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Cientistas descrevem uma nova organela: Nitroplasto

Figura 1. Microalga Braarudosphaera bigelowii, amplificada 1000x. 

 
Nitrogênio é um elemento essencial para toda a vida na Terra. Apesar do gás nitrogênio (N2) ser abundante na atmosfera terrestre, esse gás não consegue ser assimilado pela maioria dos organismos vivos sem um processo conhecido como "fixação de nitrogênio", o qual converte N2 em amônia (NH4) - uma das principais fontes inorgânicas de nitrogênio nos ciclos bióticos - e, subsequentemente, outros compostos nitrogenados como nitratos e aminoácidos. 


Até o momento, a comunidade científica só conhecia bactérias e Archaea (seres procariontes) capazes de fixar nitrogênio. Agora, em dois robustos estudos publicados na Cell (Ref.1) e na Science (Ref.2), pesquisadores reportaram e descreveram uma [ciano]bactéria simbionte (UCYN-A) se comportando como uma organela dentro de microalgas marinhas da espécie Braarudosphaera bigelowi. Com base em caracterizações físicas, bioquímicas e biológicas do UCYN-A, os pesquisadores concluíram que essa cianobactéria é melhor descrita como uma organela [nitroplasto].


Em outras palavras, temos o primeiro eucarionte conhecido capaz de fixar nitrogênio. 


Assim como as mitocôndrias e os plastídios (ex.: cloroplastos), o nitroplasto é fruto de um evento evolucionária mediado por endossimbiose - o processo pelo qual células procarióticas são englobadas por células eucarióticas, levando ao aprofundamento da relação simbiótica intracelular e eventual evolução de organelas.


"É muito raro que organelas emerjam desse tipo de evento," disse em entrevista o Dr. Tyler Coale, um dos autores principais dos estudos publicados (Ref.3). "Na primeira vez em que isso é pensado de ter ocorrido [mitocôndria], tivemos a emergência de toda a vida complexa. Tudo mais complicado do que a célula de uma bactéria deve sua existência a esse evento. Um bilhão de anos depois ou algo próximo disso, ocorreu novamente com o cloroplasto, resultando nas plantas."


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FIXAÇÃO DE NITROGÊNIO


Nitrogênio (N) é um elemento essencial para o crescimento dos seres vivos, especialmente por ser constituinte central de aminoácidos e ácidos nucleicos (DNA e RNA). Nos ambientes terrestres, através da fotossíntese (1), a maioria das plantas conseguem obter carboidrato (fixação de carbono), porém nitrogênio precisa ser obtido a partir do solo, via assimilação de compostos nitrogenados (ex.: nitratos). Em solos pobres em compostos nitrogenados, certas plantas evoluíram inclusive uma dieta carnívora para obter suficiente nitrogênio (2), enquanto outras plantas evoluíram parasitismo (3). Mas a mais eficiente e disseminada fonte de nitrogênio para as plantas é a parceria simbiótica desses organismos com bactérias fixadoras de nitrogênio.


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Leitura complementar:


> Apesar de ser abundante na atmosfera [~78% do total de gases] sob a forma de gás nitrogênio (N2), este precisa ser reduzido para ser aproveitado pela maioria dos organismos vivos, e isso é feito por um espectro limitado de microrganismos nos ambientes aquático e terrestre. 


> Os microrganismos catalisam a fixação biológica de nitrogênio com a enzima nitrogenase, a qual é altamente conservada ao longo da evolução. Esses microrganismos (bactérias e Archaea diazotróficos) provavelmente evoluíram há ~3,2 bilhões de anos e suportaram uma robusta expansão da biota. Hoje a fixação de nitrogênio é o segundo processo mais vital para a vida na Terra depois da fotossíntese. Antes da evolução da nitrogenase, formas biodisponíveis [fixadas] de nitrogênio só podiam ser produzidas através de reações abióticas requerendo alta energia para a quebra da ligação tripla no N2. Essa energia pode vir de raios de tempestade, impactos de meteoros, e fotocatálise com UV e minerais catalisadores [Fe-S] para reduzir o N2. Essas reações abióticas provavelmente não eram suficientes para a crescente demanda biótica à medida que a vida começou a evoluir e a se expandir, portanto fornecendo pressão seletiva para a evolução de um mecanismo biótico para a redução de N2. Ref.5

Figura 2. Diagrama esquemático do complexo de nitrogenase, mostrando o fluxo redutivo e substratos na fixação enzimática de nitrogênio. A nitrogenase consiste de dois componentes: dinitrogenase redutase e dinitrogenase. A dinitrogenase redutase possui ferro (Fe) e liga ATP e transfere elétrons para a dinitrogenase [constituída de Fe e molibdênio (Mo)], possibilitando a redução do N2 em NH4 junto com a produção de gás hidrogênio (H2). Ambas as enzimas são rapidamente inativadas pelo oxigênio molecular (O2). Ref.6

> Existem três variantes da enzima nitrogenase: nitrogenase de molibdênio (Nif), nitrogenase apenas com ferro (Anf) e a mais rara nitrogenase de vanádio (Vnf). Evidências apontam que a mais abundante e prevalente forma (Nif) é também aquela que primeiro emergiu nos sistemas bióticos, sendo codificada pelos genes nifH, nifD e nifK. Ref.7

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Bactérias fixadoras de nitrogênio constituem um grupo de microrganismos amplamente disseminados e encontrados em vários filos, e representantes da maioria (se não todos) desses filos engajam em simbiose nitrogênio-fixante com plantas, incluindo grupos simbiontes que atuam crucialmente para a aquisição de nitrogênio em legumes (ex.: feijão), como o gênero Rhizobium.


Nos oceanos, os mais abundantes e importantes microrganismos diazotróficos são cianobactérias, representados por membros do gênero filamentoso Trichodesmium e vários gêneros unicelulares, incluindo espécies Crocosphaera sp., Richelia e o gênero simbiótico Candidatus Atelocyanobacterium thalassa (UCYN-A). Essas cianobactérias são tipicamente restritas às águas superficiais com exposição solar, principalmente em regiões tropicais e subtropicais, e são geneticamente e morfologicamente muito diversas, provavelmente espelhando adaptações ecológicas para as diferentes zonas e condições oceânicas.


Figura 3. Filogenia e imagens microscópicas dos microrganismos oceânicos fixadores de nitrogênio, com destaque para os os principais grupos (cianobactérias diazotróficas). Nos últimos anos, o gene nitrogenase nifH foi detectado no Oceano Antártico, principalmente associado ao endossimbionte UCYN-A. Isso sugere que a fixação de nitrogênio é um processo que ocorre em todas as áreas oceânicas. Ref.9-10

Em particular, a cianobactéria UCYN-A traz características bastante anômalas, incluindo um genoma muito reduzido, metabolismo simplificado - incluindo perda de várias enzimas necessárias para a fotossíntese - e relação simbiótica obrigatória intracelular (endossimbiose) com a alga eucariótica e fotossintética Braarudosphaera bigelowii. Por outro lado, a UCYN-A conservou todos os genes necessários para a fixação de N2, fornecendo nitrogênio fixado para seu hospedeiro (B. bigelowii), com esse último, por sua vez, fornecendo carbono (C) fixado via fotossíntese realizada em cloroplastos. É estimado que essa relação endossibiótica entre UCYN-A e B. Bigelowii teve início há ~100 milhões de anos. 


Figura 4. Microscopia de luz mostrando a microalga haptófita B. bigelowii em simbiose com a cianobactéria UCYN-A. O endossimbionte esferoide fica localizado entre os dois cloroplastos da microalga calcificada e no lado posterior na microalga flagelada, sendo cercado por uma única membrana do hospedeiro. Ocupando mais de 8% do volume celular, o UCYN-A é englobado dentro do que é pensado ser o vacúolo alimentar do B. bigelowii. Barra de escala =  2 mm. Ref.1

Aliás, o UCYN-A é capaz de fixar N2 mesmo em ambientes nutritivos (ricos em compostos nitrogenados), enquanto outras cianobactérias diazotróficas tipicamente reduzem o processo de fixação nessas condições para economizar energia. O processo de fixação de nitrogênio via nitrogenase é altamente custoso, necessitando de muita energia e elétrons para reduzir o N2. A UCYN-A perdeu os genes capazes de regular esse processo, e, basicamente, se transformou em uma "fábrica de amônia".


Essas anômalas características do endossimbionte UCYN-A apontam traços típicos de uma organela, similar às mitocôndrias (a "fábrica de ATP/energia" das células eucarióticas). 


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DESCOBERTA DO NITROPLASTO


Os dois novos estudos - conduzidos por um time internacional de pesquisadores - buscaram determinar a natureza exata do endossimbionte UCYN-A. 


No estudo publicado na Cell, os pesquisadores mostraram que a razão dimensional entre UCYN-A e as microalgas hospedeiras era similar ao longo de diferentes espécies do grupo "Braarudosphaera bigelowii". Essas espécies exibem uma grande variação no tamanho celular (10x, de 2 a 3 micrômetros até 20-30 micrômetros) e carregam diferentes sublinhagens de UCYN-A (UCYN-A1, -A2, e -A3) que também exibem grandes variações dimensionais (10x em termos de raio e até 1000x em termos de volume).


O estudo também mostrou através de um modelo que o crescimento das células hospedeiras e do UCYN-A são controlados pela troca de nutrientes, ou seja, os metabolismos desses dois organismos unicelulares estão ligados. Essa sincronização nas taxas de crescimento é típica de uma organela, e  nos cloroplastos e nas mitocôndrias ocorre a mesma coisa: ambos escalam junto com a célula eucariótica.


No estudo publicado na Science, os pesquisadores mostraram que o UCYN-A importa proteínas das células [microalgas] hospedeiras. Através de análises proteômicas e genômicas, e comparando as proteínas encontradas dentro de "células" isoladas de UCYN-A com aquelas encontradas nas microalgas, eles encontraram que o hospedeiro produz várias proteínas marcadas com sequências específicas de aminoácidos, orientando o maquinário celular a enviá-las para os domínios do endossimbionte. O UCYN-A, então, importa as proteínas enviadas do núcleo celular eucariótico e as utiliza. E a análise de algumas dessas proteínas mostrou que suas funções preenchiam lacunas de perdas genéticas sofridas pelo endossimbionte durante sua coevolução com o hospedeiro, incluindo componentes proteicos essenciais para o metabolismo celular e o controle do ciclo celular.


Somando-se a isso, os pesquisadores usaram imagens subcelulares produzidas com avançada tomografia de raio-X para visualizar a morfologia e divisão celulares da microalga B. bigelowii. Eles mostraram que o UCYN-A se replicava em sintonia com a microalga hospedeira, sendo herdado pelas próximas gerações assim como ocorre na transmissão de organelas durante divisão celular. Através de um ciclo coordenado, o UCYN-A se divide - pouco antes da divisão celular do  hospedeiro - e é compartilhado igualmente entre as células-filhas de B. bigelowwi.


Os achados independentes e combinados fornecem forte ou conclusiva evidência de que o endossimbionte UCYN-A preenche os requisitos para ser caracterizado como uma organela (nitroplasto) ou está em um estágio evolucionário inicial para se tornar uma organela eucariótica fixadora de nitrogênio. Em qualquer um dos cenários, estamos testemunhando a transição evolutiva de um procarionte endossimbiótico para uma organela.


"Os livros acadêmicos alegam que fixação de nitrogênio ocorre apenas em bactérias e Archaea," disse em entrevista um dos coautores do estudo na Science, o ecólogo oceânico Dr. Jonathan Zehr (Ref.11). "Essa espécie de  alga [B. bigelowii] é o primeiro eucarionte fixador de nitrogênio."


Além de fortalecer a teoria de origem endossimbiótica dos plastídios e da mitocôndria, a descoberta do nitroplasto também pode abrir caminho para a criação de plantas capazes de fixar nitrogênio sem o auxílio de bactérias simbiontes no solo, algo que pode revolucionar a agricultura e garantir alta produção agrícola sem a necessidade do processo industrial Haber-Bosch (!) - reduzindo de tabela a emissão de gases estufas na atmosfera terrestre (cerca de 1,4% das emissões globais de dióxido de carbono são oriundas desse processo, e isso sem contar a enorme liberação de óxidos de nitrogênio associados à aplicação de fertilizantes nitrogenados).


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(!) A produção industrial de amônia a partir de N2 atmosférico via processo Haber-Bosch é considerada uma das maiores invenções da história humana, possibilitando a produção de grande quantidade de fertilizantes e a explosão populacional humana a partir do século XX. Esse processo usa uma torre associada a um catalisador metálico e responde por 50% da produção de alimentos no mundo. Para mais informações: História Humana e Nitrogênio: Criação e Destruição

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REFERÊNCIAS

  1. Cornejo-Castilho et al. (2024). Metabolic trade-offs constrain the cell size ratio in a nitrogen-fixing symbiosis. Cell, 187, 1762–1768. https://doi.org/10.1016/j.cell.2024.02.016 
  2. Coale et al. (2024). Nitrogen-fixing organelle in a marine alga. Science, Vol. 384, Issue 6692, pp. 217-222. https://doi.org/10.1126/science.adk1075
  3. https://news.ucsc.edu/2024/04/nitrogen-fixing-organelle.html
  4. Zehr & Capone (2023). Unsolved mysteries in marine nitrogen fixation. Cell. https://doi.org/10.1016/j.tim.2023.08.004
  5. Rucker & Kaçar (2023). Enigmatic evolution of microbial nitrogen fixation: insights from Earth’s past. Trends in Microbiology. https://doi.org/10.1016/j.tim.2023.03.011
  6. https://www.sciencedirect.com/topics/nursing-and-health-professions/nitrogenase
  7. Koirala & Brözel (2021). Phylogeny of Nitrogenase Structural and Assembly Components Reveals New Insights into the Origin and Distribution of Nitrogen Fixation across Bacteria and Archaea. Microorganisms, 9(8): 1662. https://doi.org/10.3390%2Fmicroorganisms9081662
  8. Jayakumar & Ward (2020). Diversity and distribution of nitrogen fixation genes in the oxygen minimum zones of the world oceans. Biogeosciences, Volume 17, Issue 23. https://doi.org/10.5194/bg-17-5953-2020
  9. Shiozaki et al. (2020). Biological nitrogen fixation detected under Antarctic sea ice. Nature Geoscience 13, 729–732. https://doi.org/10.1038/s41561-020-00651-7
  10. Zehr et al. (2020). Changing perspectives in marine nitrogen fixation. Science, Vol. 368, No. 6492. https://doi.org/10.1126/science.aay9514
  11. https://www.nature.com/articles/d41586-024-01046-z

Cientistas descrevem uma nova organela: Nitroplasto Cientistas descrevem uma nova organela: Nitroplasto Reviewed by Saber Atualizado on abril 16, 2024 Rating: 5

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