Tecido adiposo pode servir de reservatório para o novo coronavírus, sugere estudo
Karina Toledo | Agência FAPESP – Experimentos conduzidos na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) confirmam que o novo coronavírus (SARS-CoV-2) pode ser capaz de infectar células adiposas humanas e de se manter em seu interior. Esse dado pode ajudar a entender por que indivíduos obesos correm mais risco de desenvolver a forma grave da COVID-19.
Além de serem mais acometidos por doenças crônicas, como diabetes, dislipidemia e hipertensão – que por si só são fatores de risco –, os obesos teriam, segundo a hipótese investigada na Unicamp, um maior reservatório para o vírus em seu organismo.
“Temos células adiposas espalhadas por todo o corpo e os obesos as têm em quantidade e tamanho ainda maior. Nossa hipótese é a de que o tecido adiposo serviria como um reservatório para o SARS-CoV-2. Com mais e maiores adipócitos, as pessoas obesas tenderiam a apresentar uma carga viral mais alta. No entanto, ainda precisamos confirmar se, após a replicação, o vírus consegue sair da célula de gordura viável para infectar outras células”, explica à Agência FAPESP Marcelo Mori professor do Instituto de Biologia (IB) e coordenador da investigação.
Os experimentos com adipócitos humanos estão sendo conduzidos in vitro, com apoio da FAPESP, no Laboratório de Estudos de Vírus Emergentes (Leve). A unidade tem nível 3 de biossegurança, um dos mais altos, e é administrada por José Luiz Proença Módena, professor do IB e coordenador, ao lado de Mori, da força-tarefa criada pela Unicamp para enfrentar a pandemia (leia mais em agencia.fapesp.br/32861). Os resultados ainda são preliminares e não foram publicados.
Como explica Mori, não é em qualquer tipo de célula humana que o SARS-Cov-2 consegue entrar e se replicar de forma eficiente. Algumas condições favoráveis precisam estar presentes, entre elas uma proteína de membrana chamada ACE-2 (enzima conversora de angiotensina 2, na sigla em inglês) à qual o vírus se conecta para invadir a célula.
Nas comparações feitas in vitro, os pesquisadores da Unicamp observaram que o novo coronavírus infecta melhor os adipócitos do que, por exemplo, as células epiteliais do intestino ou do pulmão.
E a “dominação” da célula de gordura pelo vírus torna-se ainda mais favorecida quando o processo de envelhecimento celular é acelerado com uso de radiação ultravioleta. Ao medir a carga viral 24 horas após esse procedimento, os pesquisadores observaram que as células adiposas envelhecidas apresentavam uma carga viral três vezes maior do que as células “jovens”.
“Usamos a radiação UV para induzir no adipócito um fenômeno conhecido como senescência, que ocorre naturalmente com o envelhecimento. Ao entrarem em senescência, as células expressam moléculas que recrutam para o local células do sistema imune. É um mecanismo importante para proteger o organismo de tumores, por exemplo”, explica Mori.
O problema, segundo o pesquisador, é que tanto nos indivíduos obesos como nos idosos e nos portadores de doenças crônicas as células senescentes começam a se acumular no tecido adiposo, tornando-o disfuncional. Tal fato pode resultar no desenvolvimento ou no agravamento de distúrbios metabólicos.
Ainda de acordo com Mori, o envelhecimento acelerado do adipócito induzido pela radiação UV mimetiza o que costuma ocorrer no tecido adiposo de indivíduos obesos e nos idosos.
“Recentemente, começaram a ser testados em humanos alguns compostos capazes de matar células senescentes: são as chamadas drogas senolíticas. Nos experimentos com animais, esses compostos se mostraram capazes de prolongar o tempo de vida e reduzir o desenvolvimento de doenças crônicas associadas ao envelhecimento”, conta Mori.
O grupo da Unicamp teve então a ideia de testar o efeito de algumas drogas senolíticas no contexto da infecção pelo SARS-CoV-2. Em experimentos feitos com células epiteliais do intestino humano, observou-se que o tratamento reduziu a carga viral das células submetidas à radiação UV.
“Alguns compostos chegaram a inibir em 95% a presença do vírus. Agora pretendemos repetir o experimento usando adipócitos”, conta Mori.
Até o momento, foram usados nos testes adipócitos diferenciados in vitro a partir de um tipo de célula-tronco mesenquimal (pré-adipócito) isolada de pacientes não infectados e submetidos a cirurgia bariátrica. Após a diferenciação, as células foram expostas a uma linhagem do novo coronavírus isolada de pacientes brasileiros e cultivada em laboratório por pesquisadores do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo (leia mais em: agencia.fapesp.br/32692).
As etapas seguintes da pesquisa incluem a análise de adipócitos obtidos diretamente de pacientes com diagnóstico confirmado de COVID-19, obtidos por meio de biópsia. “Um dos objetivos é avaliar se essas células encontram-se de fato infectadas pelo SARS-CoV-2 e se o vírus está se replicando em seu interior.
Também serão conduzidas análises de proteômica para descobrir se a infecção pelo SARS-CoV-2 afeta o funcionamento do adipócito e se deixa alguma sequela de longo prazo na célula. Essa etapa da pesquisa será feita em colaboração com o professor do IB-Unicamp Daniel Martins de Souza.
“A ideia é comparar todas as proteínas que estão expressas nas células com e sem o vírus. Desse modo, conseguimos identificar as vias de sinalização que são alteradas pela infecção e como isso impacta o funcionamento celular”, explica Mori.
Envelhecimento precoce
No Departamento de Bioquímica e Biologia Tecidual do IB-Unicamp, Mori tem se dedicado nos últimos anos a estudar a biologia do envelhecimento. Em seu projeto atual, o pesquisador investiga por que idosos e pessoas com doenças associadas ao envelhecimento são mais suscetíveis às complicações da COVID-19.
“Esse achado de que adipócitos senescentes apresentam maior carga viral aponta um possível link entre doenças metabólicas, envelhecimento e maior severidade da COVID-19”, avalia o pesquisador.
No entanto, ainda não se sabe se a carga viral é mais elevada nessas células porque elas se tornam mais facilmente infectáveis quando expostas ao SARS-CoV-2 em cultura ou se a quantidade de vírus que entra é a mesma, mas o patógeno consegue se replicar mais. “Precisamos fazer novos experimentos e acompanhar a evolução da carga viral ao longo do tempo”, explica Mori.
Caso se confirme que o vírus causa algum tipo de impacto metabólico no adipócito, afirma Mori, as implicações poderão ser grandes. “As células de gordura têm um papel muito importante na regulação do metabolismo e na comunicação entre vários tecidos. Elas sinalizam para o cérebro quando devemos parar de comer, sinalizam para o músculo quando é preciso captar a glicose presente no sangue e atuam como um termostato metabólico, dizendo quando há necessidade de gastar ou armazenar energia. Pode ser que o vírus interfira nesses processos, mas por enquanto isso é apenas especulação”, diz o pesquisador.
Esses aspectos estão sendo investigados em parceria com o pesquisador Luiz Osório Silveira Leiria, professor da Faculdade de Medicina de Ribeirão Peto (FMRP-USP). Leiria coordena um projeto – apoiado pela FAPESP – que tem como objetivo descobrir o papel de determinados lipídeos no controle da inflamação causada no organismo pelo SARS-CoV-2.
“A pesquisa também conta com uma ampla rede de colaboradores que integram a Força-Tarefa Unicamp Contra a COVID-19”, ressalta Mori.
> Este texto foi originalmente publicado por Agência FAPESP de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o original aqui.