Vacinas de mRNA produzem proteínas indesejadas, mas isso é motivo para preocupação?
Figura 1. Ilustração de um RNA mensageiro (mRNA, em azul) sendo lido por um ribossomo (organela celular de síntese proteica) durante a síntese de uma nova proteína (vermelho). |
O RNA é um ácido nucleico composto de uma sequência de nucleotídeos - moléculas orgânicas nitrogenadas - e requerido para a síntese de proteínas. O RNA isolado não integra dentro do genoma, é expresso de forma transiente, é metabolizado e eliminado por mecanismos naturais do corpo e, portanto, é considerado seguro para a formulação de vacinas. As vacinas das empresas farmacêuticas Pfizer e Moderna são administradas via injeção intramuscular e entregam às células do corpo fitas de RNA mensageiro (mRNA) - componente ativo - dentro de nanopartículas lipídicas. O mRNA em questão codifica a proteína Spike (S) do SARS-CoV-2 - coronavírus responsável pela COVID-19 -, e, nesse sentido, nossas células passam a produzir temporariamente proteínas S. O nosso sistema imune reconhece essas proteínas e ficam preparados contra um possível infecção futura com reais partículas virais de SARS-CoV-2.
Um estudo publicado esta semana na Nature (Ref.1) gerou bastante repercussão ao demostrar in vitro e in vivo que a fita artificial de mRNA usadas nas vacinas são suscetíveis a erros de tradução dentro das células (no caso, frameshifting ribossômicos), gerando uma significativa parcela de proteínas S incorretas. Porém, os autores do estudo reforçaram que essas proteínas defeituosas não parecem causar prejuízos ao corpo, e podem ser inclusive benéficas ao expor o sistema imune a novas versões de proteínas S - simulando potenciais mutações virais naturais que ocorrem no SARS-CoV-2 (Ref.2). Além disso, o fenômeno de frameshifting ocorre frequentemente e naturalmente no maquinário celular durante traduções diversas de mRNAs quando células infectadas produzem proteínas virais.
Devido ao fato de RNA estranho ao corpo geralmente significar que um vírus está atacando, as células do nosso sistema imune tendem a reconhecê-las e destruí-las. Isso seria um grande entrave para as vacinas baseadas em mRNA. Nesse sentido, os pesquisadores décadas atrás - e ganhadores do Prêmio Nobel deste ano em Medicina (1) - descobriram que modificar ribonucleotídeos na fita de mRNA reduzia a imunogenicidade inata e ainda aumentava a estabilidade da fita, favorecendo o desenvolvimento de uma vacina efetiva. As vacinas hoje aprovadas contra a COVID-19 e baseadas em mRNA incorporam uma N1-metilpseudouridina (1-methylΨ) nas sequências responsáveis pela síntese da proteína S - ou seja, basicamente substituem uma uridina por uma pseudouridina na sequência do mRNA (2). Alguns ribonucleotídeos modificados, como a 5-metilcitidina (5-metilC), possuem ocorrência natural, incluindo em modificações de mRNA pós-transcricionais em eucariotas (ex.: humanos), enquanto outros não são, como o 1-methylΨ (artificial).
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Para mais informações:
- (1) Sobre o Nobel, acesse aqui (fio no X).
- (2) Quais são os ingredientes das vacinas de RNA mensageiro (mRNA) contra a COVID-19?
> Nucleosídeos são moléculas constituídas por uma nucleobase - adenina (A), guanina (G), citosina (C) e uracila (U) no caso de sequências naturais de RNA (ribonucleosídeos) - e uma molécula de açúcar pentose. Quando um grupo fosfato é anexado a um nucleosídeo, temos um nucleotídeo (unidades monoméricas no DNA ou no RNA). Uma sequência de três nucleotídeos (códons) - ribonucleotídeos no RNA - codifica um aminoácido, a unidade básica das proteínas.
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Erros aparentes na síntese de proteínas, incluindo frameshifting (leitura incorreta dos códons), podem ser consequência de mutações no DNA ou erros transcricionais durante a tradução de mRNAs por ribossomos (2). Portanto, tradução fidedigna de uma sequência incorreta de mRNA pode produzir proteínas incorretas. A substituição de ribonucleotídeos nas sequências de mRNA por nucleotídeos modificados pode aumentar erros transcricionais, ao dificultar a correta leitura do RNA [mRNA].
(3) Pais informações sobre esse processo:
No novo estudo, os pesquisadores primeiro mostraram in vitro (experimentos laboratoriais com culturas celulares) que a modificação 1-methylΨ aumentava significativamente o frameshifting (+1 frameshifting ribossômico) em relação a mRNAs com uridinas normais. Nos experimentos, cerca de 8% das proteínas sintetizadas com os mRNAs modificados exibiam frameshifting. Eles encontraram que os ribossomos ficam mais lentos na leitura quando se deparam com sequências com a pseudouridina, especialmente quando a sequência contêm vários desse nucleotídeo modificado. Isso provavelmente é devido ao fato de que os nucleotídeos modificados não são um bom "encaixe" para os ribossomos durante a leitura em relação aos nucleotídeos tradicionais, aumentando o risco de traduções errôneas durante a síntese proteica.
Para testar se o mesmo fenômeno acontecia no organismo de um mamífero, os pesquisadores compararam as reações imunes de camundongos que foram vacinados com o imunizante mRNA-baseado feito pela Pfizer ou com a vacina DNA-baseada da AstraZeneca (4). Eles encontraram que os roedores vacinados com a Pfizer produziam anticorpos contra proteínas com assinatura de frameshifting, enquanto aqueles vacinados com a Astrazeca não exibiam esses anticorpos.
(4) Para mais informações:
Finalmente, os pesquisadores analisaram respostas imunes em 20 pessoas que receberam a vacina da AstraZeneca e 21 que receberam a vacina da Pfizer. Amostras de sangue de quase 1 em cada 3 voluntários no grupo da Pfizer exibiam proteínas com frameshifting, em contraste com nenhum daqueles no grupo da AstraZeneca. Nenhum dos voluntários reportaram quaisquer efeitos colaterais associados às vacinas, e não existe nenhuma evidência de que as proteínas com frameshifting são prejudiciais à saúde.
Porém, segundo os autores do estudo, enquanto não existe evidência de efeitos deletérios com a vacina da Pfizer (BNT162b2), para o uso futuro da tecnologia de mRNA é importante que as sequências de mRNA sejam melhor modificadas para reduzir eventos de frameshifting ribossômico, já que isso pode limitar aplicações que requerem doses maiores ou mais frequentes, como a produção in vivo de hormônios. Preocupação similar é válida para pacientes com câncer sob uso experimental de vacinas mRNA-baseadas que visam combater tumores malignos; pacientes com câncer recebem tratamentos que reduzem a imunidade do corpo, e, portanto, podem ficar mais vulneráveis a proteínas incorretas e quaisquer reações imunes que podem ser subsequentemente engatilhadas - além do fenômeno potencialmente reduzir a eficácia da intervenção terapêutica devido à produção reduzida de proteínas funcionais.
Um modo simples de reduzir os eventos de frameshifting é evitar ao máximo o uso de códons - sequências de três nucleotídeos associados a um aminoácido - com excesso de nucleotídeos modificados. Por exemplo, na hora de planejar uma fita de mRNA, é preferível usar sequências UUC (duas pseudoridinas e uma citidina) ao invés de UUU (três pseudouridinas); ambos os códons codificam para o mesmo aminoácido, mas o primeiro é menos suscetível a erros de leitura.
REFERÊNCIAS
- Mulroney et al. (2023). N1-methylpseudouridylation of mRNA causes +1 ribosomal frameshifting. Nature. https://doi.org/10.1038/s41586-023-06800-3
- https://www.science.org/content/article/mrna-vaccines-may-make-unintended-proteins-there-s-no-evidence-harm