Transferência lateral de genes apontada em eucariontes
Entre os procariontes, uma das formas mais comuns de fluxo genético se dá via transferência lateral (ou horizontal) de genes (TLG). A TLG é caracterizada pela transmissão de genes entre indivíduos sem a necessidade de herança vertical passada de pais para os filhotes ou de clones oriundos de reprodução assexuada. Basicamente, genes soltos no ambiente podem ser capturados pelos organismos procariontes e serem incorporados no material genético desses últimos. Esse é um importante mecanismo no processo de evolução de resistência bacteriana e na evolução geral dos procariontes (1). Aliás, a TLG é tão prevalente entre esses seres, que alguns cientistas questionam se é possível organizar os procariontes (bactérias e arqueobactérias) através de modelos padrões de filogenia. Em contraste com a transferência vertical, a TLG pode atravessar barreiras entre espécies, podendo até mesmo possuir o potencial de transmitir genes entre reinos de seres vivos.
(1) Para mais informações sobre a TLG, acesse:
- Como nova informação genética é gerada durante o processo evolutivo?
- O que são as superbactérias e a resistência bacteriana?
Há um bom tempo existe um grande controvérsia no meio acadêmico sobre a extensão ou mesmo possibilidade de TLG de procariontes para eucariontes (organismos unicelulares ou multicelulares com células nucleadas eucarióticas mais complexas do que as procarióticas). Os famosos tardígrados são um dos principais candidatos eucariontes mais complexos que podem ter recebido larga quantidade de genes de procariontes dessa forma, sendo que pesquisas nos últimos anos colocam que o conjunto de genes desses animais microscópicos podem ter de 4% a 17% de origem procariótica. No sentido contrário, 'eucariontes => procariontes', a TLG é plenamente possível e amplamente observada. Na verdade, os procariontes capturam DNA livre de quaisquer fontes, não importando muito a origem.
- Leitura recomendada: Os invencíveis tardígrados
De qualquer forma, as evidências genéticas vêm se acumulando nos últimos anos sugerindo que o sentido de transferência lateral 'procariontes => eucariontes' é uma realidade. Diversos genes de origem bacteriana são sugeridos de serem encontrados em diferentes grupos de eucariontes, seja unicelulares ou pluricelulares, e mecanismos já foram propostos para tornar plausível tal processo. Existe até mesmo a possibilidade de TLG entre células eucarióticas. Até o momento, no entanto, só é conclusivo a transferência genética horizontal para eucariontes através de vírus intermediadores, os quais ativamente injetam material genético viral que chegam a integrar em abundância o DNA em células eucarióticas de plantas, fungos e animais (1) - apesar disso não ser uma real TLG. Continua ainda inconclusivo e bastante controverso se genes oriundos de procariontes podem ser incorporados às células eucarióticas em geral, ou mesmo se eucariontes podem aproveitar DNA livre de quaisquer fontes via TLG.
(1) Para saber mais, acesse: Como nova informação genética é gerada durante o processo evolutivo?
Aliás, em 2015, após a análise de milhões de sequências de genes codificadores de proteínas ao longo de várias espécies, pesquisadores da Universidade de Dusseldor, Alemanha, concluíram em um estudo publicado na Nature que não parece realmente existir significativa transferência genética de procariontes para eucariontes. Segundo o estudo, tais transferências provavelmente só ocorreram de forma episódica no período inicial de evolução dos eucariontes, quando as células eucarióticas começaram a englobar células procarióticas - via endossimbiose - que mais tarde se transformaram nas nossas mitocôndrias ou em cloroplastos. Ou seja, toda a TLG nos eucariontes limitaria-se ao LECA, o último ancestral comum eucariótico, e qualquer traço de DNA procariótico nos eucariontes atuais teriam origem desse ancestral (genes conservados).
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Agora, dois estudos publicados como preprint (ainda sem revisão por pares) no começo deste ano reportaram o que parecem ser conclusivas evidências de que fungos do gênero Piromyces e algas vermelhas da ordem Cyanidiales possuem genes incorporados em seus materiais genéticos de origem procariótica, e os quais contribuíram substancialmente para o processo evolutivo desses organismos.
No primeiro estudo, publicado no periódico bioRxiv, pesquisadores apresentaram sólidas evidências de que 13 espécies de alga vermelha dos gêneros Cyanidiophycease e Galdieria encontradas em 9 diferentes regiões geográficas - englobando fontes termais e outros ambientes extremos - possuem, na média, 1% dos seus genes provenientes de TLG. No gênero Galdieria em específico, essa TLG chega a representar até 5% do genoma.
Para chegarem nessa conclusão, os pesquisadores sequenciaram o genoma das 13 espécies selecionadas com as melhores ferramentas tecnológicas de sequenciamento disponíveis. Os resultados das análises revelaram 96 genes oriundos de bactérias extremófilas, e que estavam integrados entre os genes das algas. Essa última observação elimina a possibilidade de contaminação das amostras, o que poderia resultar em falsos positivos. Além disso, no caso das algas unicelulares, existe um mecanismo plausível de TLG através do intermédio de plasmídeos (moléculas duplas circulares de DNA capazes de se reproduzirem de forma independente em relação ao DNA cromossômico; são comuns em procariontes mas também são encontrados em alguns eucariontes).
Os genes encontrados parecem atuar de forma a aumentar as chances de sobrevivência dessas algas em ambientes árduos (altas temperaturas, muito ácido, muito salino, muito secos, etc.), auxiliando em funções de transporte ou desintoxicação de metais pesados, como auxiliares de nutrição a partir do ambiente, ou como fatores de proteção contra condições de estresse (altas temperaturas, por exemplo). Isso demostra a grande importância evolutiva da TLG para essas algas.
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Já o segundo estudo, publicado também no bioRxiv, pesquisadores mostraram que o fungo unicelular do gênero Pyromices possui 704 genes muito provavelmente oriundos de TLG, algo que compreende 5% do genoma típico das espécies desse desse táxon. Esse fungo é um Chytridiomycota anaeróbico obrigatório que cresce em uma relação de comensalismo no intestino de mamíferos herbívoros, possuindo, ao invés de mitocôndrias, organelas chamadas de hidrogenossomos, as quais produzem hidrogênio que ajuda na digestão da parede celular de plantas. Nesse sentido, esse peculiar fungo convive com uma imensidão de outras bactérias intestinais, com esse ambiente competitivo podendo ser um fator de promoção da TLG.
De fato, os genes procarióticos encontrados no DNA desses fungos têm origem de bactérias Firmicutes, Fibrocacteres, Bacteroidetes e Proteobacterias, representativos da microbiota intestinal de herbívoros. E a disposição desses genes no genoma dos fungos mostrou-se não aleatória, mas seguindo coesivamente a rede metabólica dos Piromyces. Essa última observação elimina a possibilidade de contaminação das amostras.
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Em algas vermelhas e fungos unicelulares o processo de TLG pode ser facilitado pela ausência de multicelularidade e especialização celular. Eucariontes multicelulares complexos como os humanos precisam que essa transferência de genes oriundos de procariontes alcance as células germinativas para que o material procariótico adquirido seja passado adiante e se acumule no genoma da espécie ao longo das gerações.
Mesmo com esse obstáculo, muitos cientistas ainda veem fortes evidências de TLG em animais tão complexos quanto insetos e tardígrados. E evidências existem também de que uma pequena parte do genoma de vertebrados, incluindo humanos, se beneficiou de material genético procariótico não associado ao LECA. Porém, nesses casos, as incertezas ainda são muitas e o debate acadêmico é fervoroso.
Publicação do estudo (fungo): bioRxiv
Publicação do estudo (alga vermelha): bioRxiv
Transferência lateral de genes apontada em eucariontes
Reviewed by Saber Atualizado
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fevereiro 18, 2019
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