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Habitantes da Ilha de Jeju parecem ter adaptações evolutivas de mergulho em águas frias, aponta estudo

Figura 1. Um grupo de mergulhadoras Haenyeo, em Jeju, na Coreia.

 
Os Haenyeo representam um grupo de mergulhadores muito habilidosos formado apenas por indivíduos do sexo feminino e nativos da Ilha de Jeju, na Coreia do Sul. Há centenas de anos, essas mulheres coreanas mergulham em águas geladas, o ano inteiro, várias horas por dia e sem a ajuda de equipamentos de respiração, na busca por frutos marinhos e macroalgas. Não apenas mergulham no inverno, como também durante a gravidez e até mais de 70-80 anos de idade. 


Nesse contexto, um estudo publicado no periódico Cell (Ref.1) apontou que as habilidades "sobre-humanas" dessas mergulhadoras são resultado tanto de treino quanto de adaptações genéticas (processo evolutivo), incluindo variantes genéticas associadas com tolerância ao frio e pressão sanguínea reduzida. Além disso, elas mostraram ter pronunciada braquicardia.


"As Haenyeo são espetaculares, e suas incríveis habilidades estão escritas nos seus genes," disse em entrevista a Dra. Melissa Ilardo, pesquisadora e professora na Universidade de Utah, EUA, e autora principal do novo estudo (Ref.2-3). "É como ter um superpoder. E o fato delas mergulharem durante a gravidez, algo realmente difícil de se fazer, acabou influenciando a população inteira da ilha."


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Jeju está localizado a aproximadamente 80 km da península coreana, e a ilha está isolada do continente coreano por muito tempo. Os primeiros indícios de assentamento humano em Jeju datam de 10 mil anos atrás, em uma comunidade que eventualmente se transformou no Reino de Tamna. Por um breve período, aproximadamente no século XIV, as forças mongóis controlaram a ilha, possivelmente introduzindo uma ancestralidade genética peculiar à região. O domínio mongol foi sucedido por ~500 anos de domínio Jeoson, durante o qual Jeju enfrentou restrições significativas com um impacto cultural duradouro. Por exemplo, os habitantes de Jeju eram proibidos de deixar a ilha, acentuando o relativo isolamento de Jeju até o século XIX. Como resultado, o idioma de Jeju é, em alguns aspectos, tão diferente do coreano padrão quanto o holandês é do norueguês.

 

Figura 2. Jeju é uma ilha vulcânica composta predominantemente de basalto. É a maior das ilhas coreanas, com uma área de 1846 km2, e emergiu nos últimos 1,8 milhão de anos atrás, a partir da erupção de um vulcão subvulcânico. Agricultura de arroz parece ter sido introduzida na ilha a partir da parte sul da península coreana há 2,3 mil anos, mas rapidamente foi abandonada por causa do solo desfavorável da região. Cultivo foi substituído por atividades de subsistência envolvendo principalmente pesca, coleta de moluscos gastrópodes nas regiões costeiras e sementes. Patrimônio Natural pela Unesco, Jeju abriga hoje uma população humana de aproximadamente 680 mil habitantes. Ref.4-6

Nesse contexto, os habitantes da Ilha de Jeju representam uma subpopulação da Coreia com uma linguagem distinta, uma estrutura familiar matriarcal (1) e uma famosa comunidade residente de mergulhadoras Haenyeo. A prática de mergulho segurando a respiração - ou seja, sem equipamentos de respiração - é tão integral à cultura de Jeju que o encurtamento característico de palavras na língua Jeju é coloquialmente atribuída à necessidade das mergulhadoras de se comunicarem de forma rápida e efetiva na superfície marinha. 


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> Uma estrutura familiar matriarcal centraliza a autoridade e o poder na mãe ou na mulher mais velha da família, que chefia a casa, administra os bens e transmite a linhagem/herança pela linha feminina (matrilinear), frequentemente com residência matrilocal (o marido se muda para a família da esposa).

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O termo haenyeo significa literalmente "mulheres do mar". As Haenyeo mergulham o ano inteiro e de forma cooperativa, coletando tudo de valor nutricional no fundo do mar, desde moluscos gastrópodes até ouriços-do-mar (Fig.2). O mergulho típico ocorre até profundidades de <10 metros e por curta duração (~30 s), mas com gasto energético por ~4-5 horas por dia. Mas os mergulhos podem alcançar profundidades de até 20 m. E mais notável: as Haenyeo continuam com a atividade de mergulho durante a gravidez, frequentemente mergulhando até o dia do parto.


Figura 2. Uma mergulhadora Haenyeo abre ouriços-do-mar coletados durante o dia, aproveitando a valiosa carne que encontram no interior desses animais.
   

Figura 3. Um grupo de mergulhadoras Haenyeo.

 

Figura 4. Sem o equipamento adequado, as Haenyeo mergulham até 20 metros de profundidade para capturar frutos do mar frescos nas profundezas do oceano. Equipadas apenas com um colete denso e óculos de mergulho, essas mulheres realizam dezenas de mergulhos por dia, prendendo a respiração por mais de dois minutos em cada mergulho. Com o aprimoramento da técnica ao longo dos anos, muitas delas substituíram seus maridos como provedoras do lar.

Hoje, as mulheres mais jovens na Ilha de Jeju não mais continuam essa tradição matrilínea. As atuais mergulhadoras Haenyeo, com uma idade média de ~70 anos, podem representar a última geração de mergulhadoras. No vídeo abaixo, duas Haenyeo iniciando as atividades de mergulho do dia.

 


Durante o mergulho, todos os humanos experienciam um efeito conhecido como reflexo de mergulho dos mamíferos. Essa resposta fisiológica multissistêmica oferece muitos componentes biológicos sobre os quais a seleção natural pode atuar. 


O reflexo de mergulho é desencadeado pela combinação de apneia e submersão em água e induz vasoconstrição, que redistribui seletivamente o sangue para os órgãos vitais - principalmente o cérebro e o coração - e o afasta dos tecidos não essenciais. O mergulho também desencadeia uma diminuição da frequência cardíaca, ou bradicardia, que reduz o débito cardíaco e conserva oxigênio. 


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> O reflexo de mergulho está presente em todos o mamíferos, aquáticos e terrestres, e é observado também em aves. Os efeitos fisiológicos desencadeados por esse reflexo visam conservar ao máximo as reservas intrínsecas de oxigênio no corpo - a maior parte ligado a hemoglobinas no sangue e a mioglobinas nos músculos. O reflexo é especialmente pronunciado em mamíferos marinhos que mergulham, como cetáceos e pinípedes. Ref.7-8


> Mudanças fisiológicas desencadeadas pelo reflexo do mergulho e conservadas entre mamíferos aquáticos e terrestres: redução dramática da taxa cardíaca (braquicardia), aumento da vasoconstrição periférica e cessação da respiração (apneia). Além disso, temos contração esplênica, onde o baço aumenta a concentração de hemácias no sangue (hematócrito aumentado em ~4%). Ref.9


> A imersão do focinho em água é suficiente para ativar o reflexo de mergulho nos mamíferos, sugerindo que fibras aferentes primárias inervando as áreas paranasais são importantes para o reflexo, alterando dramaticamente os sistemas nervosos simpático e parassimpático responsáveis pelo controle homeostático da respiração (ex.: reflexo quimiorreceptor respiratório), batimentos cardíacos e pressão sanguínea arterial (ex.: reflexo barorreceptor). O reflexo do mergulho é mais pronunciado durante a imersão facial, mas simples apneia é suficiente para induzi-lo. Ref.10

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Apesar disso, o único elemento da resposta de mergulho que demonstrou, até o momento, ter uma ligação com a seleção natural na nossa espécie (Homo sapiens) é o tamanho do baço, que foi encontrado aumentado de forma significativa nos Bajau, os "nômades do mar" da Indonésia (3). Durante um mergulho, a contração esplênica aumenta o volume de glóbulos vermelhos circulantes e, portanto, o oxigênio disponível em até 9,6%; isso, por sua vez, permite um maior tempo de submersão. 


Além do tamanho do baço, não se sabe até que ponto os componentes da resposta ao mergulho são influenciados pela variação genética (adaptação evolutiva) ao invés de simples treinamento ou plasticidade fenotípica. Evidências genéticas de estudos com os Bajau e outros sugerem que a variação no gene BDKRB2 pode ter sido selecionada por seu papel na contração vascular; no entanto, esse efeito ainda não foi medido diretamente em nenhuma população tradicional ou nativa de mergulhadores.


Importante, a interação entre o reflexo de mergulho dos mamíferos e a gravidez apresenta desafios fisiológicos únicos para as mergulhadoras. A exposição à hipóxia intermitente no início da gravidez está associada a um risco maior de distúrbios hipertensivos da gravidez, comumente na forma de pré-eclâmpsia. Esse efeito tem sido observado com mais frequência em casos de apneia obstrutiva do sono, em que a apneia desencadeia vasoconstrição, elevando a pressão arterial. Isso sugere que frequente apneia ligada à atividade de mergulho pode também aumentar o risco de pré-eclâmpsia.


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No novo estudo, os pesquisadores analisaram fisiologicamente e geneticamente uma amostra de 91 coreanos: 30 mergulhadoras Haenyeo em Jeju, 30 habitantes em Jeju que não participavam das atividades de mergulho e 31 sul-coreanos em Seul (população continental). Todas as Haenyeo estavam ativamente trabalhando como mergulhadoras, gastando pelo menos 3 dias por semana no mar. Os outros participantes foram equiparados na escolha em termos de idade, com uma média de 65 anos.


Os pesquisadores compararam a taxa cardíaca e a pressão sanguínea dos participantes durante descanso e durante "mergulhos simulados", onde respiração era segurada enquanto o rosto era submerso em água fria - engatilhando o reflexo do mergulho.


As análises genéticas mostraram que os habitantes insulares (Jeju) eram distintos dos coreanos continentais (Seul), apontando que todos os habitantes de Jeju, incluindo as Haenyeo, eram descendentes da mesma população ancestral. Nesse mesmo sentido, todos os habitantes de Jeju eram geneticamente muito similares. Divergência entre os Jeju e a população continental parece ter ocorrido há ~5-7 mil anos. Nos últimos 10 mil anos, a população de Jeju parece ter apenas dobrado de tamanho, com um evento de dramático declínio populacional há 1,2-3 mil anos - sugerindo um efeito de gargalo (4).


As mulheres Haenyeo - e a população em Jeju em geral - exibiam variantes com assinatura de seleção positiva em dois genes que parecem ajudá-las a lidar com o frio e o aumento de pressão sanguínea nos mergulhos, apontando um processo evolutivo favorecendo a atividade de mergulho e protegendo a gravidez.


Uma variante afeta o gene SGCZ, cuja proteína codificada (zeta-sarcoglicano) está associado com sensibilidade à dor e tolerância ao frio. O alelo selecionado desse gene potencialmente torna as mergulhadoras menos vulneráveis à hipotermia. As Haenyeo mergulham no inverno, submergindo em águas excepcionalmente frias e onde a temperatura do ar cai para valores ao redor do ponto de congelamento da água. O frio intenso não impede as Haenyeo de mergulharem, apenas o alarme para ventos muito fortes - que podem tornar atividades no oceano muito perigosas.


Porém, os pesquisadores não mediram a tolerância individual ao frio nos participantes do estudo, ficando incerto por enquanto se o alelo selecionado implica em importante proteção contra a sensação de dor causada pelo frio.


A outra variante de interesse afeta o gene FcyRIIA e está associado com pressão diastólica reduzida (5), através de influencia na inflamação vascular.


A variante ligada à pressão sanguínea (rs66930627) foi encontrada em 33% da amostra de Jeju, mas apenas em 7% da amostra continental. Esse notável aumento de frequência da variante pode refletir seleção natural mitigando as complicações da hipertensão diastólica experienciada por mulheres que mergulham durante a gravidez.


Durante os mergulhos simulados, todos os participantes apresentaram diminuição da frequência cardíaca, mas a frequência cardíaca das Haenyeo caiu significativamente mais do que aquela dos grupos de controle. Em média, a frequência cardíaca das mergulhadoras diminuiu 18,8 batimentos por minuto (bpm), em comparação com uma diminuição de 12,6 bpm nos participantes de Jeju que não participavam das atividade se mergulho. Uma frequência cardíaca reduzida durante o mergulho é benéfica porque economiza energia e conserva oxigênio.


Uma das mergulhadoras chegou a exibir uma queda superior a 40 bpm em menos de 15 segundos.


Mas essa diferença de braquicardia mostrou ser provavelmente fruto de treino (efeito plástico) ao longo da vida e não uma adaptação genética. A maioria das Haenyeo começam o treinamento de mergulho aos 8 anos de idade.


Leitura recomendada:


REFERÊNCIAS

  1. Ilardo et al. (2025). Genetic and training adaptations in the Haenyeo divers of Jeju, Korea. Cell Reports, Volume 44, Issue 5, 115577. https://doi.org/10.1016/j.celrep.2025.115577
  2. https://healthcare.utah.edu/newsroom/news/2025/05/its-they-have-superpower-genetic-analysis-of-all-women-extreme-divers-finds
  3. https://www.eurekalert.org/news-releases/1081670
  4. Sohn et al. (2015). Stratigraphy and age of the human footprints-bearing strata in Jeju Island, Korea: Controversies and new findings. Journal of Archaeological Science: Reports, Volume 4, December 2015, Pages 264-275. https://doi.org/10.1016/j.jasrep.2015.09.014
  5. Park et al. (2016). Late-Holocene vegetation and climate change in Jeju Island, Korea and its implications for ENSO influences. Quaternary Science Reviews, Volume 153, Pages 40-50. https://doi.org/10.1016/j.quascirev.2016.10.011
  6. Kim & Song (2023). Integrating ecosystem services and ecological connectivity to prioritize spatial conservation on Jeju Island, South Korea. Landscape and Urban Planning, Volume 239, 104865. https://doi.org/10.1016/j.landurbplan.2023.104865 
  7. Panneton, W. M. (2013). "The Mammalian Diving Response: An Enigmatic Reflex to Preserve Life?" Physiology, Volume 28, Issue 5. https://doi.org/10.1152/physiol.00020.2013
  8. Panneton & Gan (2020). The Mammalian Diving Response: Inroads to Its Neural Control. Frontiers in Neuroscience, Volume 14. https://doi.org/10.3389/fnins.2020.00524
  9. Nordine et al. (2021). The Human Dive Reflex During Consecutive Apnoeas in Dry and Immersive Environments: Magnitude and Synchronicity. Frontiers in Physiology, Volume 12. https://doi.org/10.3389/fphys.2021.725361
  10. Brown et al. (2024). Cardiovascular and hematological responses to a dry dynamic apnea in breath hold divers. American Journal of Physiology-Regulatory, Integrative and Comparative Physiology, Volume 327, Issue 4. https://doi.org/10.1152/ajpregu.00081.20
  11. https://www.bbcasia.com/deep-dive-korea
  12. https://www.josejeuland.com/haenyeo-jeju-island-south-korea/

Habitantes da Ilha de Jeju parecem ter adaptações evolutivas de mergulho em águas frias, aponta estudo Habitantes da Ilha de Jeju parecem ter adaptações evolutivas de mergulho em águas frias, aponta estudo Reviewed by Saber Atualizado on dezembro 11, 2025 Rating: 5

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