Anticorpos contra o novo coronavírus parecem durar vários meses após infecção natural
Nos últimos meses, um número de casos de reinfecções pelo novo coronavírus (SARS-CoV-2) foram reportados, incluindo cinco deles cientificamente confirmados. Em Nevada, EUA, o caso reportado de reinfecção trouxe grandes preocupações, porque enquanto na primeira infecção o paciente desenvolveu um quadro leve de COVID-19, a segunda infecção progrediu para um quadro mais sério e necessitou de hospitalização (1). Somando-se a esse cenário, um número de estudo começaram a reportar durante o mesmo período significativas e rápidas quedas no nível de imunidade humoral (anticorpos) de indivíduos pós-recuperados (2), e que uma substancial fração daqueles infectados estavam se tornando anticorpos-negativos já no início do período de convalescência. Isso levou muitos a sugerirem que essas reinfecções podem estar ligadas a uma drástica redução da resposta dos anticorpos no pós-recuperação, levando preocupação também para as vacinas sendo desenvolvidas e testadas.
> Para mais informações, acesse:
- (1) Primeiro caso de reinfecção nos EUA e o paciente evoluiu para um quadro grave
- (2) Pacientes recuperados que continuam ou voltam a testar positivo são infecciosos?
Agora, três recentes e robustos estudos, analisando milhares de infectados com o SARS-CoV-2, trouxeram resultados indicando que os níveis de anticorpos antivirais não parecem declinar dentro de poucas semanas ou mesmo meses após a recuperação, como vinha sendo reportado por estudos prévios de pequeno porte e mais limitados.
No primeiro estudo, publicado no periódico The New England Journal of Medicine (Ref.1), pesquisadores analisaram amostras sorológicas de 30576 pessoas na Islândia, usando seis métodos para a determinação dos níveis de imunidade humoral (incluindo dois exames de pan-imunoglobulina [pan-Ig], para aumentar o leque de detecção e compensar a alta especificidade [99,8%]). Em seguida, foram testadas 2102 amostras coletadas de 1237 dessas pessoas até 4 meses após o diagnóstico por exame de qPCR (reação polimerase em cadeia). Por fim, foram medidos anticorpos em 4222 daqueles em quarentena que tinham sido expostos ao vírus e em 23452 pessoas que não sabiam ter sido expostas ao vírus.
Os resultados mostraram que entre 1797 pessoas que haviam sido recuperadas da infecção pelo SARS-CoV-2, 1107 das 1215 que foram testadas (91,1%) estavam soropositivas, e que níveis de anticorpos-específicos antivirais medidos pelos dois exames pan-Ig aumentaram durante 2 meses após o diagnóstico via qPCR e permaneceu em um platô (sem mudanças) pelo restante do estudo. Das pessoas em quarentena, 2,3% estavam soropositivas; daquelas com exposição desconhecida, 0,3% estavam positivas. Os pesquisadores estimaram que 0,9% dos Islandeses estavam infectados com SARS-CoV-2 e que a taxa de letalidade era de 0,3%. Enquanto que 14% daqueles em quarentena foram infectados, 30% daqueles fora da quarentena foram infectados.
Independentemente da duração a longo prazo da imunidade humoral, os pesquisadores concluíram que a Islândia está vulnerável a uma segunda onda de infecções. Eles também reforçaram que ainda é incerto se existe uma relação entre resposta de imunidade humoral ao SARS-CoV-2 e proteção contra reinfecção pelo vírus em humanos, apesar de tal relação ter sido comprovada em experimentos in vivo com macacos Rhesus.
Anticorpos para o SARS-CoV-2 podem visar várias das suas proteínas codificadas, incluindo antígenos estruturais e não-estruturais. Até o momento, duas proteínas têm sido utilizadas como antígenos alvos para os testes sorológicos. Uma é a abundante nucleoproteína (NP), a qual é encontrada dentro do vírus ou dentro das células infectadas. No entanto, devido à função biológica da NP e o fato dela estar protegida de anticorpos pelas membranas virais ou celulares, é improvável que os anticorpos NP possam diretamente neutralizar o SARS-CoV-2. A segunda proteína estrutural frequentemente usada como alvo para caracterizar a resposta imune ao SARS-CoV-2 é a proteína Spike (S), uma glicoproteína trimérica que contém o domínio de ligação do receptor (RBD). O RBD é usado pelo vírus para fusionar as membranas viral e celular e entrar na célula hospedeira.
Nesse sentido, no segundo estudo, publicado no periódico Science (Ref.2), pesquisadores usaram um teste para a detecção de anticorpos Spike-específicos chamado de 'Mount Sinai ELISA' para a análise de 30082 indivíduos testados positivos no Sistema de Saúde de Mount Sinai na Cidade de New York, EUA, entre 72401 indivíduos. Esse teste possui alta sensibilidade (92,5%) e especificidade (100%), assim como valores preditivos positivo e negativo de 100% e 99,6%, respectivamente.
Os pesquisadores encontraram que mesmo os indivíduos com COVID-19 leve-a-moderada experienciaram robustas respostas de anticorpos IgG contra a proteína S suficientes para neutralizar o vírus. Além disso, eles encontraram que os níveis de anticorpos Spike-específicos naqueles infectados permaneceram estáveis por um período de aproximadamente 5 meses e que esses anticorpos estavam significativamente correlacionados com a neutralização do SARS-CoV-2 em testes in vitro. O estudo também sugeriu que mais de 90% dos soroconvertidos produziram significativas respostas de anticorpos neutralizantes, cujos níveis permaneceram estáveis por vários meses.
No estudo, a resposta de anticorpos à proteína S naturalmente declinou ao longo de um período médio de 148 dias (~5 meses), em torno de 52%, mas mantendo níveis ainda significativos.
Ainda segundo os pesquisadores, um estudo prévio que encontrou rápido e preocupante declínio de anticorpos SARS-CoV-específicos em 40% de um grupo de indivíduos infectados assintomáticos analisou anticorpos NP, e apenas um único epítopo linear do Spike, potencialmente deixando escapar outros anticorpos Spike-específicos. Eles concluíram, portanto, que a estabilidade da resposta de anticorpos ao longo do tempo pode também depender o antígeno alvo.
Quando um vírus infecta células no nosso corpo, o sistema imune emprega células plasmáticas de vida curta que produzem anticorpos para imediatamente combater o vírus invasor. Esses anticorpos aparecem nos testes sanguíneos dentro de 14 dias da infecção. O segundo estágio da resposta imune é a produção (em menor escala) de células plasmáticas de vida longa, a qual produz anticorpos de alta qualidade que fornecem imunidade a longo prazo.
Seguindo a mesma estratégia do último estudo (foco na detecção de anticorpos para a proteína S), no terceiro estudo, publicado no periódico Immunity (Ref.3), pesquisadores analisaram 5882 voluntários sendo submetidos a testagem para a detecção de anticorpos no Condado de Pima, Arizona, EUA, com início em 30 de abril deste ano. Para essa análise, eles desenvolveram um teste sorológico capaz de detectar duas diferentes partes da proteína S: domínios S1 (RBD) e S2, com testes positivos sendo considerados apenas com a ocorrência de detecção para ambos os domínios. Foram também analisados anticorpos contra a proteína do nucleocapsídeo viral (proteína N).
Os resultados do estudo mostraram que a produção de anticorpos neutralizantes e Spike-específicos persistiu por pelo menos 5-7 meses. Já anticorpos nucleocapsídeos (proteína N-específicos) frequentemente se mostraram indetectáveis ao longo desse mesmo período. A produção de anticorpos se mostrou maior em casos severos da COVID-19 do que em casos leves.
Corroborando também o último estudo, os pesquisadores sugeriram que uma das explicações para as discrepâncias reportadas na literatura acadêmica referentes à durabilidade da imunidade humoral pode ser o fato de alguns estudos focarem na proteína N, e não na proteína S. Além disso, eles também sugeriram que anticorpos de curta duração podem estar sendo mais investigados ao invés de anticorpos de longa duração. Para reforçar essa linha de pensamento, os pesquisadores citaram, por exemplo, que indivíduos infectados no passado pelo coronavírus SARS-CoV-1 (responsável pela doença SARS) chegam a manter anticorpos SARS-CoV-específicos de longa duração por até 17 anos, e é esperado - extrapolação especulativa - que o SARS-CoV-2 mantenha um significativo nível de resposta humoral de longo prazo por pelo menos 2 anos na maior parte dos infectados.
Apesar dos três estudos demonstrarem que os níveis de anticorpos contra o SARS-CoV-2 produzidos pós-infecção permanecerem altos por longos períodos (meses) - em particular, anticorpos Spike-específicos, muito relevantes para as vacinas sendo testadas e importantes para a neutralização do vírus -, ainda é incerto se a infecção natural pelo novo coronavírus protege humanos de reinfecção e por quanto tempo dura essa proteção (seja humoral, seja celular). Em macacos Rhesus, primatas evolutivamente próximos da nossa espécie (Homo sapiens) e suscetíveis à infecção pelo SARS-CoV-2, a imunidade humoral e celular pós-infecção consegue protegê-los de reinfecção. Nesse sentido, em humanos, é provável que, pelo menos, a imunidade naturalmente adquirida diminua substancialmente o risco de uma nova infecção.
Importante também mencionar que à medida que mais pessoas vão sendo infectadas, cada vez mais pressão seletiva vai sendo colocada sobre as cepas virais circulantes do SARS-CoV-2, o que pode aumentar a prevalência de raras mutações visando evasão do sistema imune humano, como já reportado por um recente estudo publicado na mBIO (3). É sugerido, inclusive por estimativas calculadas pela Organização Mundial de Saúde (OMS), que em torno de 5-10% da população mundial já foi infectada pelo vírus. Isso reforça o alerta de que medidas de controle epidêmica precisam continuar sendo rigidamente aplicadas até a emergência de uma vacina efetiva. Processos evolutivos na proteína S do novo coronavírus possuem importantes implicações no desenvolvimento e performance das vacinas, assim como nos riscos de reinfecções.
(3) Leitura recomendada: Mutação tornou o novo coronavírus mais infeccioso e potencialmente mais transmissível
REFERÊNCIAS