Hidroxicloroquina não previne COVID-19 após infecção, sugere estudo
Em meio à preocupante pandemia do novo coronavírus (SARS-CoV-2), diversas pesquisas vêm sendo realizadas na busca por um medicamento ou terapia efetiva para tratar os pacientes desenvolvendo a doença associada (COVID-19). No entanto, por enquanto, o único medicamento com sólida evidência científica preliminar de moderada eficácia terapêutica é o Remdesivir (I). Nesse sentido, em paralelo, busca-se também por medidas farmacêuticas profiláticas que possam complementar as medidas não-farmacêuticas visando prevenir a infecção pelo SARS-CoV-2 ou impedir que a infecção progrida para o desenvolvimento da COVID-19. O método profilático ideal seria uma vacina, porém esta está longe ainda de estar disponível em massa para o público. Porém, é especulado que certos antivirais possam também cumprir um papel profilático caso administrados no início da exposição viral. Uma dessas apostas é a polêmica hidroxicloroquina (II).
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(I) Para mais informações, acesse: Remdesivir mostrou substancial eficácia clínica no tratamento da COVID-19
(II) Leitura complementar, incluindo meta-análises e revisões sistemáticas, sobre as evidências científicas acumuladas: Cloroquina e hidroxicloroquina são efetivos contra o novo coronavírus?
> Observação: A cloroquina praticamente já não é mais usada em estudos clínicos visando pacientes com COVID-19, apenas a hidroxicloroquina. Além de mostrar uma eficácia antiviral in vitro três vezes menor contra o novo coronavírus (SARS-CoV-2), esse fármaco é 40% mais tóxico do que a hidroxicloroquina.
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Para pessoas que são expostas ao vírus, a recomendação padrão é que o indivíduo fique sob observação e quarentena. É ainda incerto se a hidroxicloroquina pode realmente prevenir infecção sintomática após a exposição ao SARS-CoV-2. Porém, mesmo sem mínimo suporte científico para o uso profilático desse medicamento, muitos estão já tomando a hidroxicloroquina sem nenhuma orientação médica para supostamente prevenir a COVID-19. O caso mais notável foi o do presidente Donald Trump, o qual afirmou publicamente - e sob pesadas críticas das agências de saúde Norte-Americanas - que estava tomando o medicamento como forma de prevenção.
Mas além da profilaxia, um número de médicos, pesquisadores e pessoas no público em geral vinham também argumentando que a eficácia da hidroxicloroquina não seria vista em pacientes já hospitalizados (quadro severo ou não), e, sim, na administração o mais cedo possível do medicamento.
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Nesse sentido, buscando avaliar essa questão do uso profilático da hidroxicloroquina, um estudo de alta qualidade e de grande porte publicado no periódico The New England Journal of Medicine (1) analisou 821 participantes adultos assintomáticos ao longo dos EUA e do Canadá. O estudo foi conduzido de forma randomizada, duplo-cego, e placebo-controlada. Todos os participantes tinham sido expostos no ambiente doméstico ou de trabalho a alguém com COVID-19 a uma distância inferior a ~2 metros e por mais de 10 minutos enquanto não estavam usando nem máscara facial nem protetor ocular (exposição de alto-risco) ou enquanto estavam usando uma máscara facial mas sem protetor ocular (exposição de moderado risco). No geral, 87,6% dos participantes (719 de 821) reportaram uma exposição de alto-risco a um indivíduo com COVID-19.
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(III) Leitura recomendada: Estudo revela a real eficácia de métodos individuais de proteção contra a COVID-19
Dentro de 4 dias após a exposição, os pesquisadores aleatoriamente administraram ou placebo ou hidroxicloroquina (800 mg uma vez, seguido por 600 mg 6 a 8 horas depois, então 600 mg diariamente por mais 4 dias) ao longo de 5 dias. Eles buscaram avaliar, principalmente, se houve incidência ou de COVID-19 confirmada por laboratório ou de doença compatível com a COVID-19 dentro de 14 dias. O regime de doses foi escolhido com base em simulações farmacocinéticas visando alcançar concentrações no plasma acima da concentração máxima efetiva in vitro de inibição do SARS-CoV-2 por 14 dias. O placebo administrado simulou tabletes de hidroxicloroquina só que feitos com folato (inertes).
Os resultados mostraram que a incidência de doença compatível com COVID-19 não diferiu significativamente entre participantes recebendo hidroxicloroquina (49 de 414 [11,8%) e aqueles recebendo placebo (58 de 407 [14,3%]). Efeitos colaterais foram mais comuns no grupo recebendo hidroxicloroquina (40,1%) do que naqueles com placebo (16,8%), mas nenhuma séria reação adversa foi reportada. Os mais frequentes efeitos colaterais foram náusea, desconforto abdominal e fezes mais soltas. A severidade média dos sintomas nos participantes que estavam sintomáticos no 14° dia pós-exposição foi - em uma escala de 0 a 10 - de 2,8 dias no grupo recebendo hidroxicloroquina e de 2,7 no grupo recebendo placebo.
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Os pesquisadores concluíram que após exposição de alto-risco ou de moderado-risco ao SARS-CoV-2, hidroxicloroquina não preveniu doença compatível com a COVID-19 ou infecção confirmada quando usada como profilaxia pós-exposição dentro de 4 dias após a exposição.
Existe um número de limitações no estudo, incluindo moderada aderência ao seu percurso completo por cerca de 20-25% dos participantes (um número maior de desistentes no grupo tratado com hidroxicloroquina por causa de efeitos colaterais) - apesar disso não ter alterado a conclusão geral dos autores -, e o fato de que poucos participantes foram efetivamente testados para infecção com o SARS-CoV-2, com o quadro de COVID-19 sendo extrapolado pelos sintomas observados (mas ainda assim com a maior parte sendo provavelmente a doença em meio ao contexto pandêmico e à exposição de alto risco reportada em quase 90% dos participantes). Reforça o estudo a natureza randomizada, de duplo-cego e placebo-controlada.
Mesmo com as limitações, o estudo é de extrema importância como evidência visando orientar as melhores estratégias para a prevenção da COVID-19. Caso o efeito profilático da hidroxicloroquina contra o SARS-CoV-2 fosse robusto ou mesmo moderado, provavelmente teríamos isso acusado na análise do estudo.
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ATUALIZAÇÃO (09/06/20): Em anúncio prévio para a Science, o pesquisador líder de um estudo clínico randomizado de grande porte na Espanha, envolvendo mais de 2300 pessoas expostas ao novo coronavírus (SARS-CoV-2), não encontrou benefício clínico da hidroxicloroquina em frear o desenvolvimento da doença (COVID-19) na forma de profilaxia pós-exposição. As doses usadas foram 800 mg no primeiro dia e mais seis dias com doses de 400 mg. Isso reforça o achado no estudo publicado na The New England Journal of Medicine. Para acessar o estudo sendo conduzido na Espanha, acesse: https://clinicaltrials.gov/ct2/show/NCT04304053.
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ALERTA REFORÇADO
Em um estudo separado, publicado no The American Journal of Medicine (2), pesquisadores da Universidade Atlântica da Flórida alertaram que a prescrição da hidroxicloroquina ou da cloroquina visando a COVID-19 - com ou sem o uso de azitromicina - deveria ser suspenso até que evidências de estudos clínicos randomizados de grande porte estivessem disponíveis para esclarecer a real eficácia clínica desses fármacos para o tratamento de pacientes com COVID-19. Qualquer prescrição deveria ser restrita apenas para uso compassivo.
Os pesquisadores focaram o estudo na população Norte-Americana e encontraram que as prescrições para ambos os medicamentos no país aumentaram em 9 vezes quando comparado com os últimos vários anos. Eles mostraram que o amplo e exagerado uso está levando à escassez desses fármacos para pacientes com lúpus e artrite reumatoide, aos quais a hidroxicloroquina é realmente necessária. Muitos desses pacientes não estão conseguindo repor suas prescrições.
No dia 4 de abril de 2020, o presidente Trump publicamente disse [referente à hidroxicloroquina]: "O que você tem a perder? Tome, eu realmente acho que as pessoas deveriam tomá-la." Durante as próximas 24 horas, as prescrições tanto da hidroxicloroquina quanto da cloroquina subiram 46 vezes acima dos padrões normais.
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Os pesquisadores também realçaram que os reais riscos desses medicamentos podem estar sendo subestimados. Os dados clínicos de segurança desses medicamentos são derivados de décadas de prescrições para pacientes com lúpus e artrite reumatoide, e ambas as condições são mais prevalentes em mulheres mais jovens e de meia idade, cujos riscos de complicações cardíacas devido à hidroxicloroquina são bem baixos. Em contraste, a maior parte dos pacientes hospitalizados com COVID-19 são idosos, os quais, naturalmente, são mais suscetíveis a problemas cardiovasculares.
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> É válido também lembrar que a cloroquina e principalmente a hidroxicloroquina exercem fortes efeitos imunossupressores que podem ajudar ou atrapalhar o corpo durante a infecção do SARS-CoV-2. Além disso, indivíduos deficientes no gene G6PD correm mais risco de desenvolver complicações no sangue com o uso desses fármacos. Para mais informações, acesse a referência II.
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Por fim, os pesquisadores reforçaram mais uma vez que não existe comprovação científica de eficácia desses medicamentos para o tratamento da COVID-19 e que as evidências acumuladas até o momento - apesar de limitadas - não são otimistas.
(1) Publicação do estudo: NEJM
(2) Publicação do estudo: AJM
Hidroxicloroquina não previne COVID-19 após infecção, sugere estudo
Reviewed by Saber Atualizado
on
junho 03, 2020
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