Ovos parasitas de Cucos-Africanos podem enganar facilmente humanos, mas não os Drongos
Figura 1. (A) Filhote de Cuco-Africano (Cuculus gularis). (B) Ninho de drongo parasitado por um cuco-Africano (ovo de cuco à direita). Ref.1 |
O Cuco-Africano (Cuculus gularis) é uma famosa ave parasitária na África. As fêmeas dessa espécie depositam seus ovos nos ninhos de outra espécie de ave - o Drongo-de-cauda-forcada (Dicrurus adsimilis), nativo do sul da África -, camuflados de forma quase idêntica aos ovos dos ninhos hospedeiros. Porém, mesmo com uma camuflagem beirando a perfeição, o D. adsimilis não cai facilmente nesse truque. De acordo com um estudo publicado esta semana no periódico Proceedings of the Royal Academy B (Ref.2), as fêmeas de D. adsimilis habitando a Zâmbia conseguem identificar e rejeitar ovos do cuco-Africano com quase 94% de acuracidade.
Os Cuculiformes, denominados de cucos, são aves cosmopolitas ocupando todos os biomas tropicais com exceção de algumas ilhas oceânicas - mas a maioria concentrada no Hemisfério Sul. Essa ordem de aves traz uma única família (Cuculidae) e apresenta significativa variação em relação aos aspectos ecológicos, comportamentais, anatômicos e à plumagem, provavelmente resultante de uma longa história evolutiva e ampla distribuição geográfica. Os cucos são conhecidos principalmente por hábitos gregários em algumas espécies e comportamentos peculiares em relação à reprodução, sendo provavelmente a família que apresenta maior diversidade de comportamentos reprodutivos entre as aves. Embora a maioria das espécies adote a estratégia de cuidar dos filhotes, pelo menos 53 espécies parasitam ninhos.
Nesse último cenário, o cuco-Africano (C. gularis) (Fig.2) é um cuco que parasita quase exclusivamente os ninhos da espécie D. adsimilis (Fig.3). Os cucos-Africanos depositam seus ovos nos ninhos de drongos para evitar os custos associados à criação dos filhotes. Existe também evidência que os cucos-Africanos investem especificamente nos drongos por estes exibirem alta agressividade contra predadores (ex.: cobras), garantindo proteção extra aos filhotes intrusos (Ref.4). Através de seleção natural, os ovos dos cucos-Africanos evoluíram no sentido de exibir padrões quase idênticos àqueles dos ovos de drongos - um raro exemplo de mimetismo de alta fidelidade.
Figura 3. Indivíduo adulto da espécie Cuculus gularis. |
Figura 2. Indivíduo adulto da espécie Dicrurus adsimilis. |
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> Relevante apontar que ninhos de drongos (D. adsimilis) podem ser parasitados por duas espécies de cucos ao mesmo tempo: cuco-Africano (C. gularis) e Clamator jacobinus (subespécie C. j. serratus). Ref.5
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Tanto o cuco-Africano quanto o drongo produzem ovos com um alto grau de variabilidade no fenótipo (cores e padrões) entre as fêmeas: coloração dos ovos variam do branco ao vermelho-amarronzado, e ovos podem ser emaculados ou padronizados com manchas bronzeadas, amarronzadas ou pretas (Fig.4). Essa variação é provavelmente dirigida por coevolução entre as duas espécies, como no caso de outros sistemas parasitas-hospedeiros. Aos olhos humanos, variações fenotípicas nos ovos a nível populacional são completamente sobrepostas entre as duas espécies, e alguns ovos de cucos-Africanos são indistinguíveis para a nossa visão em relação aos ovos de drongos até a eclosão (Fig.5).
Figura 5. Múltiplos conjuntos de ovos associados a ninhos de drongos que foram parasitados por cucos-Africanos. Em cada conjunto, o ovo mais à direita é de um cuco-Africano. Ref.1-2 |
O parasitismo do cuco-Africano é particularmente custoso para os drongos porque, como outras espécies de cucos, os filhotes intrusos quando eclodem dos ovos expulsam os ovos ou outros filhotes no ninho hospedeiro, monopolizando os recursos (abrigo, proteção anti-predadores, alimentos). Como resposta evolutiva, os drongos desenvolveram sofisticadas defesas anti-parasíticas, incluindo "assinaturas" fenotípicas na superfície dos ovos que ajudam na detecção de ovos parasitas.
No novo estudo, pesquisadores da Universidade de Cambridge e da Universidade da Cidade do Cabo, trabalhando em colaboração com uma comunidade na Zâmbia, buscaram explorar a efetividade dessas "assinaturas" como defensa dos drongos contra o mimetismo altamente acurado dos cucos-Africanos. As análises foram realizadas no distrito de Choma, na Zâmbia, durante setembro a novembro ao longo de quatro anos.
Na primeira parte do estudo, os pesquisadores mediram as diferenças em cores - usando inclusive técnicas espectroscópicas - e de padrões entre os ovos de ambas as espécies. Eles encontraram que a cor e os padrões dos ovos de cucos eram, na média, quase idênticos àqueles dos ovos de drongos, e que as assinaturas gerais eram imitadas com perfeição pelos cucos. Aliás, os próprios pesquisadores foram enganados ocasionalmente nas coletas de campo ao deixarem escapar a identificação de ovos parasitas em ninhos de drongos.
Na segunda parte do estudo, os pesquisadores conduziram experimentos nos quais eram simuladas visitas e parasitismo de cucos-Africanos em ninhos de drongos, visando aferir as taxas de rejeição dos ovos parasitas pelos drongos e as potenciais diferenças fenotípicas nos ovos associadas às rejeições. Foram conduzidos 114 simulações, resultando em 38 eventos de aceitação dos ovos (drongos não conseguiram notar os ovos parasitas) e 76 eventos de rejeição (drongos conseguiram identificar e rejeitar os ovos parasitas).
Combinando os resultados de ambos as partes do estudo, os pesquisadores foram capazes de criar um modelo predizendo o quão frequentemente, na média, um cuco-Africano teria seus ovos rejeitados pelo drongo hospedeiro. Eles encontraram que a taxa [prevista] de rejeição seria de 93,7%. Essa alta capacidade de detecção de ovos parasitas pelos drongos mostrou estar associada com a correta identificação de sutis variações de cor e padrões de manchas sobre a superfície dos ovos. Cada fêmea de drongo possui um tipo único de ovos, ajudando-a a identificar ovos impostores com uma acuracidade que ultrapassa a capacidade humana e até de modelos computacionais.
Mas essa alta taxa de rejeição levantou também uma questão importante: como as populações de cucos-Africanos conseguem se manter sustentáveis? De fato, os pesquisadores sugeriram, com base nos resultados do estudo, que uma fêmea de cuco produziria apenas dois filhotes ao longo de toda a vida (sobreviventes às rejeições de drongos) - uma quantidade suficiente apenas para substituir a fêmea e o seu parceiro. Como cucos-Africanos continuam sendo uma ave muito comum em várias partes da África, os autores do estudo levantaram a hipótese de que naquela parte da Zâmbia em específico - explorada no estudo - as populações de drongos evoluíram defesas de detecção muito eficientes devido à alta pressão de parasitismo. Em outras partes da África, as taxas de rejeição dos ovos podem ser menores.
REFERÊNCIAS
- https://www.cam.ac.uk/stories/drongos-versus-cuckoos
- Lund et al. (2023). When perfection isn’t enough: host egg signatures are an effective defence against high-fidelity African cuckoo mimicry. Proceedings of the Royal Society B. https://doi.org/10.1098/rspb.2023.1125
- https://www.scielo.br/j/rbzool/a/8JqBfcsX3DfpPWgxk4QjVqQ/
- https://royalsocietypublishing.org/doi/full/10.1098/rspb.2022.1506
- https://www.tandfonline.com/doi/abs/10.2989/00306525.2015.1029032