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Caverna na Austrália preservou uma prática de feitiçaria que pode ser o mais antigo ritual culturalmente transmitido conhecido

Figura 1. Escudos representando os cinco clãs da Nação GunaiKurnai. Existem aproximadamente 3 mil aborígenes do povo GunaiKurnai ocupando territórios no sudeste da Austrália associados aos Alpes Australianos. Ref.1

 
Em sociedades sem escrita, ou seja, com tradição oral, rituais etnograficamente documentados raramente possuem a origem identificada em registros arqueológicos [cultura material] com mais de algumas centenas de anos. Agora, em um estudo publicado no periódico Nature Human Behaviour (Ref.2) e muito bem recebido na comunidade acadêmica (Ref.3), pesquisadores reportaram e descreveram um achado arqueológico na Caverna Cloggs, localizada na base dos Alpes Australianos, que liga um ritual de feitiçaria Aborígene com evidência de uma prática similar datada em 12 mil anos atrás. O ritual envolve pedaços do cabelo ou da roupa da vítima, os quais são afixados na ponta de uma vareta embebida com gordura humana ou de canguru e lançados em uma pequena fogueira. A descoberta pode representar o mais antigo ritual culturalmente transmitido até o momento descrito, persistindo desde a Era do Gelo até o período colonial Australiano. 


"Isso é 12 mil anos de continuidade, passando adiante conhecimento de uma geração para a próxima, de uma prática cultural que permaneceu quase intacta ao longo de 500 gerações", disse em entrevista à Science o arqueólogo Bruno David, autor principal do novo estudo (Ref.3). "É absolutamente extraordinário".


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Especificamente, os pesquisadores encontraram duas varetas de madeira trabalhadas por humanos e feitas a partir da madeira de árvores do gênero Casuarina (Fig.3). Essas varetas foram datadas em ~11 mil e ~12 mil anos atrás, tornando-os os mais antigos artefatos de madeira conhecidos na Austrália. Cada vareta estava associada com gordura animal (Fig.4) e haviam sido colocadas em uma fogueira miniaturizada de baixa temperatura, queimando por uma duração muito curta de tempo. As varetas e a fogueira foram rapidamente enterradas por acúmulo de sedimentos durante a transição Pleistoceno-Holoceno e permaneceram conservadas até o local ser escavado no ano de 2020. 


Figura 2. Entrada da Caverna Cloggs. Primeiro explorada cientificamente em 1971-1972, a Caverna de Cloggs é um importante sítio arqueológico na Austrália. Os mais antigos artefatos de pedra na caverna são datados entre 19,3 e ~23,5 mil anos atrás. Existem vários artefatos de estalactites tubulares e de cristais de quartzo na caverna, associados com práticas medicinais e de magia. Práticas e instalações ritualísticas características do Povo GunaiKurnai nessa caverna parecem se estender até 23 mil anos atrás. Ref.2,4

 
Figura 3. Varetas e vestígios de cinza associada à queima desses artefatos em fogueiras miniaturizadas, na Caverna de Cloggs. (A) Vareta datada entre ~10,7 e 12,4 mil anos atrás. (B) Vareta datada entre ~11,4 e 12,9 mil anos atrás. Em (C), visão mais clara da vareta em (A). Ref.2
 
Figura 4. Em (A), área em uma das varetas da Fig.3 com vestígios de gordura animal observadas em (B) com ampliação de 400x (sob luz parcialmente polarizada) . Ref.2

Etnografia local e atual conhecimento do povo GunaiKurnai apontam que cavernas como a Caverna de Cloggs nunca foram usados para ocupação geracional, algo reforçado pela ausência de vestígios alimentares no registro arqueológico nesses locais. Ao invés disso, essas cavernas eram usadas por curandeiros e feiticeiros conhecidos como mulla-mullung, termo usado por aborígenes para fazer referência a poderosos homens e mulheres que praticam magia e rituais. E as características das fogueiras miniaturizadas na Caverna de Cloggs indicam que o propósito do fogo ali produzido não era para aquecimento corporal ou alimento.


Nesse último ponto, etnografia do século XIX fornece explicação de uso para essas fogueiras pelo povo GunaiKurnai e grupos vizinhos do sudeste da Austrália. Feiticeiros ou curandeiros mulla-mullung historicamente têm usado mágica "vudu" ou curado pessoas moribundas a partir de rituais conduzidos nessas atípicas fogueiras. 


Os rituais mágicos amaldiçoando mortalmente inimigos ou outras vítimas eram conduzidos em lugares isolados (ex.: cavernas), longe de olhares curiosos, e envolviam varetas de madeira impregnadas na ponta com gordura animal (humana ou de canguru) e junto com penas de aves de rapina. Essas varetas também recebiam na ponta algum material pertencente à vítima do feitiço (fios de cabelo, fezes, ossos tocados, pedaço de roupa, saliva, etc.). A vareta trabalhada, então, era fincada no chão de forma oblíqua ao lado de uma pequena fogueira e deixada cair lentamente até o fogo. Nesse período de queda, o feiticeiro ou feiticeira vocalizava um encantamento, incluindo no canto menção ao nome da vítima. Quando a vareta caía, o encantamento estava completo.


A forte semelhança material entre os achados arqueológicos na caverna e as práticas ritualísticas de aborígenes Australianos no século XIX fortemente suportam que o ritual vinha persistindo e sendo transmitido por ~12 mil anos, ao longo de >500 gerações. Tal persistência cultural não possui conhecido paralelo no mundo.


Leitura recomendada:


REFERÊNCIAS

  1. https://gunaikurnai.org/our-story/
  2. David et al. (2024). Archaeological evidence of an ethnographically documented Australian Aboriginal ritual dated to the last ice age. Nature Human Behaviour. https://doi.org/10.1038/s41562-024-01912-w
  3. https://www.science.org/content/article/sorcery-australian-cave-may-be-oldest-known-culturally-transmitted-ritual
  4. David et al. (2020). "Geomorphological context and formation history of Cloggs Cave: What was the cave like when people inhabited it?" Journal of Archaeological Science: Reports, Volume 33, 102461. https://doi.org/10.1016/j.jasrep.2020.102461

Caverna na Austrália preservou uma prática de feitiçaria que pode ser o mais antigo ritual culturalmente transmitido conhecido Caverna na Austrália preservou uma prática de feitiçaria que pode ser o mais antigo ritual culturalmente transmitido conhecido Reviewed by Saber Atualizado on julho 03, 2024 Rating: 5

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