Saúvas surgiram há 8,5 milhões de anos e podem ter se beneficiado da expansão do Cerrado, indica estudo
André Julião | Agência FAPESP – Estudo conduzido por pesquisadores do Brasil, da Argentina e dos Estados Unidos sugere que o Cerrado pode ter sido, no último milhão de anos, um centro para o surgimento de novas espécies de saúva, como são conhecidas as formigas do gênero Atta. Contudo, a recente expansão da agropecuária na região parece estar afetando negativamente a biodiversidade desses insetos na região – favorecendo justamente espécies consideradas pragas para a agricultura.
Publicado na revista Systematic Entomology, o trabalho indica que a origem das saúvas se deu cerca de 8,5 milhões de anos atrás em algum ponto da chamada Mesoamérica, região que atualmente abrange do sul do México ao noroeste da Colômbia. Na sequência, esses insetos teriam se espalhado pela América do Sul, principalmente a partir do Cerrado. Ainda segundo o estudo, uma explosão de novas espécies pode ter ocorrido entre um e três milhões de anos atrás, justamente quando o Cerrado se expandia.
“A expansão do Cerrado brasileiro aparentemente favoreceu as saúvas, pois propiciou maior diversidade de alimento e ambientes mais abertos, aos quais elas se adaptaram muito bem. As saúvas foram se especializando nesses diferentes hábitats e gerando novas espécies”, explica Corina Barrera, primeira autora do estudo, realizado durante seu doutorado no Instituto de Biociências da Universidade Estadual Paulista (IB-Unesp), em Rio Claro.
“Se o Cerrado acabar, talvez elas passem por uma nova retração em termos de biodiversidade, como outras que ocorreram no passado. Pode ser que isso já esteja acontecendo com a introdução da agricultura extensiva na região. Não medimos ainda a magnitude desse fenômeno. Sabemos que existe uma grande explosão populacional de saúvas, porém com baixa diversidade biológica, causada pela expansão da agricultura. As poucas espécies que se beneficiam de culturas como soja e cana-de-açúcar, por exemplo, se tornam pragas. Por sua vez, espécies florestais, que não se adaptam às lavouras, podem sofrer uma grande extinção”, conta Maurício Bacci Júnior, professor do IB-Unesp e coordenador do estudo.
O trabalho integra dois projetos apoiados (19/24470-2 e 19/03746-0) pela FAPESP e coordenados por Bacci, um deles no âmbito de uma parceria entre a National Science Foundation, dos Estados Unidos, e o Programa BIOTA-FAPESP.
Para realizar o trabalho, os pesquisadores coletaram amostras de 865 colônias de saúvas, em 19 países e em 25 dos 26 Estados brasileiros. Foram selecionados 224 espécimes para extração de DNA, de onde foram recuperados 2.340 dos chamados elementos ultraconservados, regiões do código genético idênticas em mais de um organismo. A comparação desses elementos é uma ferramenta conhecida por determinar relações evolutivas com bastante precisão.
Formigas agricultoras
Embora do ponto de vista humano a saúva seja considerada uma praga agrícola, esses insetos têm praticado a agricultura desde antes do surgimento do homem na Terra.
Enquanto a maioria das formigas é caçadora-coletora, matando presas ou comendo o que encontram pelo caminho, as saúvas fazem parte de uma subtribo, chamada Attina, que entre 50 milhões e 60 milhões de anos atrás passou a produzir o próprio alimento.
“Os inventores da agricultura são as formigas e alguns grupos de cupins e besouros. São insetos que começaram a se alimentar de fungos e evoluíram para cultivá-los dentro dos seus ninhos, em cima de algum substrato. No caso das formigas-cortadeiras, folhas e outros restos de plantas. Com isso, possuem uma fonte de alimento que dura todas as estações do ano e conseguem uma certa segurança alimentar”, define Bacci, que é ligado ao Centro de Estudos de Insetos Sociais (Ceis) do IB-Unesp.
Tanto tempo praticando a agricultura possibilitou às formigas produzirem até mesmo seus próprios defensivos. No caso de um grupo mais antigo do que as saúvas, por exemplo, isso ocorre por meio de uma relação de mutualismo com bactérias. Os microrganismos protegem os fungos que servem de alimento para as formigas contra patógenos. Recentemente, os compostos usados por uma dessas bactérias têm sido explorados como possíveis medicamentos para doenças humanas (leia mais em: agencia.fapesp.br/35840/).
Mas enquanto essas formigas mais antigas usam restos de plantas, como flores e folhas caídas no chão, como substrato para cultivar fungos, as chamadas formigas-cortadeiras, da qual fazem parte as saúvas (gênero Atta) e as quenquém (gêneros Acromyrmex e Amoimyrmex), cortam folhas ativamente para levar para os ninhos. Daí se tornarem potenciais pragas.
Surgidas por volta de 19 milhões de anos atrás, tendo se dividido nos dois mais recentes gêneros (Atta e Acromyrmex) há cerca de 16,5 milhões de anos, as cortadeiras são as mais recentes entre as formigas cultivadoras de fungo. No que se trata das saúvas, algumas espécies são ainda mais novas, tendo surgido entre 1 milhão e 300 mil anos atrás, como a saúva-preta (Atta robusta), no último caso.
Mal surgiu na Terra e já está ameaçada de extinção. Restrita a regiões costeiras do Rio de Janeiro e do Espírito Santo, a saúva-preta é considerada “vulnerável” pelo Livro Vermelho da Fauna Brasileira Ameaçada de Extinção. Uma das explicações para a ameaça é sua baixa capacidade de adaptação a outros hábitats.
Outras espécies, no entanto, têm sua área ampliada à medida que o homem aumenta seu domínio e por isso estão em franca expansão. Uma delas é a saúva-limão (Atta sexdens), que tem esse nome pelo cheiro característico que exala quando tem a cabeça esmagada, mas é mais famosa por dizimar lavouras inteiras, por vezes da noite para o dia.
“Uma plantação de qualquer coisa que não seja nativa da América do Sul, como são as principais culturas agrícolas, será sempre também uma ‘plantação’ de formigas”, afirma Bacci.
O pesquisador atualmente realiza um mapeamento dos genes presentes nas saúvas, a fim de encontrar características (assinaturas genéticas) que possam tê-las tornado bem-sucedidas ou em vias de extinção. Além de entender melhor a seleção natural ocorrida no grupo, o trabalho pode abrir caminho para o desenvolvimento de formicidas mais direcionados, que atinjam apenas os genes dessas espécies danosas e em expansão, e não os de outras formigas inofensivas, além de peixes, aves e mamíferos.
O artigo Phylogenomic reconstruction reveals new insights into the evolution and biogeography of Atta leaf-cutting ants (Hymenoptera: Formicidae) pode ser lido em: onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1111/syen.12513.
> Este texto foi originalmente publicado por Agência FAPESP de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o original aqui.