Revelada a mais antiga cirurgia de amputação conhecida: Há 31 mil anos uma criança teve parte da sua perna esquerda deliberadamente amputada
Em um estudo publicado hoje na Nature (Ref.1), pesquisadores reportaram e descreveram o esqueleto de um humano pré-histórico que viveu há cerca de 31 mil anos carregando clara assinatura de uma remoção deliberada da parte inferior da perna esquerda - a mais antiga evidência conhecida de uma amputação cirúrgica. Descoberto na Ilha de Bornéu, os vestígios ósseos pré-datam o mais antigo caso prévio conhecido de uma amputação de membro em mais de 20 mil anos. Além disso, análise do esqueleto revelou que o indivíduo sobreviveu por vários anos após a cirurgia. O achado fortemente sugere que alguns antigos humanos modernos (Homo sapiens) eram habilidosos enfermeiros e realizavam sofisticados procedimentos médicos muito mais cedo do que os cientistas pensavam.
A Península de Sangkulirang-Mangkalithat, no Leste de Kalimantan (Bornéu Indonésio), engloba várias cavernas e refúgios rochosos marcados com extensa evidência arqueológica de ocupação humana pré-histórica, incluindo arte figurativa em rochas datando em pelo menos 40 mil anos atrás, no Pleistoceno. Em 2020, após uma análise geofísica, um trecho de 2 metros de comprimento e 2 metros de largura foi escavado na área [chão] central de uma dessas cavernas - Liang Tebo, localizada a aproximadamente 2,5 km (e 165 metros acima) do Rio Marang -, revelando os vestígios ósseos de um humano (espécie H. sapiens, espécime TB1) enterrado a 0,87 metros de profundidade. Datação via carbono-14, série de urânio e ressonância de spin eletrônico (1) estimou uma idade para o esqueleto vestigial entre 31000 e 30000 anos. Essa idade e o posicionamento do esqueleto apontaram também que o achado representa o mais antigo enterro intencional de um humano moderno até o momento conhecido nas ilhas do Sudeste Asiático.
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Análise anatômica estimou uma idade de morte de 19-20 anos (jovem adulto), mas o sexo não pôde ser determinado com confiança (presença de traços masculinos e femininos intermediários nas regiões craniana e pélvica) - sua estatura no contexto do período pré-Último Glacial Máximo na Ásia sugere um indivíduo do sexo masculino. Materiais culturais recuperados do local incluíam artefatos de pedra lascada e um nódulo de 22 x 17 mm de um ocre vermelho (um pigmento mineral natural) próximo dos ossos da mandíbula.
Mas o aspecto mais interessante e notável no esqueleto foi a completa ausência do pé esquerdo e da parte final da tíbia e da fíbula. Osso remodelado cobria as superfícies amputadas identificadas sobre os fragmentos da tíbia distal esquerda e da extensão da fíbula esquerda, demonstrando cicatrização e cura posterior a um corte seccional oblíquo limpo. Essas características suportam que a terceira parte distal da perna esquerda do TB1 foi removida através de uma amputação cirúrgica deliberada. Segundo os autores do estudo publicado na Nature, os padrões de trauma observados não são consistentes com descrições clínicas de amputações não-cirúrgicas (ex.: acidente), exceto em traumas mais recentes na história humana envolvendo acidentes com grandes lâminas metálicas ou avançados processos mecânicos.
O pequeno tamanho da tíbia e da fíbula na perna esquerda comparado com a perna direita apontaram que a amputação cirúrgica ocorreu na infância do indivíduo, à medida que os ossos não continuaram crescendo. Já o severo afinamento dessas duas estruturas ósseas sugeriram uma pesada restrição de uso a longo prazo da perna esquerda, associada a uma atrofia musculoesquelética de desuso - reforçando que a cirurgia foi realizada vários anos antes da morte do indivíduo.
A visão prevalente relativa à evolução da medicina têm sugerido que a emergência de sociedades agrícolas sedentárias há cerca de 10 mil anos (Revolução Neolítica) resultou no aparecimento de vários problemas de saúde previamente desconhecidos por pequenos grupos de caçadores-coletores, estimulando as primeiras grandes inovações nas práticas médicas pré-históricas e uso de plantas medicinais (incluindo o desenvolvimento de procedimentos cirúrgicos mais avançados). De fato, até o momento, o mais antigo exemplo conhecido de uma amputação cirúrgica de membros datava de 7 mil anos atrás, onde um agricultor Europeu Neolítico, na região da França, teve seu antebraço esquerdo cirurgicamente removido. Antes disso, era pensado que cirurgias envolvendo remoção de partes corporais eram limitadas em especial a práticas ritualísticas, punitivas ou religiosas e apenas visavam pequenas extensões corporais, como a amputação de dedos e a remoção do prepúcio - aliás, a circuncisão é comumente considerada o mais antigo procedimento cirúrgico (2).
(2) Leitura recomendada: É recomendado realizar a circuncisão?
Nas sociedades Ocidentais, amputações cirúrgicas de sucesso somente se tornaram uma norma médica dentro dos últimos 100 anos. Antes do desenvolvimento clínico moderno, incluindo antibióticos, era amplamente pensado que a maioria das pessoas submetidas a uma cirurgia de amputação teriam morrido, seja no momento da amputação devido à perda sanguínea e choque, ou de infecções subsequentes - cenários que não deixam marcas esqueléticas de avançada cicatrização como observado no espécime TB1.
Os pesquisadores acreditam que o antigo cirurgião (ou cirurgiã) do Pleistoceno que amputou a perna do espécime TB1 possuía detalhado conhecimento de anatomia e dos sistemas vascular e muscular no sentido de prevenir perda letal de sangue e subsequente infecção. E, naturalmente, esse antigo povo entendia a necessidade de remover um membro do corpo em certas condições (ex.: graves lesões necrosantes) em ordem do indivíduo sobreviver. Finalmente, durante a cirurgia, o tecido na região amputada - incluindo veias, vasos e nervos - teria ficado exposto mas manipulado de tal maneira a permitir não apenas a sobrevivência do indivíduo como também uma mobilidade restrita - mas suficiente - durante a vida.
Intenso cuidado pós-operatório e limpeza da ferida teriam sido vitais, como regulação de temperatura, alimentação regular, banho e movimentação para prevenir feridas de cama enquanto o indivíduo estava imobilizado. Recursos botânicos disponíveis na região com propriedades medicinais podem ter sido cruciais para desinfecção e alívio da dor (propriedades anestésicas). Embora não seja possível determinar se houve infecção após a cirurgia, o indivíduo TB1 claramente não sofreu de um processo infeccioso severo o suficiente para deixar marcas esqueléticas permanentes e/ou causar morte. E considerando o terreno montanhoso na região de Bornéu onde esses humanos viviam, fica inferido um alto grau de auxílio comunitário permitindo a superação de desafios práticos do dia-a-dia e a sobrevivência de longo prazo do indivíduo amputado.
Com base em todas as evidências acumuladas a partir da análise do espécime TB1 e do ambiente associado, os pesquisadores concluíram que o indivíduo estava inserido em uma avançada comunidade de caçadores-coletores do Pleistoceno Tardio, pelo menos em termos medicinais. O compreensivo conhecimento de anatomia humana, fisiologia e procedimentos cirúrgicos nessa comunidade provavelmente se desenvolveu através de tentativa e erro ao longo de várias gerações e transmissões inter-geracionais (tradições orais de aprendizado). Por outro lado, é incerto se a amputação cirúrgica descrita representou um evento raro e isolado ou se essa particular comunidade humana alcançou um anômalo alto grau de proficiência nessa área. É possível também que altas taxas de feridas infecciosas nas florestas tropicais podem ter estimulado o desenvolvimento de novos recursos farmacêuticos (ex.: antissépticos) a partir da rica biodiversidade de plantas e flora endêmica de Bornéu.
REFERÊNCIAS
- Maloney et al. (2022). Surgical amputation of a limb 31,000 years ago in Borneo. Nature. https://doi.org/10.1038/s41586-022-05160-8
- https://www.nature.com/articles/d41586-022-02849-8