Inseto roubou gene de planta para se proteger de tóxicos compostos planta-específicos
Em um estudo publicado no periódico Cell (1), pesquisadores reportaram o primeiro exemplo de uma transferência lateral de genes de uma planta para um inseto, no caso a espécie de mosca-branca Bemisia tabaci. O achado reforça a importância desse mecanismo de transferência genética nos processos evolutivos e ajuda a explicar poque esses insetos são tão bem adaptados como pragas na agricultura: o gene adquirido permite que o B. tabaci neutralize uma toxina que algumas plantas produzem para se defender contra insetos.
Durante mais de 400 milhões de anos de co-evolução com insetos herbívoros, plantas desenvolveram um espectro altamente diverso de defesas morfológicas, moleculares e bioquímicas para resistir aos ataques de insetos. Entre as defesas bioquímicas, metabólitos secundários das plantas representam as mais diversas e efetivas armas nesse sentido. Glicosídeos fenólicos, os quais são constituídos de uma unidade de açúcar ligada a um aglicona fenólica, estão entre os mais abundantes metabólitos secundários. Esses compostos fortemente afetam o crescimento, desenvolvimento e comportamento de insetos herbívoros. Enquanto que muitos insetos desenvolveram defesas contra glicosídeos fenólicos específicos – incluindo reaproveitamento desses compostos como estimulantes alimentares e de oviposição –, mecanismos que permitem insetos generalistas com um amplo espectro de plantas hospedeiras superarem os efeitos de vários glicosídeos fenólicos são desconhecidos.
A mosca-branca (Bemisia tabaci) engloba um complexo de pelo menos 30 espécies crípticas (espécies extremamente similares entre si), algumas das quais estão entre as mais devastadoras pragas de agricultura. Surtos desses insetos ocorrem frequentemente ao redor do mundo, e a B. tabaci pode seriamente reduzir o rendimento das plantações ao se alimentar do floema, transmitir mais de 100 vírus de plantas patogênicos, e excretar uma substância adocicada e pegajosa que serve como ambiente perfeito de crescimento para mofos. Essa espécie possui mais de 600 plantas hospedeiras já registradas, exibindo excepcional adaptabilidade aos hospedeiros, estes os quais, em sua maioria, produzem diferentes glicosídeos fenólicos.
No novo estudo, os pesquisadores usaram técnicas analíticas moleculares, bioquímicas, filogenéticas e de bioinformática, combinadas com experimentos in vivo, para mostrar que o genoma da B. tabaci carrega um gene planta-específico e horizontalmente transferido – chamado de BtPMaT1 – que codifica uma enzima maloniltransferase que possibilita a detoxificação de glicosídeos fenólicos. No caso, a enzima expressa anexa grupos malonilas aos glicosídeos fenólicos, tornando esses compostos quase que completamente inócuos (inofensivos).
Como o gene adquirido é exclusivo do gênero de moscas-brancas Bemisia, os pesquisadores estimaram que o processo de transferência lateral de genes ocorreu há cerca de 86 milhões de anos, durante a divergência do gênero Trialeurodes e provavelmente através do intermédio de um vírus. É possível que um vírus, ao se replicar dentro da célula de uma planta, possa ter misturado seu material genético com o gene BtPMaT1. Após serem ingeridos durante a alimentação de uma mosca-branca, os vírus carregando o BtPMaT1 podem ter transferido e integrado o gene roubado no genoma do inseto.
Esse é um evento extremamente improvável de acontecer, mas considerando milhões de anos e vários bilhões de insetos individuais, vírus e plantas ao longo do tempo, uma vez ou outra esse processo pode ocorrer. Se o gene adquirido fornece um benefício adaptativo para os insetos, esse será favorecido por seleção natural, aumentando progressivamente de frequência dentro da população.
Os pesquisadores acreditam que as plantas provavelmente usam o gene BtPMaT1 dentro das suas próprias células para armazenar seus compostos tóxicos de uma forma segura, prevenindo que a planta não seja intoxicada pelos seus próprio metabólitos secundários.
A significância evolucionária da transferência lateral de genes (ou transferência horizontal de genes) é amplamente reconhecida para procariontes (ex.: bactérias), mas nos últimos anos está ficando mais evidente que esse processo é uma importante força evolucionária entre os eucariontes (ex.: plantas, fungos, animais). Porém, os eventos até o momento conhecidos de transferência lateral de genes entre artrópodes envolviam doadores quase exclusivamente microbiológicos. [Para mais informações, acesse: Como nova informação genética é gerada durante o processo evolutivo?]
Mas o mais interessante e produtivo aspecto do estudo foi o desenvolvimento de uma pequena molécula de RNA que pode ser uma solução mais do que efetiva contra pragas de moscas-brancas. A molécula de RNA interfere com o gene BtPMaT1 dos insetos, e os pesquisadores geneticamente manipularam plantas do tomate para produzi-las. Em experimentos laboratoriais, quando moscas-brancas se alimentaram das folhas de tomates modificados (transgênicos) e ingeriram o RNA planta-produzido, o gene BtPMaT1 nos insetos foi efetivamente silenciado, causando 100% de mortalidade das moscas-brancas (através dos glicosídeos fenólicos), mas sem afetar outros insetos.
(1) Publicação do estudo: https://www.cell.com/cell/fulltext/S0092-8674(21)00164-1