Polvos-de-anéis-azuis machos injetam veneno no coração das fêmeas para imobilizá-las antes do sexo
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Figura 1. Em (A), estrutura química da tetrodoxina. Em (B), polvo da espécie Hapalochlaena fasciata, cujo veneno pode matar um humano dentro de poucos minutos após mordida ou ingestão acidental. |
Polvos-de-anéis-azuis (gênero Hapalochlaena) são moluscos altamente tóxicos e peçonhentos que usam a potente neurotoxina TTX (tetrodotoxina) para predação e defesa. Mas um recente estudo publicado no periódico Current Biology (Ref.1) descobriu outro inesperado uso do TTX por esses polvos. Pelo menos na espécie Hapalochlaena fasciata (Fig.1), os machos injetam essa neurotoxina no coração das fêmeas durante a cópula, paralisando-as. As fêmeas param temporariamente de respirar, ficam pálidas e deixam de exibir respostas reflexivas à luz - todos sintomas de envenenamento por TTX. Nesses polvos, o TTX não é letal mas a estratégia dos machos impede que as fêmeas - vorazes e pelo menos duas vezes maiores do que os machos - devorem o parceiro sexual.
O gênero Hapalochlaena engloba hoje quatro espécies oficialmente reconhecidas (Fig.2), mas evidência genética recente sugere a existência de até 11 espécies (Ref.3). É estimado que o gênero sofreu radiação - dando origem às principais linhagens do grupo - há cerca de 30 milhões de anos, com o ancestral comum de todas as linhagens emergindo há pelo menos ~50 milhões de anos (Ref.3). Popularmente conhecidos como polvos-de-anéis-azuis, esses moluscos cefalópodes possuem uma distinta aparência - provavelmente aposemática (sinalização visual de alerta) - com dezenas de linhas e/ou anéis alertando potenciais predadores de que seus tecidos são muito tóxicos. Os anéis ou linhas azuis geralmente não ficam visíveis nos animais em repouso (Ref.4). Esses polvos são distribuídos ao longo do oceano Pacífico na Ásia e na Oceania, em águas temperadas desde a Australásia (ex.: Austrália) até o Pacífico Norte (ex.: Japão). A determinação sexual nesse grupo é genética (Fig.3), com fêmeas tipicamente maiores do que os machos.
Todos os membros do gênero Hapalochlaena até o momento descritos contém a potente neurotoxina TTX dentro de tecidos e na peçonha. Presente em vários organismos marinhos (1), é uma das mais perigosas biotoxinas marinhas e o limite de segurança para efeitos tóxicos em humanos do TTX e seus análogos é de apenas 44 microgramas (μg) para cada quilo (kg) de massa corporal (Ref.8). Na espécie H. fasciata, o TTX é encontrado em vários tecidos, incluindo as glândulas salivares, músculos e peles; concentração dessa neurotoxina nas glândulas salivares posteriores é 20x maior do que nos tecidos musculares e cutâneos (Ref.9). Embora a concentração de TTX é maior nas glândulas salivares dos polvos-de-anéis-azuis em geral, a quantidade dessa neurotoxina é maior no manto e nos braços devido ao maior volume dessas estruturas.
Esses polvos são tóxicos ao morder com seus bicos queratinosos (ataque) - injetando saliva com TTX no processo - e quando são consumidos (defesa). São as únicas espécies de polvos conhecidas capazes de desferir mordidas letais em humanos, com pelo menos duas mortes registradas na Austrália. Envenenamento fatal também é observado quando tartarugas-verdes (Chelonia mydas) acidentalmente ingerem esses polvos junto com ervas-marinhas (Ref.8).
É ainda incerto, porém, a origem do TTX nesses polvos. A hipótese mais defendida é baseada na relação simbiótica com certas bactérias e, de fato, táxons bacterianos que produzem TTX (ex.: Vibrio, Bacillus e Pseudomonas) têm sido isolados de polvos-de-anéis-azuis (Ref.10). Por outro lado, também é possível que esses animais acumulem TTX nos tecidos a partir da dieta (fonte exógena), ao consumirem moluscos e crustáceos carregando essa neurotoxina. Os polvos-de-anéis-azuis são resistentes ao efeito do TTX no corpo devido a mutações que modificam canais de sódio nas células (Ref.11).
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> A tetrodotoxina (TTX) é uma substância orgânica cristalina, levemente básica e sem cor. Solúvel em água e estável em altas temperaturas, ainda não existe antídoto para essa neurotoxina. Doses letais em humanos variam de 1,5 a 2 mg, equivalente a um nível sanguíneo de 9 ng/mL. Morte pode ocorrer dentro de 17 minutos, resultante principalmente de falha respiratória e colapso cardiovascular. O TTX age bloqueando a passagem de íons sódio através da membrana de células nervosas. Pelo menos 30 análogos estruturais dessa substância de ocorrência natural têm sido descritos, exibindo variados graus de toxicidade. Ref.12
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O acasalamento dos polvos-de-anéis-azuis é marcado por promiscuidade (poligamia) e monta de machos sobre fêmeas. O ritual de acasalamento começa quando um macho se aproxima de uma fêmea e começa a acariciá-la com um braço modificado (hectocótilo). E evidência científica recente sugere que o sistema tátil desses polvos é capaz de rapidamente discriminar os sexos e parceiros sexuais prévios (Ref.13). Os machos então sobem nas costas das fêmeas, às vezes engolfando completamente o manto da parceira sexual, obstruindo sua visão. O hectocótilo é inserido sob o manto da fêmea e os espermatozoides são liberados no oviduto. A fêmea eventualmente põe entre 50 e 100 ovos e os guarda carregando-os sob seu tentáculo até que eclodam cerca de 50 dias depois, liberando paralarvas planctônicas. A fêmea então morre porque não consegue comer enquanto guarda os ovos (Ref.14).
Assim como as fêmeas, machos também morrem após o acasalamento, um fenômeno chamado de semelparidade (2). Nesse sentido, esses polvos possuem uma vida útil curta no ambiente natural, em torno de 2 anos.
Leitura recomendada:
- (1) Por que alguns peixes inflam o corpo?
- (2) Por que os machos de algumas espécies de marsupiais morrem em sincronia após o sexo?
No novo estudo, pesquisadores da Universidade de Queensland, Austrália, resolveram investigar os comportamentos de acasalamento de seis pares de polvos da espécie H. fasciata (Fig.4). Apesar de canibalismo sexual ser comum em cefalópodes e do tamanho quase duas vezes maior das fêmeas de H. fasciata, os machos analisados sempre conseguiam transferir esperma e escapar ilesos após todos os eventos de cópula registrados. Como mencionado, fêmeas param de se alimentar durante o cuidado dos ovos e, antes do período reprodutivo, tentam consumir o máximo de alimento para garantir grande reserva nutricional e energética - e machos também estão no menu. Então, como explicar a recusa das fêmeas em devorá-los durante ou após a cópula? Aliás, os machos são presas fáceis na copulação: precisam ficar em contato direto e prolongado para a inserção do braço inseminador (hectocótilo).
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Figura 4. Fêmea (maior) e macho da espécie Hapalochlaena fasciata. Ref.1 |
Investigando mais a fungo a interação entre fêmeas e machos durante a cópula, os pesquisadores descobriram que os machos usam uma mordida de alta precisão para injetar TTX na aorta (artéria cardíaca) das fêmeas no início da cópula. Embora não seja letal para as fêmeas, a inoculação da neurotoxina diretamente no coração imobiliza a parceira sexual, permitindo que o macho finalize a atividade sexual com tranquilidade e escapar após efetiva inseminação (Fig.5). Enquanto que as fêmeas perdem alimento fácil com essa estratégia, machos provavelmente se beneficiam ao aumentar o número de cópulas com múltiplas fêmeas antes de morrer.
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Figura 5. Macho montado sobre uma fêmea após imobilizá-la com TTX. Ref.1 |
Durante a intoxicação da fêmea pelo parceiro sexual, essa se torna pálida e sua respiração se torna mais lenta - até parar completamente após ~8 minutos, por um tempo suficiente para o macho montá-la mas sem matá-la. Quando pesquisadores jogavam luz sobre os olhos das fêmeas intoxicadas, as pupilas não contraíam - indicando que estavam efetivamente imobilizadas pelo TTX. Após ~1 hora, o efeito da toxina passava e a fêmea retomava o controle nervoso do corpo, voltando a reagir normalmente.
Três a 29 dias após o encontro sexual, fêmeas depositavam seus ovos, exibindo evidência cutânea (lesões) da mordida dada pelo macho.
Além disso, os pesquisadores encontraram que as glândulas salivares posteriores dos machos eram três vezes mais massivas do que aquelas das fêmeas, sugerindo uma adaptação para compensar o tamanho corporal e a resistência natural ao TTX durante a investida contra as fêmeas. Válido mencionar que alguns escorpiões usam uma estratégia similar para dominar parceiros sexuais de maior porte corporal.
REFERÊNCIAS
- Chung et al. (2025). Blue-lined octopus Hapalochlaena fasciata males envenomate females to facilitate copulation. Current Biology, Volume 35, Issue 5, pR169-R170. https://doi.org/10.1016/j.cub.2025.01.027
- https://www.science.org/content/article/these-octopuses-inject-their-lovers-one-world-s-deadliest-toxins
- Whitelaw et al. (2023). SNP data reveals the complex and diverse evolutionary history of the blue-ringed octopus genus (Octopodidae: Hapalochlaena) in the Asia-Pacific. olecular Phylogenetics and Evolution, Volume 186, 107827. https://doi.org/10.1016/j.ympev.2023.107827
- https://www.marinebio.org/species/blue-ringed-octopuses/hapalochlaena-maculosa/
- Mathger et al. (2012). How does the blue-ringed octopus (Hapalochlaena lunulata) flash its blue rings? Journal of Experimental Biology, 215(21), 3752–3757. https://doi.org/10.1242/jeb.076869
- https://www.nhm.ac.uk/discover/blue-ringed-octopus-small-vibrant-deadly.html
- Coffing et al. (2025). Cephalopod sex determination and its ancient evolutionary origin. Current Biology, Volume 35, Issue 4, p931-939.e4. https://doi.org/10.1016/j.cub.2025.01.005
- Kim et al. (2023). Tetrodotoxin and the Geographic Distribution of the Blue-Lined Octopus Hapalochlaena fasciata on the Korean Coast. Toxins, 15(4), 279. https://doi.org/10.3390/toxins15040279
- Yuta et al. (2021). Levels and distribution of tetrodotoxin in the blue-lined octopus Hapalochlaena fasciata in Japan, with special reference to within-body allocation. Journal of Molluscan Studies, Volume 87, Issue 1, eyaa042. https://doi.org/10.1093/mollus/eyaa042
- https://www.mdpi.com/1660-3397/11/8/2695
- Williamns & Caldwell (2024). Chapter 17 - Hapalochlaena lunulata, greater blue-ringed octopus. Octopus Biology and Ecology, Pages 259-279. https://doi.org/10.1016/B978-0-12-820639-3.00022-4
- Katikou et al. (2022). An Updated Review of Tetrodotoxin and Its Peculiarities. Marine Drugs 20(1), 47. https://doi.org/10.3390/md20010047
- Morse & Huffard (2022). Chemotactile social recognition in the blue-ringed octopus, Hapalochlaena maculosa. Marine Biology 169, 99. https://doi.org/10.1007/s00227-022-04087-y
- https://www.marinebio.org/species/blue-ringed-octopuses/hapalochlaena-maculosa/
