Símbolo feminista, Merit Ptah nunca existiu, segundo novo estudo
Por décadas, uma antiga Egípcia chamada de Merit Ptah tem sido celebrada como a primeira médica e cientista mulher do mundo e um grande exemplo a ser seguido por mulheres querendo entrar na medicina. No entanto, em um estudo investigativo publicado no periódico Journal of the History of Medicine and Allied Sciences (1), o pesquisador Jakub Kwiecinski, da Escola de Medicina da Universidade do Colorado (Anschutz Medical Campus), concluiu que nunca existiu tal mulher no Antigo Egito e que sua história é um exemplo de como concepções erradas podem se espalhar.
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Nas últimas décadas, as mulheres têm conquistado importantes direitos e maiores oportunidades em diversos campos da ciência - especialmente nas ciências exatas e médicas - ao redor do mundo Ocidental. No entanto, elas continuam ainda sub-representadas em diversos setores acadêmicos, especialmente entre as minorias étnicas e 'raciais'. Os avanços conquistados para uma sociedade mais igualitária entre os gêneros devem, em grande parte, aos movimentos feministas do século XIX. Para o fomento desses movimentos, feministas também buscaram inspiração em histórias populares sobre mulheres do passado que tiveram grande impacto na ciência. Algumas dessas histórias, porém, não têm sido satisfatoriamente investigadas por acadêmicos historiográficos.
Nesse sentido, de forma notável, temos a figura de Merit Ptah, bastante referenciada em livros populares sobre medicina e em sites da internet. A maior parte das informações sobre essa alegada figura histórica afirmam que Merit Ptah ("Amada do Deus Ptah") viveu no Antigo Egito durante o Velho Reino, ao redor de 2700-2730 a.C. Seu filho, um alto sacerdote, chamava ela de "Médica Chefe" em inscrições na sua tumba no Vale dos Reis. Portanto, de acordo com essas alegações, ela não apenas seria a primeira médica no registro histórico como também teria sido a primeira mulher líder de um sistema de saúde.
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Nesse sentido, no novo estudo, Kwiecinski resolveu investigar mais a fundo essa história, especialmente porque, apesar da figura de Merit Ptah ser amplamente disseminada por tantos veículos de mídia popular, seu nome não é mencionado em trabalhos acadêmicos de Egiptologia, o que levantou forte suspeita.
Kwiecinski primeiro descobriu que a mais antiga autora mencionando Merit Ptah foi Kate Campbell Hurd-Mead (1867-1941), uma médica, historiadora de medicina e ativista dos EUA. Aproveitando a onda de ascensão feminista, Hurd-Mead realizou um trabalho realçando as contribuições das mulheres na história da medicina ao redor do mundo, lançando um livro bastante popular sobre o tema. No entanto, no seu trabalho de pesquisa, parece que a autora acabou distorcendo acidentalmente a história por trás da suposta Merit Ptah. Em seu livro, ela descreve Merit Ptah como a primeira médica do mundo, e a qual viveu ao redor de 2730 a.C., durante o reino de uma rainha chamada Neferirika-ra.
Segundo Kwiecinski, 'Merit Ptah' de fato é um nome que existiu no Velho Reino (2575-2150 a.C.), mas que nunca apareceu associado com curandeiros do Antigo Egito, mesmo em casos controversos. Esse nome também é ausente da lista de mulheres administradoras do Velho Reino. Além disso, a alegada história do filho deixada em uma tumba no Vale dos Reis também não consta nos registros históricos, e apenas um número limitado de tais tumbas existiram na Necrópole de Theban.
E é aqui que vem a provável fonte de criação para a personagem. Existiu uma mulher do Antigo Egito que carregava grandes semelhanças com a figura de Merit Ptah. Em 1929-1930, durante escavações em Giza, arqueólogos revelaram a tumba de Akhethetep, um cortesão do Velho Reino. Dentro da tumba, havia uma falsa porta que trazia retratado uma mulher chamada 'Peseshet', presumivelmente a tumba da sua própria mãe, a qual era descrita como "Inspetora das Mulheres Curandeiras". A tumba foi datada da Quinta/Sexta Dinastia (2401-2001 a.C.). Peseshet e Merit Ptah vieram do mesmo período, ambas possuíam um título administrativo em uma hierarquia médica e ambas foram mencionadas nas tumbas dos seus filhos, os quais eram altos oficiais sacerdotais. Porém, uma é real, a outra não.
Em outras palavras, Hurd-Mead certamente misturou o nome de ambas, junto com as datas e localizações. Além disso, acabou confundindo o nome do governante e quando ele governou. Não era uma rainha (Neeririka-ra), era um rei (Neferirkare), cujo reinado se estabeleceu em ~2475-2455 a.C. Ou seja, a autora fez uma grande confusão nessa parte, talvez por causa de fontes incompletas como referência.
Por causa do apelo popular ao Antigo Egito - período e região associados com grandes lendas e mistérios - e nome de uma autora de peso por trás da história (associado a um livro bastante popular e apaixonado), o mito de Merit Ptah acabou ganhando grande alcance, se disseminando de forma parecida com as Fake News hoje. Na década de 1970, Ptah ganhou ainda mais fomento por historiadoras amadoras. Merit Ptah inclusive constava na Wikipédia até essa semana como uma real figura histórica. Inúmeras publicações não acadêmicas desde então - incluindo inúmeros livros populares - acabaram oficializando a personagem como real.
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Existiu de fato uma curandeira no Antigo Egito, Peseshet, com uma história similar, porém, mais de 300 anos mais recente que a aparentemente imaginária Merit Ptah. É válido também lembrar que o Egito Antigo, na sua essência, era uma sociedade patriarcal, e eram poucas as mulheres que se destacavam em importantes posições político-administrativas. Existe uma falsa noção que o Antigo Egito era um lugar de igualdade entre os gêneros, talvez fomentado pela ideia de que essa foi a primeira grande civilização e lar da famosa Cleópatra (69-30 a.C.).
De qualquer forma, o autor do novo estudo lembra que, apesar de Merit Ptah não ser real do ponto de vista histórico, ela é um real símbolo do esforço coletivo para escrever as mulheres de volta à história, uma genuína heroína da justa luta feminista moderna.
(1) Publicação do estudo: JHMAS
Símbolo feminista, Merit Ptah nunca existiu, segundo novo estudo
Reviewed by Saber Atualizado
on
dezembro 19, 2019
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