O acordo "verde" da Europa é uma perigosa retórica para os biomas terrestres
No final de 2019, a Europa anunciou o 'Green Deal' ('Acordo Verde'), o qual estabelece que até o ano de 2050 o continente se tornará carbono neutro ("neutralidade climática"), ou seja, as emissões Europeias de gases do efeito estufa serão reduzidas - particularmente dióxido de carbono (CO2) e metano (CH4) - e também compensadas por medidas de fixação do carbono atmosférico, com o saldo final do balanço emissão-fixação zerado. Reflorestamento, agricultura, transporte ambientalmente amigável, reciclagem e energia renováveis serão promovidos. Desmatamento e queima de combustíveis fósseis serão drasticamente reduzidos. No entanto, esse cenário pode representar apenas uma 'camuflagem verde'. Em uma análise publicada recentemente na Nature (1) e realizada por cientistas do Instituto de Tecnologia Karlsruhe (KIT), os autores mostraram que o Green Deal na sua atual forma pode ser um péssimo acordo para o planeta, porque a União Europeia estaria compensando seus esforços 'verdes' ao promover uma maior taxa de importação de produtos agrícolas oriundos de países em desenvolvimento e subdesenvolvidos, e com isso fomentando sérios danos ambientais fora do seu território.
O Green Deal adotado pela Comissão Europeia visa transformar significativamente a agricultura na Europa nos próximos anos e contribuir para tornar esse continente o primeiro a alcançar a neutralidade climática. Já em 2030, cerca de 25% de todas as áreas agriculturáveis deverão ser cultivadas de forma orgânica. O uso de fertilizantes e de pesticidas será reduzido em 20% e 50%, respectivamente. Além disso, a União Europeia planeja plantar 3 bilhões de árvores, restaurar 25 mil quilômetros de rios e reverter o dramático processo de declínio das populações de polinizadores, especialmente abelhas. No entanto, enquanto todas essas medidas são mais do que bem-vindas, as importações Europeias continuam representando um grande problema nesse cenário.
Primeiro, a União Europeia (UE) depende pesadamente das importações agrícolas de outros países, e só a China importa mais nesse setor. No ano passado, o bloco Europeu importou 20% dos produtos agrícolas e mais de 10% da carne e dos laticínios consumidos dentro das suas fronteiras (118 megatoneladas e 45 megatoneladas, respectivamente). Cerca de 90% dos óleos de sementes (maior parte óleos de palma e de soja) consumidos na UE são importados de 8 países, principalmente do Brasil. Isso permite que os Europeus reduzam a produção agrícola para atender suas políticas internas de sustentabilidade e ao Green Deal, porém as importações agropecuárias que provavelmente irão aumentar ainda mais impõem pressões de produção em países subdesenvolvidos e em desenvolvimento que possuem leis ambientais menos estritas - como na África e na Ásia - ou leis mais rígidas que muitas vezes não são seguidas - como é o caso do Brasil, especialmente sob o novo governo Bolsonaro.
Nos últimos 18 meses, a UE assinou acordos (alguns pendendo ratificação) cobrindo quase metade das suas importações agrícolas - com os EUA, Indonésia, Malásia e o Mercosul (bloco econômico constituído por Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai). Pactos com a Austrália e com a Nova Zelândia estão em negociação. No entanto, cada uma dessas nações possuem entendimentos e compromissos bem distintos em relação a metas de sustentabilidade e de preservação ambiental. Vários deles usam pesticidas, herbicidas, excesso de fertilizantes e organismos geneticamente modificados (!) que são estritamente limitados ou proibidos na UE. Na verdade, a UE não apenas ignora esse fato, como explicitamente permite a presença de práticas agrícolas danosas ao meio ambiente em seus importados, com exceção de desmatamento ilegal. E mesmo nesse último quesito, pouco se faz para impor leis de restrição e punitivas.
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(!) O problema não é necessariamente o uso de plantas transgênicas, mas a resistência a níveis maiores de agrotóxicos suportados por esse cultivares. Por exemplo, 80% da soja nos EUA e no Brasil são super-resistentes ao glifosato, um herbicida altamente restrito na UE, mas usado em abundância nesses países. Para mais informações, acesse: Plantas geneticamente modificadas: A polêmica é ainda válida hoje?
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Por exemplo, entre 1990 e 2014, as florestas Europeias expandiram em 9%, uma área aproximadamente equivalente ao tamanho da Grécia (13 milhões de hectares). Em outros países fora da Europa, cerca de 11 milhões de hectares de floresta foram devastados durante esse mesmo período para a produção dos produtos agrícolas consumidos dentro da UE. É estimado que 75% do desmatamento estava ligado à produção de óleo de sementes no Brasil e na Indonésia - regiões de biodiversidade única e riquíssima e que contêm um dos maiores reservatórios de carbono (carbono fixado do CO2 atmosférico na estrutura das plantas) do mundo, algo muito importante para o controle climático.
Analisando o desmatamento no Cerrado e na Amazônia Brasileiras, a produtividade agrícola, e as exportações de soja e carne para a União Europeia, um estudo publicado em julho deste ano na Science (2) encontrou um grande rastro de crimes ambientais nesse comércio. Os pesquisadores estimaram que em torno de 20% da exportação de soja (~19 milhões de toneladas/ano) e pelo menos 17% da exportação de bife oriundos do Cerrado e da Amazônia estão contaminados com o desmatamento ilegal. Aliás, em 2017, apenas 13% da soja entrando na Europa era certificadamente livre de desmatamento.
Em outras palavras, os países membros da União Europeia estão apenas transferindo os danos ambientais para outros países, enquanto tomam crédito pelas políticas "verdes" em seus territórios. Apesar da União Europeia reconhecer que algumas novas legislações serão requeridas no setor comercial de importação, a curto prazo, nada irá mudar com o atual formato do Green Deal, segundo os autores da análise publicada na Nature.
Enquanto que o Green Deal possui ambiciosas metas dentro da Europa, o mesmo não ocorre com o comércio externo. Existe uma única política geral relevante nesse sentido, a Diretiva Revisada de Energia Renovável de 2018, a qual estipula, por exemplo, que os óleos de sementes como aqueles derivados da soja não devem ser comprados de áreas recentemente desmatadas. Porém, além de tal medida ser muito limitada - já que ignora a contínua produção em grandes áreas desmatadas antes de 2008 - tais requerimentos são cheios de brechas e pouco impingidos. Existe também limitação de mecanismos, dinheiro ou funcionários para fiscalizar os produtos que chegam nos portos Europeus.
No final, a Europa continua, na prática, em total silêncio sobre as políticas ambientais estrangeiras associadas aos seus produtos de interesse. Existe apenas advertência verbal por parte de líderes Europeus, mas nada disso culminando em sanções ou reais empecilhos comerciais. Signatários do pacto Mercosul-UE, por exemplo, concordam apenas em se esforçar para melhorar suas leis de proteção ambiental - e isso é aceito sem maiores contestações, mesmo com o atual governo Brasileiro explicitamente realizando um desmonte ambiental no seu território. No máximo houve pausa na remessa de recursos via Fundo Amazônia, este o qual é suportado pela Suécia e, em menor parte, pela Alemanha. No setor empresarial, o compromisso com a sustentabilidade continua voluntário - como a Amaggi, o maior produtor mundial de soja e a qual promove programas de sustentabilidade ambiental como o ProTerra para suas operações no Brasil - e longe da tendência prevalente.
AÇÕES NECESSÁRIAS
Para que o Green Deal seja realmente verde, os especialistas recomendam que a UE siga os seguintes passos:
- Harmonizar os padrões de sustentabilidade. A UE precisa alinhar e realçar os padrões ambientais tanto para a produção interna quanto para suas importações, desenvolvendo e promovendo um claro esquema de certificação e rotulação dos produtos. Apesar da UE não poder impor padrões em outros países, o bloco pode requerer que os produtos entrando no mercado Europeu atendam às suas regulações. Isso pode encorajar produtores externos a aumentar seus padrões aos níveis da UE. Alguns produtores aqui no Brasil já o fazem.
- Avaliação de impactos globais. A UE avalia alguns dos impactos do seu comércio agrícola sobre a sustentabilidade, incluindo desmatamento associado. Porém, não existe um padrão específico de comparação para esse comércio. O Green Deal precisa definir um padrão baseado nos atuais efeitos e estabelecer metas que vão além - assegurando grandes reduções no uso de fertilizantes, pesticidas, e outras práticas deletérias nas plantações, e evitando desmatamento e as emissões consequentes.
- Repelir ou reduzir a produção de bioenergia. As metas de energia renovável da EU, como a inclusão de 10% de biocombustível no diesel até o final deste ano (a caminho de ser atendida), têm sido um dos principais fomentadores no grande aumento das importações de soja do Brasil - cerca de 2% em 2019. A produção agrícola voltada para a produção de bioenergia causa extensivos impactos negativos (sociais e ambientais), incluindo desvio de terras que poderiam ser usadas para a produção de alimentos ou conservação de biodiversidade.
- Avaliar os rastros de carbono da Europa ao redor do mundo. Atualmente, cada cidadão da UE 'importa' cerca de 1 tonelada de dióxido de carbono anualmente equivalentes de produtos entrando no bloco. O Green Deal precisa reverter esse cenário, reforçando o rastreamento desse carbono, publicando as variações desse rastro e buscando diminuí-lo.
- Diminuir o consumo. O Green Deal precisa estar acompanhado de políticas que encorajem seus cidadãos a comer menos carne e laticínios, visando reduzir a necessidade de importações agrícolas (ex.: soja para a alimentação do gado). Essas políticas, no entanto, são difíceis de serem implementadas, tanto por motivos culturais quanto devido ao lobby do setor de carnes, e um maior esforço de planejamento nesse sentido é necessário.
- Aumentar a produção doméstica. Desde a década de 1990, uma série de políticas implementadas na Europa reduziram dramaticamente a produção de alimentos no continente. Algumas das terras abandonadas para esse fim - áreas com menos biodiversidade ou sem usos voltados para a agricultura - deveriam agora ser retornadas para o setor agrícola para reduzir a pressão produtiva nos trópicos. Apesar dessa orientação reduzir os estoques de carbono nas florestas, a biodiversidade e aumentar a poluição agrícola na Europa, os sistemas de agricultura e tecnologias associadas são altamente avançados nos países Europeus, com potencial de minimizar significativamente esses impactos ambientais e estes também sendo compensados ao reduzir a mais grave devastação ambiental em outros países. Mesmo sem o uso de modificações genéticas, a soja pode crescer mais produtivamente na Europa usando menos fertilizantes e menos terras do que em outros lugares; crescimento vertical de alimentos para verduras, frutas e tubérculos também é outra prática que pode ser adotada em maior extensão para diminuir ao máximo o uso de terras.
Até que esses comprometimentos extras ao Green Deal sejam cumpridos, as políticas ambientais propagandeadas pela UE continuarão sendo apenas retóricas. E o atual momento é mais do que promissor. Nos EUA, o potencial avanço para uma Economia Verde sob o governo Biden pode alterar nos próximos anos o péssimo comprometimento ambiental e climático do país Norte-Americano sob a administração Trump, e fortalecer as pretensões Europeias. Mas é preciso agir.
(1) Publicação da análise: https://www.nature.com/articles/d41586-020-02991-1
(2) Publicação do estudo: https://science.sciencemag.org/content/369/6501/246