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Cientistas descobrem a origem evolucionária de um componente essencial do olho humano

 
Desde a época de Charles Darwin (1809-1882), explicar o processo passo a passo da evolução do olho vertebrado - intermediado pelo mecanismo de seleção natural - tem sido desafiador devido à grande complexidade dessa estrutura. Enquanto numerosas transições evolucionárias que levaram ao olho vertebrado têm sido explicadas, alguns aspectos parecem ser específicos dessa classe de animais e sem óbvios precursores metazoários. Agora, em um estudo publicado no periódico PNAS (Ref.1), pesquisadores revelaram mais um fascinante exemplo de transferência horizontal de genes entre procariontes e eucariontes que elucida a origem um componente crítico e diferencial no olho vertebrado. No caso, uma antiga bactéria forneceu o material genético necessário para a evolução de uma enigmática proteína essencial para a visão dos vertebrados chamada IRBP, a qual inexiste nos olhos de invertebrados. 


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Os vertebrados possuem olhos similares a câmeras que permitem uma visão com resolução espacial precisa e que evoluíram como resultado de múltiplas transições evolucionárias transformando um típico olho invertebrado mais simples em uma estrutura com alta complexidade. Entre essas transições, está a separação física entre células que permitem a sensibilização pela luz e as células que permitem a reciclagem enzimática das proteínas retinoides ativadas pela luz. Sensibilização de luz através de isomerização luz-induzida da rodopsina-ligante 11-cis retinal para trans-retinal (Fig.1) ocorre nas células fotorreceptoras, enquanto regeneração enzimática para 11-cis-retinal ocorre em células fisicamente separadas que são conhecidas como células do epitélio pigmentado da retina. 


Figura 1. A rodopsina é um fotorreceptor composto de duas partes: a proteína opsina e o cromóforo 11-cis retinal (molécula acima ilustrada, a qual é derivada da vitamina A). O cromóforo é composto de uma cadeira de polieno e um grupo beta-ionona. Sob ação da luz, a conformação cis - determinada na dupla ligação entre os carbonos 11 e 12 - é transformada para a conformação trans; sob ação enzimática, a conformação trans retorna à conformação cis. Ref.2

A separação entre as camadas de sensibilização fótica e de regeneração retinoide nos vertebrados tem sido fortemente sugerida de permitir boa visão mesmo em condições de baixa luminosidade. A proteína que facilita essa separação é conhecida como proteína retinoide-ligante interfotorreceptora (IRBP na sigla em inglês e, portanto, codificada pelo gene IRBP), ou também por proteína retinol-ligante 3 (RBP3, na sigla em inglês). A proteína IRBP é a principal proteína solúvel localizada dentro da matriz interfotorreceptora e possui a função crítica de transportar retinoides entre as células sensibilizantes e as células regeneradoras (Fig.3). Devido ao seu papel central no sistema visual, mutações na proteína IRBP humana causam uma variedade de doenças retinais, como retinite pigmentosa e distrofia retinal. 


Figura 2. Ilustração esquemática do ciclo visual dos vertebrados indicando a separação física entre células fotorreceptoras sensibilizadas por luz retinoide-mediadas e células de regeneração retinoide no epitélio pigmentado da retina. A proteína IRBP transporta os retinoides entre esses dois tipos celulares, e reside entre a retina e o epitélio retinal de pigmento, uma fina camada de células sobre a retina. No olho vertebrado, o cromóforo fotossensível 11-cis retinal, quando muda de conformação (cis → trans) após excitação por luz, engatilha a produção de um pulso elétrico que ativa o nervo óptico que então manda informação visual para o cérebro. A proteína IRBP retorna o 11-trans retinal nas rodopsinas à conformação original (cis), possibilitando um novo estímulo visual. Ref.1

Notavelmente, a sequência genética do gene IRBP e quatro estruturas repetidas no domínio da proteína codificada são altamente conservadas nos vertebrados; de fato, a proteína IRBP é essencial para a visão de todos os vertebrados (anfíbios, répteis, aves e mamíferos), incluindo humanos. Ainda mais interessante, não existem óbvias estruturas proteicas semelhantes (homólogos) na maioria dos outros seres eucariontes (fungos, animais invertebrados, protistas), tornando essa proteína enigmática, como se, "do nada", tivesse emergido na linhagem evolutiva associada aos metazoários vertebrados - um potencial caso de equilíbrio pontuado, onde dramáticas inovações emergem em uma curta escala evolutiva de tempo, em contraste com o lento 'passo a passo' tipicamente associado às modificações fixadas pela seleção natural para a emergência de um novo fenótipo inovador e que podem ser continuamente traçadas até um ancestral comum muito distante.


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Para esclarecer a origem evolucionária da proteína IRBP, pesquisadores no novo estudo usaram sofisticados programas computacionais e múltiplos métodos de reconstrução filogenética para traçar a evolução de centenas de genes humanos, incluindo análise de >900 genomas de alta qualidade representando espécies espalhadas em diversos domínios de organismos vivos (eucariontes e procariontes).


Os resultados das análises mostraram que o gene IRBP é muito semelhante a uma família de genes bacterianos codificantes de proteínas chamadas de peptidases. Nesse sentido, os pesquisadores demonstraram que há mais de 500 milhões de anos, bactérias transferiram um gene peptidase para um ancestral de todos os vertebrados, com o gene perdendo função em um curto espaço de tempo (escala evolutiva), sendo subsequentemente duplicado duas vezes - explicando por que o IRBP possui quatro cópias da sequência de DNA original da peptidase - e finalmente ganhando a habilidade de se ligar a moléculas sensitivas de luz.


Além disso, os pesquisadores identificaram dois exemplos adicionais e independentes de transferência do gene peptidase bacteriano para eucariontes, no caso envolvendo fungos e certas espécies de anfioxos (animais cordados marinhos similares a peixes) (Fig.4). Enquanto que os homólogos fúngicos da proteína IRBP retêm características consistentes com a função da peptidase bacteriana, é incerto ainda o papel dos homólogos nos anfioxos (Fig.5). Os homólogos nos anfioxos possuem características estruturais mais similares à proteína IRBP dos vertebrados, com perda dos resíduos catalíticos da peptidase bacteriana. É especulado que o olho frontal dos anfioxos representa um estado ancestral do olho vertebrado, e, nesse sentido, estudos futuros tornam-se necessários para investigar se os homólogos do IRBP também possuem alguma função visual nesses animais.


Figura 4. Árvore filogenética eucariótica apontando a presença de homólogos do gene IRBP e um histograma quantificando o nível de similaridade da proteína codificada entre diferentes domínios de seres vivos eucariontes e procariontes (no caso, bactérias). As ramificações acinzentadas no esquema filogenético indicam ausência de homólogos. Note o enorme pulo para a presença abundante de sequências do IRBP entre bactérias e vertebrados, evidenciando o evento de transferência horizontal de genes entre esses dois grupos. Importante apontar que entre outros eucariontes com homólogos do IRBP, apenas em fungos (Fungi) e anfioxos (Amphioxus) a presença é conclusiva. Ref.1


Figura 5. Anfioxo da espécie Branchiostoma lanceolatum. Os anfioxos se separaram da linhagem levando aos vertebrados há mais de 520 milhões de anos, e são considerados um modelo de transição evolutiva entre invertebrados e vertebrados. Provavelmente espelhando ancestrais dos peixes, os anfioxos compartilham uma notocorda e um tubo nervoso dorsal em comum com os vertebrados. Esses animais usam tentáculos especiais ao redor da cavidade oral para filtrar pequenas partículas de plâncton e diatomáceas como alimento. Ref.3

Esse processo de transferência horizontal (ou lateral) de genes entre clados tão distintos - conhecido como 'transferência horizontal de genes interdomínios' (iHGT, na sigla em inglês) - pode ocorrer através de intermédio de vírus (!), de pedaços móveis de DNA (transposons) ou mesmo por sequências genéticas livres flutuando em um meio. Enquanto que pais passam para filhos seus genes através da reprodução (transferência vertical de genes), sequências genéticas diversas podem ser transferidas entre organismos de espécies distintas ou não sem reprodução, ou seja, via incorporação direta de sequências genéticas de um indivíduo no genoma de outro indivíduo. Entre bactérias, a transferência horizontal de genes é crucial para a rápida evolução de resistência a antibióticos.


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(!) Aliás, cerca de 8% do DNA humano é constituído de material genético transferido por antigos vírus! A placenta dos mamíferos não existiria sem a transferência de genoma viral! Para mais informações sobre o tema, acesse: Como nova informação genética é gerada durante o processo evolutivo?

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Importante, o novo estudo mostra como a rápida emergência de estruturas complexas pode ser facilitada com o auxílio de genes "estrangeiros" fornecendo novidades funcionais imediatas.


"Os achados do estudo demonstram como complexas estruturas como o olho vertebrado podem evoluir, não apenas via modificação de material genético existente mas também via aquisição e integração de genes estrangeiros," disse em entrevista para a Science o Dr. Ling Zhu, um biólogo retinal na Universidade de Sidney, Austrália, e que não estava envolvido com o estudo (Ref.4). "É incrível."


REFERÊNCIAS

  1. Kalluraya et al. (2023). Bacterial origin of a key innovation in the evolution of the vertebrate eye. PNAS, 120 (16) e2214815120. https://doi.org/10.1073/pnas.2214815120
  2. https://www.ebi.ac.uk/pdbe/news/visual-purple
  3. https://www.sciencedirect.com/topics/biochemistry-genetics-and-molecular-biology/branchiostoma
  4. https://www.science.org/content/article/ancient-gene-stolen-bacteria-set-stage-human-sight

Cientistas descobrem a origem evolucionária de um componente essencial do olho humano Cientistas descobrem a origem evolucionária de um componente essencial do olho humano Reviewed by Saber Atualizado on abril 17, 2023 Rating: 5

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