Atualização na Biologia: Células de mamíferos podem produzir DNA a partir de RNA
O maquinário genético celular duplica o DNA para a formação de uma nova célula e também transforma trechos do DNA - com o auxílio da enzima polimerase - em fitas de RNA visando o transporte de informações necessárias para a síntese de proteínas. Porém, polimerases eram pensadas, até momento, de trabalharem apenas em uma única direção, ou seja, DNA para DNA ou RNA. Isso previne mensagens de RNA de serem transcritas de volta na sequência de DNA correspondente tanto em células eucarióticas quanto em células procarióticas. Agora, cientistas da Universidade Thomas Jefferson, EUA, em um estudo publicado ontem na Science Advances (Ref.1), trouxeram a primeira evidência experimental de que segmentos de RNA podem ser transcritos de volta em DNA nas células eucarióticas como fazem os retrovírus, desafiando um dos principais "dogmas" na Biologia e com implicações em várias áreas das ciências biológicas.
As enzimas DNA polimerases são um grupo de enzimas que "leem" sequências de DNA e as usam como molde para catalisar a formação de cadeias de polinucleotídeos (novo DNA) através da adição de sucessivos nucleotídeos derivados de trifosfatos desoxinuclosídeos. Essas enzimas são importantes para a cópia (replicação) do material genético de uma célula em preparação para a divisão celular, e também atuam de forma crítica no reparo da molécula de DNA. No caso da transcrição de DNA para a síntese de RNA mensageiro (mRNA), o processo ocorre através da ação de enzimas RNA polimerases. Enquanto bactérias e Archaea contêm penas um único tipo de RNA polimerase, células eucarióticas contêm três tipos (I, II e III). Ambos os mecanismos são essenciais e fundamentais para todos os organismos celulares, desde seres procariontes (ex.: bactérias) até seres eucariontes (protozoários, fungos, plantas e animais).
A polimerase θ (Polθ) é uma DNA polimerase única em organismos eucariontes superiores (ex.: mamíferos). Das 14 DNA polimerases descritas em células de mamíferos, apenas três fazem o trabalho de duplicar todo o genoma durante o processo de duplicação celular. As 11 restantes estão envolvidas, em maior parte, na detecção e reparação de falhas quando existe uma quebra ou erro nas fitas de DNA. A Polθ é uma polimerase justamente voltada para a reparação do DNA, porém é muito suscetível a falhas, produzindo muitos erros ou mutações. A Polθ não é expressa na maioria dos tecidos, mas é altamente expressa em várias células cancerígenas, conferindo também resistência a terapias genotóxicas contra o câncer e promovendo a sobrevivência de células mais vulneráveis a danos no DNA.
Notavelmente, a Polθ possui um domínio proofreading (processo de correção de erros) inativado devido a mutações. Inativação da função 3'-5' proofreading da polimerase I KF (Fragmento Klenow) - presente em bactérias e evolutivamente próximo relacionada à Polθ - permite essa polimerase transcrever de forma reversa RNA assim como faz as enzimas transcriptases reversas de retrovírus (ex.: HIV), ou seja, permite a conversão de RNA em DNA. Nesse sentido, como a Polθ é altamente suscetível a erros e contém um domínio proofreading inativo, é possível que essa polimerase expresse atividade de síntese de DNA RNA-dependente.
No novo estudo, os cientistas realizaram uma série de complexos experimentos em células humanas - incluindo uso de cristalografia de raios-X - para testar a hipótese de que a Polθ possui atividade similar à transcriptase reversa. Os resultados mostraram e confirmaram que a Polθ de fato era capaz de converter fitas de RNA em DNA, com uma eficiência similar à transcriptase reversa do vírus HIV e mais eficiente do que a função de duplicar DNA, exibindo uma velocidade e fidelidade significativamente maior de incorporação de desoxirribonucleotídeos (blocos de construção do DNA) sobre RNA do que sobre DNA.
Durante o processo de transcrição reversa da Polθ, esta enzima mostrou passar por uma significativa transformação estrutural para acomodar o molde DNA/RNA, resultando em uma conformação bem distinta em relação ao complexo usado para acomodar o molde DNA/DNA e formando inclusive ligações de hidrogênio com grupos ribose 2'-hidroxilas como observado em retrovírus. Esse nível de transformação estrutural não é observado em transcriptases reversas de vírus e nem em outras DNA polimerases.
A notável capacidade de plasticidade estrutural da Polθ provavelmente é única a essa enzima, permitindo a atuação sobre diferentes moldes - incluindo DNA/DNA, DNA/RNA, ssDNA (DNA de fita única), ssDNA parcial, e RNA de fita única -, a transcrição eficiente de moldes de ribonucleotídeos (blocos de construção das moléculas de DNA e de RNA), e de acomodar um híbrido completo RNA-DNA dentro do seu local ativo.
Apesar de mais estudos serem necessários para melhor elucidar a real relevância fisiológica da atividade de transcrição reversa da Polθ, os resultados do novo estudo fortemente sugerem que essa enzima evoluiu nas células eucarióticas justamente para realizar a função de transcrição reversa, ou seja, sua principal função seria de sintetizar DNA a partir de RNA, algo antes pensado ser uma atividade de natureza exclusivamente retroviral. Em células saudáveis, a Polθ parece cumprir sua função de reparo primariamente sintetizando sequências de DNA a partir de sequências de RNA, algo também demonstrado experimentalmente no estudo.
Esse cenário proposto explicaria a alta suscetibilidade a erros e promiscuidade funcional da Polθ e, mesmo assim, a persistência dessa polimerase nas células eucarióticas ao longo do percurso evolucionário, onde ações deletérias seriam compensadas com funções únicas de reparo genético. O achado também pode ter importantes implicações para o desenvolvimento de estratégias terapêuticas mais eficientes contra o câncer.
REFERÊNCIAS
- https://advances.sciencemag.org/content/7/24/eabf1771
- https://www.ncbi.nlm.nih.gov/books/NBK22374/
- https://www.ncbi.nlm.nih.gov/books/NBK545212/