Estrelas-do-mar são apenas cabeças, aponta estudo
Figura 1. Estrela-do-mar da espécie Patiria miniata. |
Estrelas-do-mar (invertebrados da classe Asteroidea) são animais marinhos muito populares e com uma simetria corporal mais do que estranha. O corpo desses equinodermos - assim como observado nos ofiúros (1) e outros do mesmo filo - exibe uma simetria pentagonal (plano corporal pentarradial), bem distinta da simetria bilateral observada em muitos outros animais (incluindo humanos), com a boca na parte central de baixo do corpo e o ânus na parte central de cima. Essa é uma questão muito intrigante na zoologia já que equinodermos evoluíram de um ancestral com plano bilateral. Nesse último ponto, fica a dúvida: será que existe uma simetria bilateral oculta no corpo das estrelas-do-mar, no sentido de que podemos encontrar partes equivalentes ao tronco e à cabeça? Ou esses animais possuem uma extensão "cabeça-tronco" copiadas cinco vezes, com a ponta de cada braço representando uma terminação do tronco?
(1) Sugestão de leitura:
Um estudo recentemente publicado na Nature (Ref.1), baseado em avançadas análises moleculares e expressão de genes, encontrou que estrelas-do-mar são, basicamente, apenas cabeças. Ou seja, não possuem tronco. E o achado pode se estender para outros equinodermos.
"É como se a estrela-do-mar não possuísse um tronco, sendo melhor descrita como uma cabeça que rasteja pelo solo oceânico," disse em entrevista o autor principal do estudo, Dr. Laurent Formery (Ref.3). "Os resultados sugerem que os equinodermos, e as estrelas-do-mar em particular, possuem o mais dramático exemplo de desconexão entre cabeça e tronco até o momento conhecido."
O filo Echinodermata (equinodermos) contém cinco classes que representam grande parte da biomassa do ecossistema bêntico marinho (Fig.2), sendo importantes tanto nas cadeias alimentares quanto na determinação de habitat para outras espécies nos mares. Definidos por um endoesqueleto calcítico, sistema vascular hídrico único e, mais notavelmente, pelo plano corporal pentarradial, os equinodermos são um dos mais enigmáticos filos de animais. Considerando que os equinodermos são filogenicamente agrupados dentro do grupo dos deuterostômios - equinodermos, hemicordados e cordados (incluindo humanos) -, a organização pentarradial - simetria radial a base de múltiplos de 5 - evoluiu de um estado ancestral bilateral. E mesmo com um rico registro fóssil e várias análises genômicas comparativas, ainda permanece pouco esclarecido como um ancestral bilateral deu origem a uma linhagem específica de animais com um plano "penta-lateral" - com as estrelas-do-mar sendo os representantes mais notáveis e conhecidos nesse sentido (Fig.3).
O corpo dos animais cordados podem ser divididos basicamente em quatro partes: cérebro anterior, cérebro intermediário, cérebro posterior e o tronco (Fig.4B), com um plano de simetria dividindo esse corpo em duas partes iguais. Padrão similar é observado nos hemicordados (um filo de pequenos animais marinhos similares a vermes), incluindo 'cabeça' (protossomo e mesossomo) em uma ponta seguida por um tronco (metassomo) na parte oposta (Fig.4B). É possível que os padrões de desenvolvimento bilateral conservados em hemicordados e cordados a partir do ancestral comum possam também existir nos equinodermos, porém rearranjados ou com homologias escondidas em uma anatomia muito divergente. Por exemplo, é notável que estrelas-do-mar no estágio larval exibem um plano corporal bilateral (Fig.5), com um juvenil radial crescendo dentro da larva e eventualmente migrando para fora (Ref.3). Nesse sentido, existem quatro principais hipóteses relacionando o plano corporal dos equinodermos àquele de animais com plano bilateral (Fig.4C):
- na hipótese da bifurcação, o "cérebro" anterior estaria todo em um dos braços e com o tronco nos dois braços opostos (e com o "cérebro" intermediário na parte medial do corpo e se estendendo até dois braços centrais);
- na hipótese da circularização, o "cérebro" anterior e posterior e o tronco - partindo do meio do corpo - estariam cada um em um braço diferente e com o "cérebro" intermediário - também partindo do meio - se estendendo para os outros dois braços restantes e consecutivos.
- na hipótese da duplicação, cada braço traria uma cópia dos quatro segmentos, com o "cérebro" anterior partindo do meio do corpo e terminando com o tronco na parte final de cada braço.
- na hipótese do empilhamento, os segmentos estariam empilhadas começando da boca e terminando no ânus ("cérebro" anterior → "cérebro" intermediário → "cérebro" posterior → tronco) e com cada um desses segmentos se estendendo do centro para cada um dos braços.
Figura 5. Anatomia geral do estágio larval braquiolária da estrela do mar Acanthaster planci, exibindo um plano corporal bilateral. Ref.: DOI |
As hipóteses da bifurcação e da circularização têm sido rejeitadas com base nos dados moleculares acumulados nos últimos anos sobre os equinodermos. Na hipótese da duplicação, cada um dos cinco planos radiais seria uma cópia do eixo bilateral do ancestral comum. Na hipótese do empilhamento o eixo boca-ânus dos equinodermos adultos seria homólogo ao eixo do ancestral bilateral. Uma dessas últimas duas hipóteses seria a correta?
No novo estudo, pesquisadores resolveram testar essas hipóteses em um modelo de equinodermo representado pela estrela-do-mar da espécie Patiria miniata (Fig.6). Estrelas-do-mar - membros da classe Asteroidea - incluem cerca de 1900 espécies ainda vivas e ocorrem em todo o mundo em vários habitats marinhos desde zonas intertidais até zonas hadais (~10 mil metros de profundidade) (!). A manifestação da simetria pentarradial nas estrelas-do-mar é mais simples do que em outras classes de equinodermos, ficando mais fácil análises comparativas e de desenvolvimento do plano corporal.
Figura 6. Em (A), Indivíduos adultos de P. miniata exibem diferentes cores que variam do vermelho e roxo até o laranja e beje. (B) Ciclo de vida da P. miniata, desde a liberação de gametas reprodutivos até os estágios larvais que eventualmente passam por metamorfose e se transformam em minúsculas estrelas-do-mar juvenis. Ref.: DOI |
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(!) De todas as famílias não-extintas de estrelas-do-mar descritas, aproximadamente metade ocorre exclusivamente no mar profundo (>200 metros de profundidade). Ref.4
> Leitura recomendada: Por que não existem peixes marinhos vivendo em profundidades abaixo de 8400 metros?
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Através de análise da expressão de genes - incluindo tomografia de RNA e um novo método chamado de sequenciamento HiFi - os pesquisadores conseguiram encontrar padrões moleculares de diferenciação e ordem ectodérmica similares entre estrelas-do-mar adultas e outros deuterostômios bilaterais, porém sem evidência de formação do tronco. Os pesquisadores propuseram o "modelo ambulacral-anterior" para explicar a evolução do plano corporal dos equinodermos. Segundo esse modelo - e tomando como referência os cordados -, o equivalente ao cérebro anterior nas estrelas-do-mar radia do centro do corpo para cada braço; o equivalente ao cérebro intermediário rodeia o "cérebro anterior"; e o equivalente ao cérebro intermediário é rodeado pelo "cérebro posterior", como mostrado na Fig.6. Essa organização é incompatível com todas as quatro hipóteses tradicionalmente propostas.
Em outras palavras, da perspectiva de um padrão ectodérmico de organização corporal e comparando em especial com os cordados, as estrelas-do-mar e provavelmente os equinodermos em geral são basicamente animais que exibem apenas cabeça. Estrelas-no-mar seriam cabeças com pés (Fig.7), com os adultos quase não expressando genes associados ao desenvolvimento de torso e de cauda. É provável que os outros equinodermos adultos, como ouriços-do-mar, também sejam apenas "cabeças".
O modelo ambulacral-anterior prediz que os equinodermos são o primeiro exemplo de animais bilaterais nos quais a identidade "anterior" está localizada no centro de uma camada de tecido, ao invés de estar localizada em uma extremidade do corpo (ex.: cabeça nos cordados e prosbóscide nos hemicordados). Apesar dessa disparidade organizacional, características anatômicas da parte anterior do sistema nervoso, como condensações neurais e extensivo arranjo de estruturas sensoriais, compartilham similaridades ao longo de todo o filo dos deuterostômios, incluindo equinodermos.
Evidências genéticas prévias suportam que o novo modelo proposto no estudo é aplicável a todos os equinodermos modernos, sugerindo que a perda do tronco ocorreu bem cedo na divergência dessa classe em relação aos cordados e hemicordados. Mais estudos comparativos serão necessários para comprovar essa hipótese. Os resultados do novo estudo também podem ajudar a melhor esclarecer fósseis de antigos equinodermos que não exibem simetrias radiais e que podem possivelmente representar modelos de transição entre simetrias bilaterais e radiais (Fig.9-10).
Figura 9. Fóssil de Thoralicystis (clado extinto Stylophora), descoberto no Marrocos e datado em 480 milhões de anos. É um antigo equinodermo Paleozoico de corpo assimétrico. Ref.7 |
REFERÊNCIAS
- Formery et al. (2023). Molecular evidence of anteroposterior patterning in adult echinoderms. Nature 623, 555–561. https://doi.org/10.1038/s41586-023-06669-2
- https://www.nature.com/articles/d41586-023-03449-w
- https://www.czbiohub.org/news/long-presumed-to-have-no-heads-at-all-sea-stars-may-be-nothing-but/
- https://wellcomeopenresearch.org/articles/8-380/v1
- Liu et al. (2023). A chromosome-level genome assembly of a deep-sea starfish (Zoroaster cf. ophiactis). Scientific Data 10, 506. https://doi.org/10.1038/s41597-023-02397-4
- https://royalsocietypublishing.org/doi/10.1098/rsif.2019.0700
- Lefebvre et al. (2018). Exceptionally preserved soft parts in fossils from the Lower Ordovician of Morocco clarify stylophoran affinities within basal deuterostomes. Geobios. https://doi.org/10.1016/j.geobios.2018.11.001
- https://royalsocietypublishing.org/doi/full/10.1098/rspb.2022.0258