Clássico exemplo de seleção natural em coelhos explicada a nível genético
Em meados da década de 1800, algumas dezenas de coelhos Europeus (Oryctolagus cuniculus) foram introduzidos na Austrália por imigrantes da Europa - em especial e alegadamente pelo Inglês Thomas Austin -, e nas próximas décadas o número desses animais explodiu no país para centenas de milhões. Então, na década de 1950, foi encontrado um vírus nos coelhos da América do Sul chamado mixoma (MYXV, gênero Leporipoxvirus, família Poxviridae). Esse vírus não causa uma doença grave nos coelhos Sul-Americanos (Sylvilagus spp.) - apenas tumores benignos na pele -, mas ele mostrou ser letal para os coelhos Europeus, levando a uma doença sistêmica conhecida como mixomatose. Nesse sentido, as autoridades Australianas resolveram usar o vírus para controlar a absurda população de coelhos, os quais estavam destruindo plantações, devorando descontroladamente plantas nativas e levando a preocupantes desequilíbrios ambientais.
Após a introdução do vírus, este se espalhou rapidamente por uma extensão de ~2 mil km dentro do país em menos de 3 meses e matou ~99% dos animais infectados. Em 1952, o vírus foi ilegalmente introduzido na França, e, em 1953, alcançou o Reino Unido, levando a similar devastação no número populacional de coelhos em ambos os países.
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Aproveitando esse cenário, os cientistas na época começaram a estudar a co-evolução dos coelhos com o vírus nos três países (Austrália, Reino Unido e França), através de uma série de clássicos experimentos. Com o passar dos anos, a taxa de mortalidade dos coelhos nos três países diminuiu substancialmente, tanto pela evolução de fenótipos virais menos virulentos quanto pelo fato dos coelhos terem evoluído uma resistência à doença. As populações de coelhos passaram a exibir uma considerável variação genética em termos de suscetibilidade a infecções, o que permitiu uma rápida evolução de resistência quando expostos a novas doenças. As pandemias da década de 1950 ativaram um particular e intenso processo de seleção natural, e de forma independente em cada um dos três países afetados.
O amplo e detalhado estudo descritivo desse processo nas décadas que acompanharam a pandemia se tornou um dos mais clássicos exemplos de co-evolução parasita-hospedeiro nos livros acadêmicos e um dos maiores experimentos naturais no campo da evolução. Porém, apesar de existirem exaustivos estudos sobre o material genético do vírus MYXV, até o momento os cientistas não sabiam quais as bases da resistência a nível molecular no material genético dos coelhos Europeus, ou seja, exatamente como o processo evolutivo modificou o DNA desses animais.
Nesse sentido, um time internacional de cientistas liderado por pesquisadores da Universidade de Cambridge e do CIBIO (Centro de Investigação em Biodiversidade e Recursos Genéticos) da Universidade do Porto, extraíram DNA de quase 200 coelhos Europeus datando de 1865 até 2013 (antes e depois da pandemia), incluindo um que pertenceu ao próprio Charles Darwin. As amostras vieram de 11 museus de história natural nos EUA, Reino Unido, França e Austrália. Os pesquisadores, então, usaram as mais recentes tecnologias de sequenciamento genético e revelaram aproximadamente 20 mil genes a partir das amostras de DNA coletadas. Através de análises genômicas comparativas, foram apontadas mutações nos exomas que emergiram desde que a pandemia de mixomatose teve início na década de 1950.
Os resultados do estudo, publicado no periódico Science desta semana, mostraram que os coelhos Europeus na Austrália, Reino Unido e França adquiriram resistência ao mixoma através das mesmas mudanças genéticas (adaptação paralela), e que essa resistência se estabeleceu via impacto cumulativo de múltiplas mutações de diferentes genes ao longo do genoma dessa espécie (base poligênica de resistência). Como as pressões seletivas eram diferenciadas em cada uma das três regiões geográficas de pandemia, já que a resistência estava evoluindo em três distintas populações com diferentes panos de fundo genéticos e ecológicos, os pesquisadores concluíram que o ancestral comum dessas populações tinha evoluído um genótipo similar de resistência no passado, o qual acabou sendo inativado com o passar das gerações e diversificações. O início da pandemia na década de 1950 acabou sendo o gatilho para ativar as variações genéticas de defesa adormecidas, o que explica também a rápida evolução paralela do novo fenótipo de resistência.
Apesar da rápida evolução fenotípica, apenas 1% dos alelos favorecidos por seleção natural foram fixados nas atuais populações modernas. Somando com outros dados obtidos pelo estudo, isso explica o porquê da resistência genética dos coelhos ao mixomatose ser um traço poligênico resultante de um efeito cumulativo de múltiplos alelos mudando de frequência ao longo do genoma, não de grandes mudanças/mutações em em alguns poucos genes. E devido ao gradual aumento de resistência, a infecção não foi completamente prevenida, e, sim, ocorreu uma crescente redução na taxa de replicação do patógeno dentro do hospedeiro, o que leva a seleção natural a favorecer o aumento de virulência. Consistente com essa predição, em anos recentes tem se observado em populações selvagens de coelho na Europa e na Austrália que o declínio de virulência visto nos anos imediatamente após o vírus MYXV ser liberado foi revertido, resultando na emergência de genótipos virais (cepas) altamente virulentos.
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No geral, a evolução de resistência ao MYXV foi associada com melhoras na imunidade antiviral inata, com destaque para variações nos homólogos do CD96, FCRL, CD200-R e IFN-alfa, os quais atuam de forma regulatória na resposta imune inata, incluindo efeitos na proliferação e ativação de linfócitos. Três mutações particularmente significativas foram descobertas no gene IFN-ALFA 21A, o qual é responsável por acionar um alarme proteico nas células dos coelhos quando um vírus é detectado. A forma dessa proteína entre as populações de coelhos Europeus na década de 1950 é substancialmente diferente da atual forma.
O aumento recente de virulência visto em cepas isoladas de MYXV está associado com o vírus se tornando extremamente imunossupressor, causando a perda de respostas inflamatórias, de linfócitos e de neutrófilos. Ou seja, nos últimos 60 anos parece que a evolução viral arranjou um jeito de contra-atacar as adaptações genéticas de resistência dos coelhos.
O novo estudo, ao trazer importantes novas informações sobre o sistema imune e a evolução imunológica desses animais pode ajudar na luta de conservação das populações de coelhos Europeus selvagens em preocupante declínio no Reino Unido e na Europa continental.
Publicação do estudo: Science
Clássico exemplo de seleção natural em coelhos explicada a nível genético
Reviewed by Saber Atualizado
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fevereiro 15, 2019
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