Atividade auditiva ainda presente nos músculos vestigiais das orelhas humanas, apontam estudos
- Atualizado no dia 1 de fevereiro de 2025 -
Muitos mamíferos, incluindo cães, gatos e várias espécies de primatas, movem prontamente as orelhas para melhor focar a atenção em um novo ou específico som ou estímulo relevante no ambiente. Até o momento, porém, era incerto se os humanos modernos (Homo sapiens) e outros primatas hominídeos também possuíam essa habilidade em alguma extensão, mesmo se pouco perceptível. Algumas pessoas são capazes de mover voluntariamente as orelhas (ex.: movimentos para frente e para trás), sugerindo que alguns dos circuitos cerebrais e músculos que permitem movimentos automáticos das orelhas na direção de sons ainda estão presentes. Isso pode ser uma "característica vestigial", uma habilidade ou traço que é mantido mesmo não servindo mais para seu propósito original.
Nesse sentido, em um estudo publicado em 2020 no periódico eLife (Ref.1), pesquisadores demonstraram pela primeira vez que nós fazemos pequenos, rápidos e inconscientes movimentos nas nossas orelhas que são direcionados para a fonte de som que queremos focar nossa atenção. A descoberta foi feita ao se medir sinais elétricos nos músculos do sistema motor vestigial na orelha humana e aponta para um "fóssil neural" ainda preservado no nosso cérebro para a atividade de movimentar as orelhas. E um estudo mais recente publicado no periódico Frontiers in Neuroscience (Ref.2) mostrou que a atividade do músculo auricular superior (SAM) aumentava de forma significativa em resposta a intensos esforços de concentração auditiva, apontando novamente para um sistema vestigial de orientação das orelhas durante tarefas auditivas.
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Nós e os outros primatas hominídeos (chimpanzés, bonobos, gorilas e orangotangos) perdemos a habilidade de mover a parte mais externa do aparelho auditivo para focar sons. No máximo, muitos já devem ter observado, algumas poucas pessoas conseguem mover a orelha de modo aleatório, fenômeno que aponta para um óbvio sistema motor vestigial associado ao processo evolucionário. A habilidade de rotacionar as orelhas e apontá-la para direções diversas entre os primatas parece ter sido perdida durante a transição de um estilo de vida primariamente noturno de prossímios - antiga subordem de primatas (Prosimii) - para um diurno dos macacos do Novo Mundo (Platyrrhini), e, então para os macacos do Velho Mundo (Cercopithecidae). A mobilidade da orelha continuou em declínio à medida que as orelhas se tornaram mais curtas e mais rígidas. A musculatura, eventualmente, degenerou.
Para exemplificar essa transição, um músculo auricular inferior para opor o músculo bilateral superior ainda existe em primatas de ordens inferiores como gibões, mas não em chimpanzés.
Quando os movimentos de orientação da orelha se tornaram muito pequenos para modificar substancialmente os sons captados, possivelmente há 25 milhões de anos quando primatas de ordens inferiores divergiram em relação aos macacos do Velho Mundo, pressões seletivas ambientais cessaram (!). Com isso, o sistema neural responsável por esses movimentos se tornou praticamente "congelado", por ser otimizado para controlar orelhas mais altas, flexíveis e associadas a cabeças menores e mais esféricas. Nesse contexto, sempre foi sugerido que esse sistema neural ainda está presente nos humanos, permitindo inclusive reações de reflexo responsáveis pelo movimento automático das orelhas para um novo som no ambiente, como observado em vários animais. Isso é reforçado pela presença de músculos degenerados e vestigiais ainda associados à orelha e sem funcionalidade.
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(!) Uma possível explicação para essa progressiva perda de pressão seletiva pode ser o fato de que os primatas foram se tornando muito mais proficientes com os sistemas visual e vocal. Por exemplo, diferente da vasta maioria de mamíferos, humanos e muitos outros primatas possuem um sistema visual tricromático, capaz de distinguir as cores vermelha, verde e laranja no ambiente.
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No estudo de 2020, os pesquisadores mostraram - via experimentos eletromiográficos e simulações computacionais - que movimentos vestigiais dos músculos degenerados ao redor da nossa orelha (músculos auriculares posterior, anterior, superior e transverso) indicam, de fato, a direção do som específico que uma pessoa está prestando atenção. Nos experimentos, voluntários humanos tentaram ler um livro entediante enquanto sons emergindo de surpresa no ambiente, como um barulho de engarrafamento, um choro de bebê ou passos eram tocados em certos momentos. Durante esse exercício, os pesquisadores registraram a atividade elétrica nos músculos das orelhas para ver se elas se moviam como resposta para a direção da origem do som. Em um segundo conjunto de experimentos, os mesmos registros elétricos foram feitos enquanto os participantes ouviam a um podcast e ao mesmo tempo em que um segundo podcast estavam sendo tocado de uma direção diferente. Os padrões de movimentação da orelha dos indivíduos também foram registrados usando vídeos de alta resolução.
Os resultados dos experimentos revelaram pequenos movimentos involuntários nos músculos ao redor da orelha - e maior nível de atividade nervosa - mais próximos da direção do som que a pessoa estava ouvindo mais atentamente. Quando os participantes tentavam ouvir a um podcast e ignoravam o outro, eles também faziam distintos movimentos de elevação da orelha na direção do podcast preferido, similar ao observado, por exemplo, em cães e gatos. O fomento neural registrado para os músculos da orelha foi tão fraco que os movimentos de reflexo observados são pelo menos uma ou duas ordens de magnitude menores quando comparados com aqueles gerados durante o ato de morder, sorrir e fazer careta.
Em outras palavras, o estudo trouxe forte e clara evidência que o nosso cérebro retém, em forma de vestígio evolutivo, os circuitos neurais responsáveis pela orientação e reflexos automáticos da orelha durante modos de atenção tanto endógenos quanto exógenos. Apesar de não terem mais utilidade nos humanos, esses movimentos e circuitos neurais são mais um registro de herança dos nossos ancestrais mamíferos.
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No estudo mais recente, pesquisadores resolveram usar novamente EMG para investigar em 20 participantes a possibilidade de que a atividade nervosa nos músculos auriculares reflete também esforços auditivos em geral. No estudo prévio, foi mostrado que os maiores músculos auriculares - músculos auriculares posterior (PAM) e superior (SAM) - reagem durante audição atentiva. Como esses músculos movem a orelha para cima e para trás, eles são considerados prováveis de estarem envolvidos no movimento das orelhas para a captura otimizada de sons nos nossos ancestrais.
Para testar se esses músculos estão mais ativos durante tarefas auditivas mais difíceis, os pesquisadores aplicaram eletrodos nos 20 participantes - nenhum deles com problemas auditivos - e os expuseram ao áudio de um livro (audiobook) e a sons distrativos de podcasts a partir de autofalantes situados atrás (180°) e na frente (0°) do ouvinte. Cada participante foi submetido a testes de 12 minutos cobrindo três diferentes níveis de dificuldade. No modo fácil, os sons de podcast eram mais baixos do que aqueles do audiobook. Nos modos mais difíceis, os sons de podcasts foram aumentados e incluíam sonoridades similares ao audiobook.
Analisando a atividade dos músculos auriculares e os esforços auditivos dos participantes durante os experimentos, os pesquisadores encontraram que o músculo SAM, na média, era ativado significativamente mais nas condições sonoras mais desafiadoras e que requeriam os maiores esforços auditivos. Isso aponta mais uma vez que a atividade do SAM é uma resposta do sistema vestigial de orientação física da orelha tentando mudar a forma dessa estrutura ou do canal auditivo. Esse padrão de atividade pode também fornecer uma medida objetiva de esforço auditivo. Nesse último ponto, porém, não é claro se essa atividade muscular ainda ajuda de alguma forma na audição humana.
O estudo experimental também encontrou significativa atividade do músculo PAM para estímulos sonoros vindos de trás do ouvinte, mas não para um maior esforço auditivo.
Além de trazer mais uma evidência de vestígio da nossa ancestralidade e um melhor entendimento da anatomia humana, os achados desses estudos fornecem também ferramentas para importantes aplicações biotecnológicas. Esses pequenos movimentos automáticos dos músculos da orelha - e atividade nervosa associada - podem ser usados, por exemplo, para o desenvolvimento de melhores dispositivos de auxílio auditivo que sentem a atividade elétrica nesses músculos e amplificam os sons que a pessoa está tentando focar, enquanto minimiza outros.
REFERÊNCIAS
- Strauss et al. (2020). Vestigial auriculomotor activity indicates the direction of auditory attention in humans. eLife. https://doi.org/10.7554/eLife.54536
- Schoeer et al. (2024). Electromyographic correlates of effortful listening in the vestigial auriculomotor system. Frontiers in Neuroscience, Volume 18. https://doi.org/10.3389/fnins.2024.1462507
Atividade auditiva ainda presente nos músculos vestigiais das orelhas humanas, apontam estudos
Reviewed by Saber Atualizado
on
julho 08, 2020
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