Estudo traz mais evidência para a assinatura neurobiológica da incongruência de gênero
A identidade de gênero é o senso interno do indivíduo de afinidade (ou de não-afinidade) a padrões biológicos e sócio-culturais atribuídos ou associados ao sexo masculino e ao sexo feminino. Cada vez mais evidências científicas apontam para uma distinta assinatura neurobiológica associada a esse senso interno, determinada por fatores hormonal-uterinos, genéticos e/ou epigenéticos. Em especial, vários estudos recentes têm apontado significativas diferenças na estrutura cerebral entre indivíduos cis- e transgênero (1). Nesse mesmo caminho, um recente estudo publicado no periódico Psycholocigal Medicine (Ref.1) trouxe mais evidência reforçando uma assinatura neurobiológica correlacionada com a incongruência de gênero.
(1) Leitura recomendada: O que é a tal da Ideologia de Gênero?
Durante o período intrauterino na segunda metade da gravidez, a exposição à testosterona tipicamente masculiniza o cérebro fetal do sexo masculino. Se não ocorre essa exposição, teremos como resultado um cérebro feminino. Como a diferenciação sexual do cérebro ocorre em um estágio muito mais tardio no desenvolvimento fetal do que a diferenciação das genitálias (determinação do sexo biológico), esses dois processos podem ser influenciados de forma independente um do outro, podendo, então, resultar em incongruência de gênero (ex.: indivíduos transgêneros). Em outras palavras, independentemente se um indivíduo possui pênis e saco escrotal, a identidade de gênero pode ser congruente com o sexo feminino ou com o sexo masculino. Mecanismos envolvidos na diferenciação sexual do cérebro incluem hormônios, genética, epigenética, disruptores endócrinos, resposta imune, e auto-organização.
Várias linhas de evidência suportam a teoria neurobiológica sobre a origem da incongruência ou não-conformidade de gênero, ou seja, são os tamanhos das estruturas cerebrais, os números de neurônios, a composição molecular, funções, e conectividade cerebrais que determinam nossa identidade de gênero e também a orientação sexual (2). Aliás, não existe evidência de que o ambiente social possui um papel crucial (ou determinante) no desenvolvimento da identidade de gênero ou da orientação sexual. No caso da identidade de gênero, fatores sócio-culturais ajudam a moldar esse senso interno do indivíduo, mas não no sentido de determinar cisgeneridade ou transgeneridade.
(2) Leitura recomendada: Homossexualidade é social ou biológica?
A identidade de gênero é refinada durante a adolescência, um período de significativas mudanças (físicas, cognitivas e sócio-emocionais) no desenvolvimento corporal e psicológico. Dentro do contexto da dramática ascensão nos níveis dos hormônios sexuais pubertários impactando o corpo adolescente, e em meio à emergência de uma mais clara identidade sexual, a identidade de gênero é mais profundamente diferenciada. Para a maioria dos indivíduos, o sexo biológico e a idade de gênero são, no geral, congruentes (cisgêneros); em indivíduos se identificando como transgêneros, sexo biológico e identidade de gênero não se alinham - incluindo quadros de disforia de gênero (manifestação de marcante incongruência).
No novo estudo, pesquisadores usaram ressonância magnética funcional (fMRI) com difusão (DWI) para investigar o cérebro de adolescentes e pré-adolescentes, com o auxílio da técnica de anisotropia fracionada (análise quantitativa usada para demonstrar a densidade e mielinização das fibras que compõe a substância branca do cérebro) regional. Em específico, foi analisado o impacto da puberdade nas alterações da organização da matéria branca de 35 crianças pré-pubertárias (com ausência de tratamento hormonal) e 41 adolescentes com incongruência de gênero recebendo supressão pubertária. Participantes transgêneros foram também comparados com 79 outros indivíduos cisgêneros na mesma faixa de idade e não submetidos a tratamento hormonal.
Do total de 82 crianças e 82 adolescentes analisados, haviam 20 meninas pré-pubertárias transgêneras (idade média de 10,4 anos), 15 meninos pré-pubertários transgêneros (idade média de 9,6 anos), 20 adolescentes transgêneros do sexo feminino (idade média de 15,4 anos) e 21 adolescentes transgêneros do sexo masculino (idade média de 16,1 anos). Todos foram recrutados na cidade de Amsterdã, Holanda.
Os resultados das análises mostraram que os adolescentes transgêneros possuíam um menor nível de anisotropia fracionada (AF) no fascículo fronto-occipital inferior bilateral (FFOIB), no fórceps maior e no corpo caloso do que os indivíduos cisgênero. Além disso, a média dos valores de AF do FFOIB direito correlacionava negativamente com a dosagem cumulativa dos supressores pubertários recebidos. Por fim, crianças pré-pubertárias também exibiram diferenças significativas em termos de AF no FFOIB direito e no trato cortical-espinhal esquerdo, mas com um padrão reverso (transgênero > cisgênero) em relação àquele observado nos adolescentes. Esse último achado realça a complexidade com a qual os hormônios sexuais, durante diferentes fases do desenvolvimento humano, interagem com e impactam o desenvolvimento psicológico e cerebral, incluindo a percepção do próprio gênero - somando-se à diferenciação sexual no desenvolvimento fetal.
Entre os resultados, os valores inferiores de FA (menos organização longitudinal, coerência das fibras e mielinização) no FFOIB dos adolescentes transgêneros replicam achados prévios em adultos transgêneros, fortemente sugerindo uma saliente correlação neural de incongruência de gênero - e provável substrato neurobiológico associado com a identidade de gênero.
REFERÊNCIA
- Heesewijk et al. (2022). Alterations in the inferior fronto-occipital fasciculus – a specific neural correlate of gender incongruence? Psychological Medicine, 1-10. https://doi.org/10.1017/S0033291721005547
Reviewed by Saber Atualizado
on
junho 28, 2022
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