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Excesso de uso do termo populismo está legitimando líderes da extrema direita

 

Em um estudo publicado recentemente no periódico Politics (Ref.1), pesquisadores do Departamento de Políticas, Linguagens & Estudos Internacionais da Universidade de Bath, Reino Unido, argumentaram que o uso pervasivo do termo populismo - fenômeno cunhado como 'hype populista' - teve sérias consequências ao ajudar a legitimar certos tipos de políticos, mais notavelmente na extrema direita, em ascensão em várias partes do mundo, especialmente na Europa. O estudo, em específico, focou em uma série de publicações do jornal Britânico The Guardian sobre o "novo populismo" iniciada em novembro de 2018 e com duração de seis meses, para explorar diferentes cenários de uso do termo na mídia.


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Existe uma concordância acadêmica que os movimentos populistas cresceram durante as últimas décadas na Europa, na América do Norte, na América do Sul e em outras regiões. No entanto, o significado exato de 'populismo' ainda é incerto e bastante volúvel dentro e especialmente fora do meio acadêmico. Em várias culturas políticas e linguagens, o termo populismo carrega conotações geralmente negativas, sendo frequentemente associado a movimentos nacionalistas e anti-imigratórios. Isso é contraditório ao background etimológico da palavra, derivada do Latim "populus" ("o povo"), associando-o a algo emancipativo ou empoderador.


No meio acadêmico existem duas básicas e centrais definições de populismo, uma entendendo o conceito como ideológico e outra como uma lógica política. 


Em termos de ideologia, o populismo considera a sociedade ultimamente separada em dois grupos homogêneos e antagonísticos - "o povo puro" e "a elite corrupta" -, e onde o bem-estar do "o povo" (moralmente puro e unificado) estaria sendo subjugado em prol dos interesses especiais de uma 'elite corrupta' (moralmente inferior). Nesse sentido, é um movimento que buscaria defender a expressão política como a vontade do povo (vontade geral). Porém, no contexto ideológico, o populismo seria uma ideologia "fina", só ganhando vida e propósito prático apenas quando combinado com ideologias mais encorpadas, "grossas", e bem estabelecidas como o Nacionalismo e o Socialismo. O líder populista, nesse contexto, é definido por alguns autores como tipicamente carismático e um auto-proclamado Messias, o qual busca ganhar a confiança e representar o revoltado e desorientado "povo".


Ainda no campo ideológico, é comum também caracterizar o populismo como um iliberalismo democrático, o qual falha em respeitar três dos mais fundamentais princípios do liberalismo político: o reconhecimento de múltiplas divisões na sociedade; a necessidade de tentar reconciliar tais divisões via acordos negociados e moderação política; e o comprometimento com as regras da lei e a proteção de todos os direitos minoritários. Essa caracterização acabaria gerando políticos populistas que tendem à confrontação, à polarização e ao 'extremismo político'.


Populismo como uma lógica política caracteriza um conceito defendido pela escola de pensamento Essex School e é explorado principalmente pelos trabalhos do teórico político Ernesto Laclau (On Populist Reason, 2005). Aqui, populismo seria a manifestação de uma lógica particular de 'articulação' na qual alegações e demandas anti-sistêmicas são trazidas juntas dentro de uma (relativamente) formação coerente contra-hegemônica ou 'cadeia equivalente'. Essa coalização seria suportada primeiro pela produção de elementos de causa (ex.: nomes, conceitos ou ideais privilegiados) para unir as demandas e, segundo, pela sua oposição ao inimigo comum. O populismo não seria definido como um conteúdo ideológico, mas por uma forma particular caracterizada pela 'lógica da equivalência'.


Enquanto que na conceitualização ideológica a emergência do populismo pressupõe um povo já buscando resistir às elites no poder, o populismo como lógica política emerge apenas a partir da ação de líderes e dos dispositivos retóricos (ex.: elementos de causa) para a formação do "o povo", ou seja, o "povo" só ganha coletividade política reconhecível quando uma série de demandas não-satisfeitas cristalizam-se e geram novas identidades políticas ao redor da qual os sujeitos podem se mobilizar.


Apesar das duas escolas de pensamento serem bem distintas em termos teóricos, ambas compartilham pilares centrais de ideias. Primeiro, ambas veem o populismo como uma forma de resistência ou oposição política que potencialmente impõe um sério desafio ao status quo, ao establishment. Segundo, ambas tendem a ver o líder populista como um personagem carismático e radical, mesmo conscientes de que isso não é uma regra.


De qualquer forma, o debate sobre o que é exatamente o populismo continua fervoroso no meio acadêmico, e esses dois modelos teóricos (ideológico e de lógica política) apresentam diversas limitações (Ref.5). Nesse ponto, fica óbvio que quando o tema é tratado pelo público leigo e pela mídia, 'populismo' acaba se transformando em um verdadeiro monstro de significados.


De fato, o termo populismo se tornou tão generalizado e caótico nos últimos anos, que o Dicionário Cambridge chegou a eleger o termo (populism) como a 'palavra do ano' em 2017, por representar um real fenômeno tanto local quanto global, envolvendo questões cada vez mais prevalentes na esfera política e social, como problemas imigratórios e comerciais, ressurgimento do nacionalismo, e descontentamento econômico. No meio acadêmico, o número de publicações contendo populismo como tema mais do que quadruplicou entre 2010 e 2019 quando comparado com o período de 2000-2009.


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No novo estudo, os pesquisadores resolveram explorar uma série investigativa de publicações iniciada pelo The Guardian em novembro de 2018 e intitulada 'The New Populism' (O Novo Populismo). A série durou seis meses e buscou responder quem eram os novos populistas, quais fatores os levaram ao poder, e o que eles estavam fazendo uma vez empossados. A série, segundo o editorial do jornal, foi uma resposta a um novo movimento político onde "líderes populistas estão agora governando países com uma população combinada de quase 2 bilhões de pessoas, e onde partidos populistas estão ganhando terreno em dezenas de outras democracias, várias delas na Europa" (Ref.1). 


Os autores do estudo classificaram o jornal como liberal e de centro-esquerda, e estenderam a análise de publicações sobre o populismo e líderes supostamente populistas além do período de seis meses da série, até 1 ano após a primeira publicação. No total, foram analisados 1548 artigos distintos do jornal com menção do termo populis* no título e/ou no conteúdo.


Na análise dos autores, eles argumentaram que o termo 'populismo' se tornou um guarda-chuva de atribuições para um amplo espectro de diferentes fenômenos e movimentos políticos, sociais e econômicos, indo desde o ambiente musical e da sétima arte, até o nacionalismo, protecionismo econômico e o racismo. Em particular, o termo se tornou um adjetivo comum usado para referenciar políticos da extrema direita e suas agendas que frequentemente englobam nacionalismo, racismo e movimentos anti-imigratórios (como pode ser observado na imagem abaixo). Nesse sentido, o uso exagerado do termo populismo - através de eufemismo e trivialização - acaba legitimando grupos políticos extremistas e abafando aspectos de grave prejuízo social associados, como o racismo e práticas xenofóbicas. E o uso cada vez mais frequente desse termo tanto no meio acadêmico quanto na mídia, assim como a cobertura desproporcionalmente muito maior de atores, movimentos e ideias associados, acaba amplificando o alcance desses grupos políticos.



Os autores veem o populismo como uma estratégia discursiva através da qual "o povo" é construído contra uma elite, algo que resume de forma simplificada os significados acadêmicos atribuídos ao termo. Nesse ponto, outro problema que surge ao ligar obsessivamente o "povo" à extrema direita é a ideia de que a luta contra as elites em poder é anti-democrática em sua forma, potencialmente legitimando políticos e elites corruptas em poder com a democracia. E ao associar excessivamente racismo, xenofobia e outros elementos de prejuízo social ao populismo, outros grupos/instituições não-associados à extrema direita mas que também sustentam práticas e ideias discriminatórias (ex.: racismo estrutural) acabam ficando em menor foco de atenção e sujeitos a menos críticas.


Em entrevista ao jornal da Universidade de Bath (Ref.7), um dos autores do estudo, Dr. Aurelien Mondon, explicou: "Enquanto [Donald] Trump, [Viktor] Órban ou [Marine] Le Pen podem de fato usar discurso populista para levar adiante uma versão construída do 'povo' contra uma 'elite', isso é apenas uma pequena parte das suas políticas, as quais se baseiam mais em outras ideologias ou ideias maiores como o ultra-conservadorismo, racismo, ou mesmo fascismo. Enquanto o populismo pode nos ajudar a entender a natureza discursiva de tais políticos, acaba fazendo pouco por si mesmo para explicar um mais amplo significado e potenciais consequências."


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Os pesquisadores também reforçaram que a crítica não vai apenas para o The Guardian ou à mídia em geral, mas também para o meio acadêmico, onde o termo populismo está sendo usado de forma excessiva e muitas vezes sem suficiente reflexão crítica ou cuidado ao aplicá-lo. Aliás, recentemente, emergiu inclusive o termo 'populismo médico' para caracterizar líderes irresponsáveis como Trump, Jair Bolsonaro e Rodrigo Duterte que usam discursos distorcidos visando diminuir a importância da pandemia, promover medicamentos 'milagrosos' sem respaldo científico, retirar suas responsabilidades sobre as vidas perdidas e fazer alegações médicas sem fundamento acadêmico (Ref.8).


REFERÊNCIAS

  1. https://journals.sagepub.com/doi/10.1177/0263395720955036
  2. https://link.springer.com/chapter/10.1007/978-3-030-43424-3_2 
  3. https://www.pnas.org/content/117/43/26703.short 
  4. https://content.sciendo.com/view/journals/nor/37/s1/article-p147.xml 
  5. https://www.tandfonline.com/doi/abs/10.1080/13569317.2020.1699712
  6. https://journals.sagepub.com/doi/abs/10.1177/0010414019879947
  7. https://www.bath.ac.uk/announcements/lazy-use-of-term-populist-has-helped-to-legitimise-far-right-politics/
  8. https://www.tandfonline.com/doi/abs/10.1080/17441692.2020.1807581

Excesso de uso do termo populismo está legitimando líderes da extrema direita Excesso de uso do termo populismo está legitimando líderes da extrema direita Reviewed by Saber Atualizado on novembro 02, 2020 Rating: 5

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