Descoberto animal que consegue regenerar todos seus órgãos mesmo quando cortado em três
Um estudo publicado no periódico Frontiers in Cell and Developmental Biology (1) reportou uma extraordinária descoberta no Golfo de Eilat: pesquisadores da Universidade de Tel Aviv, Israel, descreveram uma espécie de ascídia solitária, um animal marinho comumente encontrado no golfo em questão, que mesmo quando cortado em três partes consegue regenerar todos os seus órgãos, e dar origem a três novos indivíduos saudáveis. O achado é mais do que notável porque as ascídias solitárias são complexos animais sexuados e que pertencem ao filo Cordata, caracterizado por simetria bilateral, notocorda, sistema digestivo completo, um tubo nervoso dorsal, fendas branquiais e uma cauda pós-anal, em pelo menos uma fase da vida. Esse filo também engloba os humanos e os outros vertebrados.
A capacidade de regeneração é amplamente disseminada no Reino Animalia (ou Metazoa), com os representantes da maior parte dos filos apresentando diferentes graus de habilidade para reconstruir partes corporais perdidas ou danificadas. A maioria dos animais, incluindo humanos, regeneram tipos celulares específicos, como as células epidérmicas e capilares, diariamente. A habilidade de regenerar grandes e complexas estruturas corporais, no entanto, difere drasticamente entre os metazoanos. A maioria, se não todos, os animais do filo Cnidaria (hidras, anêmonas, corais, etc.) e o filo Porifera (esponjas-do-mar) possuem altas habilidades regenerativas, enquanto outros grupos, como o filo Nematoda (vermes nematelmintos), perderam todas as habilidades regenerativas em quase todos os tipos celulares.
Ascídias (classe Ascidiacea) são organismos incrustantes invertebrados que constituem uma parte importante da fauna bêntica (solo oceânico) de substratos consolidados, pertencentes ao subfilo Urochordata (Tunicata). A classe é a mais diversificada dentre os tunicados e estima-se um total de pelo menos 2869 espécies de ascídias distribuídas em 26 famílias. A posição filogenética das ascídias é como grupo irmão dos vertebrados.
As ascídias exercem várias funções ecológicas fundamentais, competindo por espaço, servindo de abrigo para vários outros organismos comensais e parasitas e constituindo um elo importante da teia alimentar. Algumas espécies de ascídias são inclusive consideradas bioindicadores de qualidade ambiental. Um número relativamente pequeno de espécies habita fundos inconsolidados de cascalho, areia ou lama, podendo inclusive apresentar grande redução de tamanho e inúmeras adaptações ao hábito de vida intersticial. Ascídias são encontradas desde a região entre marés até grandes profundidades, onde algumas espécies especializaram-se ao hábito carnívoro, capturando ativamente suas presas.
A maioria das ascídias solitárias se reproduzem sexualmente ao liberar gametas na água marinha para fertilização externa, enquanto espécies coloniais também se propagam via reprodução assexuada ou brotamento. Essas estratégias assexuais evoluíram de forma independente várias vezes ao longo da classe Ascidiacea, e envolvem uma variedade de mecanismos celulares.
Com um plano corporal simples, as ascídias possuem excepcionais habilidades regenerativas. As espécies coloniais são capazes de regenerar todo o corpo a partir de pequenos fragmentos de tecidos ou mesmo de células sanguíneas. Em contraste, algumas poucas espécies solitárias estudadas demonstram uma habilidade regenerativa bem mais limitada - como outros animais cordados sexuados -, e, no geral, só podem regenerar órgãos anteriores seguindo a remoção desses últimos, como os sifões e o complexo neural. Porém, fica sugerido que as espécies solitárias possuem as ferramentas genéticas e celulares de alta capacidade regenerativa conservadas durante as divergências evolutivas.
Existe uma alta correlação entre reprodução assexuada e robustas habilidades de regeneração. Essa forte correlação sugere caminhos moleculares e celulares similares entre ambos os processos. Evidências recentes têm mostrado que os processos regenerativos das ascídias solitárias e coloniais envolvem células pluripotentes e multipotentes.
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No novo estudo, pesquisadores resolveram investigar a extensão das habilidades de regeneração da espécie ascidiana Polycarpa mytiligera (ordem Stolidobranchia), a qual já havia previamente mostrado a anômala capacidade de regenerar tanto estruturas distais quanto órgãos internos, incluindo o sistema digestivo. Nesse sentido, eles coletaram várias ascídias individuais do Golfo de Eilat - localizado na ponta norte do Mar Vermelho, a leste da Península do Sinai e a oeste do território Árabe - para serem analisadas em laboratório.
Primeiro, os pesquisadores dissecaram os espécimes em duas partes, e, eventualmente, foi observado uma regeneração completa de sucesso em todas partes dissecadas, e sem qualquer dificuldade. O processo de regeneração da P. mytiligera mostrou ser dividido em três fases: (i) cura da lesão; (ii) aumento da proliferação celular na área lesionada; e (iii) morfogênese e formação de tecidos e órgãos. Em um experimento subsequente, os pesquisadores dissecaram várias dezenas de ascídias em três partes e sobre eixos corporais principais, deixando uma parte do corpo dos espécimes dissecados sem um centro nervoso, coração e parte do sistema digestivo. Para a surpresa dos pesquisadores, não apenas cada uma das partes cortadas sobreviveram por si só, como todos os órgãos foram regenerados em cada uma das três secções. Ao invés de uma ascídia, agora eram três.
Nunca antes haviam sido observadas tais capacidades regenerativas entre ascídias solitárias que se reproduzem sexualmente, em qualquer lugar do mundo. Análises filogenéticas indicaram próxima relação entre a P. mytiligera e espécies assexuadas de ascidianos coloniais, sugerindo um traço pré-adaptativo para o estilo de vida colonial ainda amplamente conservado. Isso também indica um provável cenário de transição evolutiva entre estabelecimento de programas de desenvolvimento assexuado (no caso, organismo colonial) e estabelecimento inicial de reprodução sexuada (organismo solitário) acompanhada ainda de alta habilidade regenerativa.
O achado traz, portanto, um novo e promissor modelo para pesquisas de regeneração e de desenvolvimento, particularmente na evolução da regeneração nos cordados e para potencial aplicação em tratamentos médicos.
(1) Publicação do estudo: https://www.frontiersin.org/articles/10.3389/fcell.2021.652466/full