Robusto estudo de revisão reforça o alerta: Evite o uso de Cannabis durante a adolescência, gravidez e durante a direção
À medida que a legalização ou descriminalização do uso recreativo da maconha (droga derivada de plantas do gênero Cannabis) avança ao redor do mundo sem efetivas campanhas de conscientização concomitantes, pessoas podem associar a mudança do status legal como um indicativo de que o consumo indiscriminado dessa droga é seguro e sem riscos à saúde. Soma-se à questão a confusão comum entre uso recreativo e uso medicinal da Cannabis, formas bem distintas de consumo, onde a última possui contraindicações, níveis controlados de canabinoides, visa doenças específicas e não ocorre via fumo (combustão de matéria orgânica) (1).
(1) Leitura recomendada: Fumo e uso recreativo da maconha: lobo sob pele de cordeiro
Nesse sentido, um robusto estudo de revisão Umbrella analisando meta-análises de estudos clínicos controlados e randomizados e observacionais publicados até fevereiro de 2022, trouxe importante evidência reforçando o alerta de agências e especialistas de saúde contra o uso de Cannabis durante a adolescência e início da fase adulta, em pessoas suscetíveis a ou com transtornos de saúde mental, na gravidez, e antes ou durante a direção veicular.
Em termos de uso terapêutico, o estudo de revisão encontrou que o canabidiol (um dos canabinoides da Cannabis) é efetivo em pessoas com epilepsia, e que medicamentos a base de Cannabis podem ajudar pessoas com esclerose múltipla, dor crônica, doença inflamatória intestinal, e em cuidado paliativo - mas com eventos adversos reportados.
A Cannabis contém mais de 100 canabinoides, dos quais o Δ9-tetrahidrocanabiol (THC) e o canabidiol são aqueles de maior relevância clínica. O THC é um agonista parcial nos receptores CBI e CB2 do sistema endocanabinoide no corpo (2). O CB1 é amplamente expresso por neurônios centrais e periféricos mas também por células imunes e outros tipos de células no cérebro e na periferia, e, quando é ligado com THC, um estado popularmente chamado de 'chapado' ("high" em inglês) é induzido - e o qual é responsável por potencial abuso. Receptores CB2 são também expressos por neurônios, mas menos do que o CB1, e são mais abundantemente expressos em células imunes. Canabidiol, no entanto, não faz o indivíduo ficar 'chapado' e, portanto, não carrega o mesmo potencial de uso abusivo. Além disso, o canabidiol não parece promover efeitos indutores de psicose.
(2) Leitura complementar:
- Por que o uso de maconha deixa o olho vermelho e causa tanta fome?
- Maconha é eficaz no tratamento do autismo?
O uso de Cannabis pode evoluir para transtorno de uso da Cannabis, amplamente definido como uma inabilidade de parar com o uso da droga, uso contínuo apesar de consequências deletérias (ex.: síndrome da hiperêmese por canabinoide) (3), ou prejuízos funcionais.
(3) Para mais informações: O que é a Síndrome da Hiperêmese por Canabinoide?
É estimado que mais de 23,8 milhões de pessoas ao redor do mundo possuem transtorno do uso de Cannabis e que o uso dessa droga é o terceiro maior entre as substâncias de abuso, após as bebidas alcoólicas e o tabaco. Esse transtorno é mais comum em homens e países de renda alta. A prevalência da condição nos EUA tem sido estimada ser em torno de 6,3% ao longo da vida e de 2,5% ao longo de 12 meses; na Europa, cerca de 15% das pessoas com idades na faixa de 15 a 35 anos reportaram uso de Cannabis no ano prévio. Daqueles usando Cannabis, 1 em cada 3 desenvolveram problemas relacionados ao uso da droga que prejudicaram funções do corpo e 10% usavam a droga diariamente. Transtorno do uso de Cannabis pode afetar até 50% das pessoas que usam maconha diariamente.
Na Europa, ao longo da última década, o uso auto-reportado de Cannabis dentro do mês prévio aumentou em quase 25% em pessoas com idades de 15 a 34 anos, e mais de 80% em pessoas com idades de 55 a 64 anos. Cannabis ou produtos contendo THC são amplamente disponíveis e com o conteúdo [concentração] desse canabinoide aumentando nesses produtos ao longo das últimas décadas. Por exemplo, na Europa, o conteúdo de THC aumentou de 6,9% para 10,6% de 2010 até 2019. Evidência acumulada de estudos experimentais e observacionais tem sugerido que a Cannabis, em particular o uso recreativo, pode ser deletéria para a saúde mental e física e também para a segurança veicular.
Por outro lado, evidência acumulada também suporta que o canabidiol possui eficácia terapêutica para o tratamento de transtornos neurológicos como epilepsia resistente na infância. Somando-se a isso, medicamentos baseados em Cannabis (ex.: extratos e componentes isolados) têm sido investigados para o tratamento de várias condições e sintomas.
A natureza multifatorial da Cannabis, refletida em seus diversos componentes ativos, acaba criando um espectro de efeitos que podem variar de deletérios até benéficos, e de indivíduo para indivíduo. Essa complexa natureza também cria diferentes status legais da Cannabis ao redor do mundo - apesar da hipocrisia relativa a outras drogas tão ou mais deletérias e sem benefícios terapêuticos cientificamente comprovados, como o consumo alcoólico e o fumo de tabaco.
No novo estudo de revisão publicado na BMJ, um time internacional de pesquisadores buscou melhor esclarecer os potenciais efeitos deletérios e benéficos da Cannabis. Para isso, foram analisadas 50 meta-análises de estudos observacionais e 51 meta-análises de estudos controlados e randomizados, englobando efetivamente centenas de estudos individuais. Os estudos incluídos foram publicados no período de 2002 até 2022, analisando o efeito de diferentes combinações de Cannabis, canabinoides e medicamentos baseados em Cannabis sobre a saúde humana.
Com base em evidência minimamente sugestiva de estudos observacionais e evidência com certeza moderada de estudos clínicos, os pesquisadores encontraram um aumento de risco para psicose associado com o consumo de canabinoides pela população em geral. Especificamente, o uso de Cannabis estava associado com psicose em adolescentes (quando o desenvolvimento do cérebro ainda está ocorrendo), e com relapso de psicose em pessoas com um transtorno psicótico. Ou seja, o uso de Cannabis aumenta o risco de desenvolvimento de psicose e pode piorar um quadro já existente de psicose.
Com base em sugestiva a altamente sugestiva evidência observacional e alta a moderada evidência clínica, os pesquisadores também encontraram uma associação entre Cannabis e sintomas psiquiátricos em geral, incluindo depressão, tentativa de suicídio e mania, assim como efeitos detrimentosos sobre a memória - incluindo memórias verbal e visual - e a cognição de indivíduos saudáveis usuários de maconha.
Os pesquisadores apontaram que essas associações encontradas são de particular preocupação dado que o padrão de idade dos transtornos do uso de Cannabis coincide com o pico de idade para o início de manifestação de transtornos de saúde mental (ex.: esquizofrenia), a partir de meados da adolescência até pouco mais de 20 anos de idade, e que adolescentes e jovens adultos estão em uma fase crítica de educação escolar ou universitária.
Ao longo de diferentes populações, evidência fraca a convincente sugeriu uma ligação entre uso de Cannabis e acidentes envolvendo veículos motores - e, de fato, corrobora estudos mostrando que o consumo de maconha altera de forma prejudicial a habilidade de direção (muitas agências de saúde e de trânsito em diferentes países vêm reforçando o alerta de "se dirigir, não use Cannabis"). Aliás, esta semana um estudo conduzido por pesquisadores da Universidade de Ottawa reportou um aumento de 475% nas taxas de visitas aos departamentos de emergência dos hospitais em Ontário, Canadá ao longo do período de janeiro de 2010 até dezembro de 2021 envolvendo acidentes de tráfico associados ao uso de Cannabis. No Canadá, houve legalização do uso de Cannabis em outubro de 2018. Em particular, o estudo - publicado no periódico JAMA Network Open (Ref.3) - encontrou que a legalização do uso recreativo de Cannabis com restrições estava associado com um aumento de 94% das taxas de visitas; a fase subsequente de comercialização estava associada com um aumento de 223% nas taxas comparado com o período de pré-legalização.
Em mulheres grávidas, evidência observacional convincente ligou o uso de Cannabis a um aumento de risco para bebês com baixo peso no nascimento e pequeno para a idade gestacional - reforçando o alerta de agências e especialistas de saúde contra-recomendando o uso de quaisquer derivados da Cannabis durante a gravidez, especialmente considerando que os canabinoides atravessam a placenta (4).
(4) Para mais informações: Agências de saúde alertam: Maconha NÃO deve ser usada durante a gravidez e a lactação
Já em relação ao canabidiol (CBD), os pesquisadores encontraram que esse canabinoide era eficaz em reduzir convulsões em certos tipos de epilepsia tanto em adultos quanto em crianças (ex.: síndromes de Dravet e de Lennox-Gastaut), enquanto medicamentos baseados em Cannabis eram benéficos para dor e rigidez muscular (espasmodicidade) em quadros de esclerose múltipla, assim como para dor crônica em várias condições (5), e no cuidado paliativo (ex.: melhora da qualidade do sono em pacientes com câncer), mas com potenciais efeitos adversos, como tontura, boca seca, náusea, sonolência, prejuízos visuais, vertigem e problemas gastrointestinais. Relevante também mencionar que um estudo publicado esta semana no periódico PLOS One (Ref.4) reportou que pacientes na Austrália com problemas crônicos de saúde recebendo Cannabis medicinal exibiram significativas melhoras na saúde geral relacionadas a qualidade de vida e fatiga nos primeiros três meses de uso, e junto com melhoras na ansiedade, depressão e dor; foram analisados 2327 pacientes Australianos e o uso de uma mistura de THC e CBD dissolvida em um meio lipídico (do total de pacientes, 30 abandonaram o uso de Cannabis medicinal devido a efeitos colaterais indesejados).
(5) Sugestão de leitura: Maconha medicinal pode solucionar a crise de opioides nos EUA, sugere estudo
O estudo de revisão Umbrella foi o primeiro a investigar de forma compreensiva estudos observacionais e intervencionais sobre os efeitos de canabinoides em humanos, mas os pesquisadores realçaram que a maioria dos achados eram suportados por evidência muito limitada. Além disso, produtos avaliados nesses estudos exibiam diferenças no conteúdo de Cannabis, nem todos os indivíduos irão experienciar os mesmos efeitos da Cannabis na saúde mental e cognição, e estudos clínicos randomizados podem não ser representativos de uma população de mundo real.
De qualquer forma, os autores do estudo concluíram que leis e políticas de saúde pública "deveriam considerar essa síntese de evidências para decisões em políticas regulatórias do uso de canabinoides, e durante planejamento de futuras agendas de pesquisa epidemiológica ou experimental."
> Revisões Umbrella (ou Guarda-Chuva) sintetizam resultados de meta-análises prévias e fornecem um sumário de alto nível das evidências sobre um tópico particular.
REFERÊNCIAS
- Solmi et al. (2023). Balancing risks and benefits of cannabis use: umbrella review of meta-analyses of randomised controlled trials and observational studies. BMJ, 382. https://doi.org/10.1136/bmj-2022-072348
- https://www.eurekalert.org/news-releases/999893
- Myran et al. (2023). Cannabis-Involved Traffic Injury Emergency Department Visits After Cannabis Legalization and Commercialization. JAMA Network Open, 6(9):e2331551. https://doi.org/10.1001/jamanetworkopen.2023.31551
- Tait et al. (2023) Health-related quality of life in patients accessing medicinal cannabis in Australia: The QUEST initiative results of a 3-month follow-up observational study. PLoS ONE 18(9): e0290549. https://doi.org/10.1371/journal.pone.0290549