Cientistas registram uma raríssima ave metade fêmea, metade macho
Figura 1. Saí-verde (Chlorophanes spiza, família Thraupidae) ginandromorfo. Ref.1 |
Em um estudo publicado no periódico Journal of Field Ornithology (Ref.1), pesquisadores reportaram um raro caso de ave ginandromórfica bilateral da espécie Chlorophanes spiza, popularmente conhecida como saí-verde. A descoberta ocorreu na região de Villamaría, na Colômbia, e contou com a ajuda de um ornitólogo amador, John Murillo. O espécime em questão exibia uma distinta plumagem metade verde (fêmea) e metade azul (macho). O comportamento do espécime não mostrou diferir significativamente de outros membros selvagens da mesma espécie, pelo menos durante ~21 meses de observação. Uma potencial anomalia comportamental observada é que o espécime frequentemente esperava até que todos os outros saís-verdes fossem embora antes de se alimentar de frutos fornecidos pelos proprietários da região onde habitava.
"Vários observadores de pássaros podem passar a vida inteira sem nunca verem um ginandromorfo bilateral em qualquer espécie de ave", disse em entrevista um dos autores do novo estudo, professor e zoólogo Hamish Spencer, da Universidade de Otago, Nova Zelândia (Ref.2). "O fenômeno é extremamente raro em aves, e eu não conheço nenhum exemplo na Nova Zelândia."
Ginandromorfismo faz referência a uma anomalia sexual onde indivíduos apresentam características simultâneas de machos e de fêmeas no corpo. É causada por uma distribuição desigual de cromossomos, especialmente os sexuais; esse fenômeno normalmente resulta da perda ou adição de um cromossomo sexual no início do desenvolvimento, na fertilização de um óvulo binucleado, ou em uma singamia [fusão dos gametas sexuais] atrasada (Ref.3). Gatilhos para a anomalia incluem temperaturas extremas, luz UV, infecções virais e translocações de partes dos cromossomos sexuais e/ou autossomos.
Ginandromorfia bilateral (!), em específico, é uma condição na qual o lado direito de um organismo exibe características masculinas e o lado esquerdo femininas. A condição é conhecida em um grande número de grupos de animais, incluindo aves, mais frequentemente naqueles que são sexualmente dimórficos (onde pode ser mais facilmente detectável devido a notáveis diferenças fenotípicas entre machos e fêmeas). É mais comum em invertebrados do que vertebrados. Mesmo em invertebrados, a ginandromorfia bilateral é considerada rara, mas relativamente comum entre abelhas.
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(!) De acordo com a distribuição das características fenotípicas masculinas e femininas ao longo do corpo, a ginandromorfia é classificada como anteroposterior (lados anterior e posterior são de diferentes sexos), bilateral (lados direito e esquerdo são de diferentes sexos), transversal (distribuição assimétrica) ou distribuição mosaica (distribuição aleatória de fenótipos sexuais pelo corpo).
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Nas aves, o fenômeno é pensado de emergir como resultado de um erro durante a meiose do óvulo, com subsequente fertilização dupla por dois distintos espermatozoides. Como consequência, um lado da ave exibe células heterogaméticas femininas (ZW) e o outro lado exibe células masculinas homogaméticas (ZZ). Análises da estrutura interna cerebral e de outros órgãos de ginandromorfos têm sido importante no entendimento da determinação sexual e comportamento sexual em aves.
O saí-verde é uma ave cujo habitat se estende do sul do México até o sudeste do Brasil. A espécie se alimenta primariamente de néctar, frutos e insetos. A plumagem é dramaticamente dimórfica, com as fêmeas exibindo uma coloração verde-grama, levemente pálida na parte debaixo, enquanto os machos são azuis com uma plumagem preta na cabeça (Fig.2). A cor do bico também é sexualmente dimórfica: machos possuem mandíbula e maxila inferior amarelo-brilhante, com um cúlmen preto; as fêmeas possuem uma mandíbula amarelo-embotada e uma maxila preta. Os indivíduos juvenis são bem parecidos com as fêmeas adultas. Para outras características físicas, como massa corporal, tamanho de asas e de cauda, não existem significativas diferenças dimórficas. Nos adultos, a íris é brilhante e marrom-avermelhada, enquanto os juvenis possuem uma íris mais embotada.
Figura 2. Saí-verde macho (à esquerda) e fêmea (à direita). Fotos: © Dave B. Smith |
O saí-verde adulto com ginandromorfia bilateral reportado no novo estudo foi fotografado (Fig.3) e filmado (vídeo abaixo) na Reserva Natural Demonstrativa Don Miguel, uma pequena fazenda com grandes trechos de floresta secundária, localizada a 10 km ao sudoeste da cidade de Manizales, na Colômbia. No geral, os pesquisadores observaram que o espécime evitava outros membros da mesma espécie, e os outros também o evitavam. Nesse sentido, parece improvável que o indivíduo ginandromorfo terá qualquer oportunidade de reprodução.
Figura 3. Fotos de diferentes lados do saí-verde ginandromorfo. Ref.1 |
A observação parece ser o segundo registro de ginandromorfia bilateral nessa espécie de ave, e a primeira de um espécime ainda vivo. É incerto se os órgãos internos do novo espécime descrito eram também bilateralmente ginandromórficos, já que não houve captura e análises laboratoriais do espécime. De qualquer forma, dado que o desenvolvimento gonadal aviário possui autonomia celular, dependente da constituição cromossômica das células ao invés da difusão de hormônios ao longo do corpo, isso seria esperado.
REFERÊNCIAS
- Spencer et al. (2023). Report of bilateral gynandromorphy in a Green Honeycreeper (Chlorophanes spiza) from Colombia. Journal of Field Ornithology, Volume 94, Issue 4. https://doi.org/10.5751/JFO-00392-940412
- https://www.otago.ac.nz/news/news/releases/extremely-rare-bird-captured-on-film
- Ribas et al. (2021). Description of a bilateral gynandromorph in Spodoptera frugiperda (Smith, 1797) (Lepidoptera: Noctuidae) from Brazil, 65(2). https://doi.org/10.1590/1806-9665-RBENT-2020-0116