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Cientistas revelam maquinário molecular único de mulher "X-men"

Figura 1. Jo Cameron não sente dor, exibe rápida cura de feridas e é à prova de medo.

Em 2019, no periódico British Journal of Anaesthesia (Ref.1), pesquisadores reportaram o curioso caso de uma mulher de 67 anos que exibia um conjunto de características físicas e psicológicas dignas de um personagem dos X-Men: insensibilidade à dor, rápida cura de feridas e ausência de medo. No estudo, duas mutações foram descobertas, uma delas no desconhecido pseudogene FAAH-OUT, que explicavam as curiosas características da "paciente-X". Agora, em um estudo publicado no periódico Brain (Ref.2), pesquisadores descreveram a nível molecular como a atípica mutação identificada no gene FAAH-OUT age no corpo da paciente.


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PACIENTE X


Vários anos atrás, uma paciente (sexo feminino) de 66 anos de idade chamada Jo Cameron (Fig.1) apresentou-se ao Hospital de Raigmore, em Inverness, Escócia, para uma cirurgia ortopédica, especificamente uma trapezectomia - remoção do osso do trapézio, no carpo do punho - com reconstrução ligamentar e interposição de tendão e realinhamento do músculo longo extensor do polegar, após diagnóstico de um quadro de osteoartrose. Existia significativa deformidade e deterioração no uso do polegar direito da paciente, mas o quadro foi anomalamente reportado como indolor antes da operação. Cameron também tinha um estranho histórico de vômito após administração de morfina.


Para a cirurgia, a paciente recebeu anestesia geral com bloqueio do nervo axilar. Após a operação, para a surpresa dos médicos, ela não reportou nenhuma sensação de dor. Ainda mais extraordinário, ela não requisitou nenhum analgésico pós-operatório além de simples paracetamol, mesmo após cessação do bloqueio no nervo axilar e apesar da cirurgia em questão (trapezectomia) ser reconhecidamente um procedimento muito doloroso. No hospital, ela também não reportava dor após ser beliscada ou durante manipulação periférica da cânula (intravenosa).


Cameron - com 1,7 m de altura e massa corporal de 63 kg - também foi diagnosticada com osteoartrite no quadril, para a qual ela não reportava dor, algo não consistente com o severo grau de degeneração das articulações. Aos 65 anos de idade, ela havia sido submetida a um procedimento cirúrgico de artroplastia do quadril, recusando analgésicos no pós-operatório. No mesmo caminho, o histórico cirúrgico da paciente era notável por múltiplos procedimentos e dentais e de varizes para os quais ela nunca requeria analgesia. Ela reportou um longo histórico de lesões indolores (ex.: fratura no pulso esquerdo) para os quais ela não usava analgésicos. Também reportou inúmeras queimaduras e cortes no corpo que não causavam dor, frequentemente sentindo o cheiro da carne queimada  antes de notar o acidente - aliás, ela apresentava múltiplas cicatrizes ao redor dos braços e sobre as costas das mãos. Nesse último ponto e mais interessante: a paciente notava que essas lesões eram rapidamente curadas com pouca ou nenhuma cicatriz residual (algo confirmado em testes clínicos).


Essa incapacidade de sentir dor também se estendia para o paladar, onde a paciente reportou comer pimentas muito fortes sem qualquer desconforto, pelo contrário, experienciava uma agradável e temporária sensação na boca.


Outra característica da paciente: ela reportou nunca ter entrado em pânico na vida, nem mesmo em situações perigosas ou temerárias, como em um recente acidente automobilístico. Além de reduzido estresse e sintomas de medo, ela sempre exibia uma disposição alegre - era resistente a sintomas depressivos - e não exibia ansiedade. Por outro lado, a paciente reportou um longo histórico de lapsos de memória (ex.: frequentemente esquecia palavras no meio de sentenças e onde colocava as chaves).


Cameron nasceu em 1947, e nunca exibiu problemas para andar ou falar, e teve desenvolvimento normal durante a infância. Na escola, exibiu aprendizado normal. Mãe de dois filhos, ela reportou não ter sentido nenhuma dor durante o parto aos 29 e 42 anos de idade (apesar de lembrar ter recebido analgesia via gás). Segundo a paciente, ela experienciou uma sensação de pressão, desagradável, mas não dolorosa, durante os partos; após dar a luz, ela recebeu pontos devido a um rasgo, mas analgésicos não foram necessários.


Aliás, um dos filhos de Cameron também possui algum grau de insensibilidade à dor mas não na mesma extensão da mãe. Ele não sentia dor ao doar sangue ou de cortes e outros machucados, e frequentemente escaldava sua boca com bebidas e alimentos quentes, não percebendo isso até o tecido bucal começar a descascar. O filho também reportou nunca ter tido a necessidade de tomar analgésicos.


O caso de Cameron despertou a atenção de pesquisadores e, em 2013, ela foi referida para geneticistas da University College London. Após 6 anos de análises genéticas em amostras da paciente, eles conseguiram identificar um novo pseudogene (FAAH-OUT) e uma rara microdeleção (tipo de mutação) de ~8 kb associada. Esse pseudogene é expresso no gânglio da raiz dorsal e no cérebro, e está presente na região cromossômica não-codificante ligada ao gene FAAH - responsável pela codificação de uma enzima (hidrolase de amidas de ácidos graxos). Além disso, a paciente exibia uma mutação mais comum - um polimorfismo de nucleotídeo único (SNP) - no próprio gene FAAH. Em conjunto, essas mutações resultavam em elevada concentração de anandamida e amidas de ácidos graxos relacionadas na circulação periférica que são normalmente degradadas pela enzima FAAH. 


O gene FAAH faz parte do sistema endocanabinoide (1), este o qual está envolvido em funções diversas no corpo, incluindo em especial percepção de dor, humor e memória. Perda de função nesse gene acaba resultando em aumento de sinalização endocanabinoide - mediada por lipídios bioativos - e explica o espectro fenotípico da paciente. 


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(1) Para mais informações sobre o sistema endocanabinoide, fica a sugestão de leitura: Maconha é eficaz no tratamento do autismo?

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De fato, experimentos com ratos já mostraram que mutações com perda de função no gene FAAH resultam em hipoalgesia, cura acelerada de feridas, extinção aumentada de memórias associadas ao medo, ansiedade reduzida e prejuízos na memória de curto prazo. E SNPs nesse gene em humanos estão associados com uma reduzida necessidade de analgesia pós-operatória, aumento de náusea e de vômito induzidos por opioides, e redução em comportamentos ligados à ansiedade e à depressão.


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NOVO ESTUDO


Seguindo os achados no estudo de 2019, os pesquisadores da University College London resolveram elucidar a nível molecular como o pseudogene FAAH-OUT trabalha no corpo e como a microdeleção na "paciente X" afetava o sistema endocanabinoide. Através de uma série de experimentos in vitro usando o editor genético CRISPR-Cas9 em linhagens celulares, os pesquisadores mostraram que o FAAH-OUT regula a expressão do gene FAAH através de mecanismos epigenéticos - particularmente prevenindo metilação do DNA DNMT1*-dependente [*DNMT1 = DNA metiltransferase 1] (2). Quando o FAAH-OUT é desativado como resultado da mutação carregada por Cameron, os níveis de atividade enzimática da proteína FAAH são significativamente reduzidos.


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(2) Para mais informações sobre mecanismos epigenéticos, sugestão de leitura: Epigenética, Plasticidade Fenotípica e Evolução Biológica

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Além de reduzir a expressão do gene FAAH, os pesquisadores encontraram que a microdeleção no FAAH-OUT afetava positivamente outros 797 genes (aumentava a expressão gênica) e negativamente mais 348 genes (redução na expressão gênica). Isso incluía alterações no caminho WNT, que está associado com a cura de feridas - com aumento da atividade no gene WNT16, previamente ligado a regeneração óssea. Outros dois importantes genes alterados eram o BDNF, previamente ligado a regulação do humor, e o ACKR3, responsável por ajudar na regulação dos níveis de opioides. Essas mudanças gênicas potencialmente contribuem para os baixos níveis de ansiedade, medo e dor experienciados pela paciente X.


Figura 2. Níveis de expressão de RNA e localização dos genes FAAH (verde, AF488) e FAAH-OUT (roxo, Opal650) em células do córtex cerebral humano. O mRNA do FAAH é predominantemente citoplasmático, enquanto RNA longo não-codificante (lncRNA) do FAAH-OUT é enriquecido no núcleo. Ref.2

Em testes in vitro com fibroblastos extraídos de Cameron, os pesquisadores confirmaram mais rápida capacidade de cicatrização na paciente. Os fibroblastos são células importantes durante a cicatrização saudável, estando presente desde a fase inflamatória tardia até a reepitelização completa. Essas células são responsáveis pela produção e deposição de matriz extracelular, produção de substâncias solúveis e pelo remodelamento da matriz extracelular.


Os achados do estudo além de melhor esclarecerem os "poderes" da paciente X - que podem também ser uma 'maldição' em vários contextos, especialmente a insensibilidade à dor e a ausência de medo (ex.: não perceber problemas no corpo e tomar riscos excessivos) -, também abrem caminho para o desenvolvimento de novas estratégias terapêuticas contra quadros de dor crônica e para a cura otimizada de feridas. 


REFERÊNCIAS 

  1. Cox et al. (2019). Microdeletion in a FAAH pseudogene identified in a patient with high anandamide concentrations and pain insensitivity. British Journal of Anaesthesia, Volume 123, Issue 2, Pages e249-e253. https://doi.org/10.1016/j.bja.2019.02.019
  2. Mikaeili et al. (2023). Molecular basis of FAAH-OUT-associated human pain insensitivity. Brain, awad098. https://doi.org/10.1093/brain/awad098
  3. https://www.ucl.ac.uk/news/2023/may/study-reveals-unique-molecular-machinery-woman-who-cant-feel-pain

Cientistas revelam maquinário molecular único de mulher "X-men" Cientistas revelam maquinário molecular único de mulher "X-men" Reviewed by Saber Atualizado on maio 26, 2023 Rating: 5

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