0,004% da massa corporal por dia [com acesso à água] e rapidamente voltavam à rápida taxa de crescimento à medida que a alimentação retornava. Essa perda de massa durante jejum mostrou ser até >1000x menor do que aquela observada em suínos, galináceos e bovinos criados em fazendas.
Mas por que os custos do jejum (em termos de perda de massa) são tão baixos nessas cobras? Segundo os pesquisadores, pítons possuem respostas fisiológicas e morfológicas especializadas tanto para o período de alimentação quanto para o período de escassez alimentar. O trato gastrointestinal desses animais é adaptado para longos períodos de jejuns pontuados por rápido aumento metabólico para digestão e assimilação de grandes refeições (às vezes, superando a massa corporal do indivíduo). Durante a digestão, pítons exibem um aumento de 10x na taxa metabólica acima dos níveis de repouso; performance dos órgãos aumentam em até 40x; e hormônios e metabólitos circulantes são rapidamente reduzidos. Macronutrientes ingeridos são particionados e seletivamente oxidados em preparação para o jejum. Lipídios são armazenados em corpos adiposos especializados e barganhados durante o jejum para suprir requerimentos mínimos de energia.
Em termos de alimento e conversão proteica, as pítons analisadas exibiram maior desempenho do que todas as espécies de destaque no setor de criação de animais analisadas no estudo. Eficiência de conversão do alimento em massa corporal das cobras mostrou ser quase 10x maior do que no gado, 5x maior do que nos porcos e >2x maior do que nas galinhas. Eficiência na conversão de proteína alimentar em proteína constitucional na massa corporal das cobras mostrou ser quase 35x maior do que aquela observada no gado. Após a remoção de órgãos sem valor comercial, partes utilizáveis das cobras (incluindo carcaça vestida, vesícula biliar, gordura e pele) mostraram somar ~82% da massa total dos animais.
Embora pítons sejam carnívoros obrigatórios e, à primeira vista, péssimos animais de criação para a produção de alimento por ocuparem um alto nível trófico (predadores), os resultados do estudo suportam o grande potencial de produção alimentar a partir desses répteis, com grandes vantagens em relação aos animais endotérmicos de maior destaque na indústria alimentícia. A fisiologia única, alta fecundidade e metabolismo altamente otimizado das pítons tornam esses animais candidatos ideais para uma produção mais sustentável de proteína e ainda com grande redução de gases estufas. As altas assimilações nutricionais dessas cobras são traduzidas em menores volumes de fezes, e suas excretas nitrogenadas são uratos insolúveis em água ao invés de ureia volátil - resultando em emissão muito menor de gases estufas como dióxido de carbono (CO2), metano (CH4) e óxidos de nitrogênio quando comparado com sistemas pecuários baseados em animais endotérmicos.
Somando-se a isso, as pítons analisadas podem sobreviver sem água por períodos estendidos e requerem espaços muito reduzidos, fatores que reduzem ainda mais os impactos ambientais na criação desses animais e aumentam a segurança alimentar em regiões afetadas por frequentes e severas secas.
Existem também desafios. Assim como animais endotérmicos, pítons podem transmitir zoonoses e o sistema de criação desses répteis difere de forma robusta em relação aos sistemas pecuários tradicionais. Por exemplo, é exigido alto custo de trabalho para alimentar as pítons, já que a alimentação precisa ser individual e apenas após isolar o animal (para evitar encontros agonísticos com outras pítons no mesmo ambiente durante disputas alimentares). Porém, nesse último ponto, o fator negativo pode ser compensado pelo fato das pítons precisarem ser alimentadas apenas uma vez por semana. Por fim, temos também o medo inerente de humanos em relação às cobras, algo que pode dificultar a contratação ou treinamento de mão-de-obra necessária para operar as fazendas.
Leitura complementar:
- Qual a maior cobra conhecida que já habitou a Terra?
- Por que primatas, incluindo humanos, possuem tanto medo de cobras?
REFERÊNCIAS
- Natusch et al. (2024). Python farming as a flexible and efficient form of agricultural food security. Scientific Reports 14, 5419. https://doi.org/10.1038/s41598-024-54874-4
- https://www.scientificamerican.com/article/snake-steak-could-be-a-climate-friendly-source-of-protein/